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quinta-feira, 9 de maio de 2024

Rio Grande do Sul debaixo d’água: O problema não está nas nuvens, mas na ação humana e sua ânsia por lucro imediato. Artigo de Felipe Costa

 

Não é de hoje que os empresários e os governantes gaúchos cometem barbeiragens grosseiras e desrespeitam a legislação ambiental.



RS debaixo d’água: O problema não está nas nuvens, está na anarquia dos mercados e na omissão dos governantes.

Por Felipe A. P. L. Costa [*] (publicado no Jornal GGN)

APRESENTAÇÃO. – Nos últimos dias, a começar em 27/4, várias regiões do estado do Rio Grande do Sul foram assoladas por chuvas torrenciais. Em alguns municípios, a precipitação foi tão acima da média que o volume que caiu em 3-7 dias foi o equivalente ao esperado para um trimestre ou mesmo para um semestre inteiro. 

O quadro é desolador. Muita gente perdeu tudo. Boa parte dessa gente vai tentar reconstruir o que perdeu, mas muito o farão em outro bairro ou em outra cidade. O ritmo de crescimento da população gaúcha, entre os mais baixos do país, deverá cair ainda mais. O estado corre o risco de produzir a maior onda interna de refugiados do clima desde o início do século. 

A desorientação e as sucessivas trapalhadas do governo estadual são em boa medida fruto do desmanche dos serviços públicos. Em escala menor, o problema se reproduz em um sem número de municípios gaúchos. Meses atrás, o próprio prefeito de Porto Alegre estava a defender a derrubada do muro de contenção que hoje protege uma parte da cidade contra o avanço das águas do lago Guaíba (dito também rio). A ideia partiu de grupos empresariais que querem ocupar o terreno a troco de ‘modernizar’ o precário sistema de proteção que existe hoje (ver, e.g., aqui e aqui). 

A rigor, o RS é um dos estados mais atrasados na área ambiental. O problema vem de longe e envolve vários setores – e.g., caça de animais nativos, uso extensivo de agrotóxicos, destruição das áreas de preservação permanente, escassez de unidades de conservação e falta de proteção para hábitats-chave, a começar pelo campo limpo. A situação se agravou muito nos últimos anos. O atual governador, por exemplo, tudo fez para acabar com os últimos freios impostos pela legislação ambiental (e.g., aqui). 

A situação se tornou tão precária que hoje os próprios empreendedores estão autorizados a agir como licenciadores – algo do tipo eu mesmo me autorizo a provocar um incêndio ou a erguer uma edificação às margens de um rio. Uma gambiarra como essa não pode dar certo em lugar nenhum do planeta. 

A situação calamitosa enfrentada pelos gaúchos tem as 20 impressões digitais do governador. Diante de tudo isso, o sujeito agora se posta diante das câmaras para pedir doações financeiras aos brasileiros (aqui). Está a mimetizar o comportamento parasitário e oportunista de gente que vive a explorar a boa-fé alheia em redes sociais. Se não sabe o que fazer, a não ser despejar perdigotos em microfones e desfilar travestido de trabalhador salva-vidas, ele deveria renunciar ao cargo. O governador tem a voz empostada e, como é um dos queridinhos da impressa limpinha, ele agora bem que poderia sobreviver como galã de novelas. Ia tirar o emprego de alguns canastrões por aí, mas faria menos mal aos gaúchos.

*

1.

A Terra é um objeto astronômico suficientemente grande a ponto de ter a sua forma esculpida pela gravidade [1]. Além de esférico, o globo terrestre é massivo o suficiente a ponto de reter em torno de si um oceano gasoso. A esse oceano – uma estrutura bastante heterogênea e dinâmica – damos o nome de atmosfera. A Lua, por exemplo, é esférica, mas não é suficientemente massiva a ponto de reter em torno de si uma atmosfera [2].

2.

A idade do Universo, a julgar pelo modelo adotado pela maioria dos astrônomos [3], é estimada hoje em 1,375 (± 0,13) × 1010 anos. Em números redondos: 13,8 bilhões de anos ou 13,8 Ga (1 Ga – lê-se um giga-ano – equivale a 1 bilhão ou 1 × 109 anos). O nosso sistema planetário (dito Sistema Solar) surgiu bem depois [4]. A idade da Terra, especificamente, é estimada hoje em 4,55 (± 0,07) × 109 anos. Em números redondos: 4,6 Ga.

3.

Ao longo desses 4,6 Ga, a composição da atmosfera terrestre mudou radicalmente, e em mais de uma ocasião. Com base no estudo dessas mudanças, geólogos e climatologistas argumentam que o planeta tem hoje uma atmosfera (dita de terceira geração) cuja composição se firmou há uns 400 milhões de anos (Ma).

4.

99% das moléculas presentes em amostras de ar seco são moléculas de nitrogênio (78%) ou oxigênio (21%). O 1% restante inclui moléculas de argônio (0,9%) e dióxido de carbono (CO2) (0,04%), além de outros gases, como metano e ozônio, presentes em percentuais ainda mais baixos. (Estamos a falar de amostras obtidas em baixas altitudes.)

5.

Um marco na história da climatologia foi o reconhecimento (mais ou menos generalizado entre os estudiosos) de que o CO2 tem um papel decisivo na dinâmica atmosférica, apesar da relativa escassez, notadamente no que diz respeito ao equilíbrio térmico do planeta [5]. Essa mudança conceitual se firmou em meados do século 20 [6].

6.

Ora, se o CO2 é assim tão decisivo, mesmo estando presente em uma concentração tão baixa, podemos presumir que qualquer alteração nos valores, por menor que seja (para mais ou para menos), poderá vir a ter consequências expressivas no comportamento da atmosfera. A pergunta que aqui se impõe é: há evidências de que a concentração de CO2 está passando por mudanças? A resposta é duplamente preocupante. Primeiro, porque é uma resposta conhecida há muitos anos; segundo, porque é uma resposta afirmativa – sim, há sólidas evidências de que a concentração está a mudar.

7.

A presença de CO2 na atmosfera é monitorada de perto desde 1957. As medições são diárias – sete dias por semana, 12 meses por ano, ano após ano. Os resultados não poderiam ser mais óbvios: a concentração está a aumentar de modo previsível e ininterrupto – dia após dia, mês após mês, ano após ano –, desde o primeiro ano.

8.

Em março de 1957, no início da série histórica, a concentração CO2 era de 315,7 ppm (lê-se: partes por milhão) [7]. Em março de 2015, o valor ultrapassou a marca de 400 ppm (401,51); tendo chegado agora, em março de 2024, a incríveis 425,38 ppm. Veja: a diferença entre 1957 e 2024 equivale a um aumento de 35%. O mais preocupante, no entanto, é o fato de que esse aumento demorou apenas 67 anos (1957-2024), um piscar de olhos diante do intervalo transcorrido desde a formação da atmosfera atual.

9.

De onde vem toda essa fumaça? A rigor, a maior parte da sujeira que é injetada diariamente na atmosfera tem a ver com o uso de máquinas e motores de combustão interna, uma inovação tecnológica cujos primórdios recuam ao século 18 (ou antes) [8]. O surgimento dessas máquinas deu origem a um grande e vigoroso mercado. Um mercado cujas demandas ao longo dos últimos 250 anos elevaram a queima de combustíveis fósseis (e.g., carvão mineral, gás e petróleo) a níveis estratosféricos. E esta é a raiz da crise que enfrentamos hoje: a queima de combustíveis fósseis implica na liberação de grandes quantidades de CO2.

10.

Até o início do século 20, atividades relacionadas ao uso da terra (e.g., desflorestamento e a criação de grandes rebanhos) eram os principais responsáveis pela emissão de carbono de origem antropogênica (CAntro). A balança só começou a pender para o lado dos combustíveis fósseis a partir da década de 1920. (O que de modo algum significou que as emissões oriundas do uso da terra se tornaram desprezíveis.)

11.

Entre 2012 e 2021, as emissões de CAntro em escala planetária chegaram a um valor anual médio de 10,8 Gt (1 Gt – lê-se gigatonelada – equivale a 1 bilhão ou 1 × 109 toneladas). Desse total, 1,2 Gt veio do uso da terra e 9,6 Gt vieram da queima de combustíveis fósseis [9]. (Em números redondos: 11 Gt, o equivalente a ~40,33 Gt de CO2.)

12.

No quesito queima de combustíveis fósseis, a lista dos maiores emissores é encabeçada pela China. A média anual dos chineses correspondente hoje a quase três vezes a média do segundo colocado (Estados Unidos). Em seguida aparecem a União Europeia, a Índia e o resto do mundo. No quesito uso da terra, o Brasil assumiu a liderança mundial. (Em seguida aparecem a Indonésia e o Congo [RD].) É uma notícia vergonhosa. Mas que tem muito a ver com a anarquia econômica e a corrupção política que assumiram o comando do país após a derrubada do governo Dilma. (É bom não esquecer que toda aquela encenação que levou ao golpe foi catalisada pelos limpinhos do PSDB, sob o patrocínio entusiasmado de sonegadores, latifundiários e rentistas, além, claro, de contar com o ‘apoio crítico’ da nossa imprensa limpinha, aquela turma que se julga acima da lei e dos fatos, tipo Folha e Globo.)

13.

O que acontece com as 11 Gt de CAntro que são injetadas na atmosfera todos os anos? Em poucas palavras, nós podemos dizer que elas se somam a um fundo ainda maior de moléculas que estão a fluir constantemente entre os oceanos, o solo e a biosfera. A biota de terra firme, por exemplo, fixa 109 Gt de carbono a cada ano (~400 Gt de CO2), ao mesmo tempo em que libera (via respiração) 107 Gt (~392 Gt de CO2). No caso específico das terras cultivadas, os valores são 14 Gt e 12 Gt, respectivamente. Trocas semelhantes ocorrem entre a atmosfera e os oceanos, com um pequeno saldo líquido em favor destes últimos.

14.

Se levássemos em conta apenas os fluxos naturais, a contabilidade global estaria mais ou menos equilibrada, visto que a absorção líquida em favor da biosfera e dos oceanos é compensada pela entrada de novas moléculas vindas do interior do planeta (e.g., via erupções vulcânicas). Ocorre que o volume das emissões de CAntro é gigantesco, a ponto de afastar os estoques e os fluxos naturais de uma condição, digamos, de equilíbrio. O saldo líquido dessa situação é duplamente preocupante: a concentração de CO2 está a aumentar, não só na atmosfera, mas também nos oceanos. (No que segue, vamos continuar tratando apenas do que se passa na atmosfera.)

15.

Afinal, por que o aumento na concentração de CO2 na atmosfera seria um problema tão grave e preocupante? Em termos bastante objetivos, eu diria o seguinte: porque esse aumento é mais do que suficiente para mudar o comportamento da atmosfera, especificamente o tempo de retenção da radiação calorífica trazida pela luz solar. Estou a me referir aqui a uma dinâmica que poderia ser grosseiramente esboçada da seguinte maneira: de toda a radiação luminosa que atinge o planeta, cerca de 30% são imediatamente refletidos de volta para o espaço, outros 20% são absorvidos por elementos da atmosfera (sobretudo moléculas de H2O) e os 50% restantes alcançam a superfície (1/4 atinge a terra firme e 3/4, os oceanos). Dos 50% que atingem a superfície, uma parte é absorvida e outra é refletida de volta para a atmosfera. A maior parte da radiação refletida pela superfície é absorvida pela atmosfera ou é refletida de volta para a superfície; nessas idas e vindas, pequenas frações de radiação vão aos poucos sendo perdidas para o espaço. O efeito líquido desse ziguezague é o aquecimento do planeta.

16.

A temperatura do ar em um dado local, em um dado instante, expressa a quantidade de radiação que está retida momentaneamente. Quanto maior o tempo de retenção, mais elevada será a temperatura. O contrário também é verdadeiro – quanto menor o tempo de retenção, mais baixa será a temperatura. A quantidade de radiação retida depende de dois fatores: (i) a quantidade que chega com os raios solares (insolação); e (ii) o tempo de retenção local. No primeiro caso, a quantidade de radiação que atinge a superfície varia de modo cíclico e previsível, a depender de três variáveis: (i) latitude – a insolação é mínima nos polos, atingindo o máximo nas proximidades do equador terrestre; (ii) estação do ano – a insolação é mínima no inverno, atingindo o máximo no verão; e (iii) hora do dia – a insolação atinge o máximo por volta de meio-dia ou um pouco depois (12h00-13h00), mas é nula durante a noite. O tempo de retenção depende da quantidade de colisões que ocorrem localmente. O número de colisões, por sua vez, depende da concentração de partículas no ar. Assim, quanto mais partículas, mais colisões ocorrerão e mais tempo o calor ficará retido antes de escapar para o espaço. Mais uma vez, o saldo líquido desse ziguezague será a elevação da temperatura local [10].

17.

Até meados do século 20, pouca gente imaginava que as atividades humanas fossem capazes de alterar a composição da atmosfera. Um dos primeiros a levar a sério esse problema foi o químico sueco Svante Arrhenius (1859-1927), laureado com um Nobel em 1903 (não por esse motivo). Tendo como ponto de partida as ideias do matemático e físico francês Jean Baptiste Fourier (1768-1830), para quem a superfície do planeta estaria a ser aquecida pela atmosfera, a exemplo do que se passa dentro de uma estufa, Arrhenius investigou o que ocorreria se a concentração de CO2 seguisse aumentando. De acordo com dele, se a concentração dobrasse em relação ao nível pré-industrial (até meados do século 18, digamos), a temperatura média global subiria em até 4,5 ºC.

18.

Até a primeira metade do século 20, a maioria dos estudiosos insistia em dizer que o papel do CO2 nessa equação não era relevante. A situação começou a mudar em 1956, quando o físico canadense Gilbert Plass (1921-2004) publicou os resultados de suas pesquisas sobre a capacidade de absorção das substâncias presentes na atmosfera. De acordo com ele, embora sejam transparentes à luz solar incidente (radiação de ondas curtas), as moléculas de CO2 têm uma elevada capacidade de reter a radiação de ondas longas que é refletida de volta pela superfície do planeta. A importância relativa do CO2 é muito maior do que poderíamos supor levando em conta apenas a sua abundância. A conclusão não poderia ser mais preocupante: quanto maior a concentração de CO2, mais intenso será o efeito estufa exercido pela atmosfera.

19.

Nada do que foi dito até aqui em termos de ciência pura ou básica envolve qualquer tipo de revelação de última hora, como o leitor talvez já tenha percebido. A rigor, nós estamos a falar de coisas que são conhecidas há décadas ou mesmo há séculos. É o caso, por exemplo, do conhecimento científico que há por trás do efeito estufa. Ou mesmo daquilo que hoje nós sabemos a respeito do aquecimento global. Há coisas que são conhecidas há milhares de anos, como é o caso da forma esférica do planeta.

20.

Considere agora o que está a ocorrer no Rio Grande do Sul, cuja população está a conviver com chuvas excepcionalmente volumosas desde o dia 27/4. Lembrando: o RS é o 9° estado em dimensões territoriais (281.707 km2, ou 3,3% do território brasileiro), o 6° em população residente (10.880.506, ou 5,4% da população brasileira) e o 3° em número de municípios (497, ou 8,9% do total de municípios brasileiros). Para contextualizar melhor a excepcionalidade da crise que estamos a viver, caberia caracterizar certos elementos do clima do estado. Tomando Porto Alegre como referência, o clima do RS poderia ser resumido da seguinte maneira: (i) O trimestre mais quente do ano é DJF (dezembro-fevereiro) e o mais frio, JJA (junho-agosto); e (ii) O trimestre mais chuvoso é JAS (julho-setembro) e o mais seco, FMA (fevereiro-abril). De acordo com padrões históricos, estaríamos agora a sair da estação seca.

21.

O desarranjo climático ora em curso – não só aqui, mas em todo o planeta – está a redefinir os padrões históricos, notadamente o comportamento da precipitação. Sobre a situação de momento no RS, reproduzo a seguir um trecho de uma nota publicada no sítio do Inmet (aqui), em 2/5 (ênfase minha): “Grande parte do Rio Grande do Sul segue sendo atingido por chuvas persistentes e volumosas desde o dia 27 de abril. Em algumas regiões, especialmente na ampla faixa central dos vales, planalto, encosta da serra e metropolitana, os volumes de chuva chegaram a passar dos 300 milímetros (mm) em menos de uma semana. No município de Bento Gonçalves, por exemplo, os volumes chegaram a 543,4 mm. Desde o dia 29 de abril, quando a chuva volumosa ficou estacionária sobre o Rio Grande do Sul, os volumes ficaram entre 200 mm e 300 mm em diversas áreas. Na capital do estado, Porto Alegre, o volume chegou a 258,6 mm em apenas três dias. Esse valor corresponde a mais de dois meses de chuva, quando comparado a Normal Climatológica dos meses de abril (114,4 mm) e de maio (112,8 mm). As estações do Inmet que mais registraram chuva de 26 de abril até as 9h desta quinta (2), foram: Soledade (488,6 mm); Santa Maria (484,8 mm) e Canela (460 mm). A estação meteorológica convencional de Santa Maria teve recorde de chuva em 24h, com acumulado de 213,6 mm, no dia 1º de maio. Essa foi a maior chuva registrada no município, em 112 anos de observação, superando o volume anterior de 182,3 mm, ocorrido em 23/6/1944. Em apenas três dias, o volume de chuva na cidade chegou a 470,7 mm, valor que corresponde três meses de chuva, conforme a média climatológica.”

22.

Não é de hoje que os empresários e os governantes gaúchos cometem barbeiragens grosseiras e desrespeitam a legislação ambiental. Uma barbeiragem antiga é o fato de que o RS é o único estado da federação onde a caça esportiva de animais selvagens tem amparo legal. Muita gente já tratou do assunto. Eu mesmo escrevi sobre isso no livro Ecologia, evolução & o valor das pequenas coisas (2003; 2ª ed., 2014). Reproduzo a seguir um trecho (adaptado): 

“Sai ano, entra ano, e a temporada de caça é anunciada pela imprensa em tom de gestão ambiental exemplar. Algo do tipo: ‘os gaúchos caçam porque planejam, controlam e protegem’. Isso, no entanto, não corresponde à realidade. Basta dizer o seguinte: em termos de proteção ambiental, o Rio Grande do Sul é um dos estados mais atrasados do país. Senão, vejamos: 

(i) Com apenas 0,55% de sua área territorial protegida por reservas e parques federais e estaduais, o estado ocupa apenas a vigésima primeira posição no ranking verde do Brasil (26 estados mais o Distrito Federal), sendo o último colocado entre os estados das regiões Sul e Sudeste. 

(ii) Nos últimos 20 anos, enquanto outros estados trataram de aumentar em número e tamanho as suas reservas e parques, os governantes gaúchos pouco ou nada fizeram para criar e implantar novas unidades de conservação. E a julgar pelo tamanho de uma das últimas delas – a Reserva Biológica da Mata Paludosa, criada em outubro de 1998, com apenas 113 ha e ainda assim divididos em duas parcelas –, o assunto não parece despertar tanto interesse assim. (Os governantes gaúchos, é bom que se diga, poderiam argumentar que algumas medidas positivas foram adotadas nos últimos anos, incluindo o aparente desmantelamento da equipe de caçadores, travestidos de guardas, que agiam no Parque Estadual do Turvo e a implantação – finalmente – do Parque de Itapuã, com quase 30 anos de atraso desde a sua criação formal.) 

(iii) O Rio Grande do Sul é campeão nacional (seguido de perto por Minas Gerais e Bahia) em número de unidades de conservação fantasmas – leia-se: reservas e parques que não existem, embora apareçam em listas oficiais e, assim, de um jeito ou outro, contribuam para elevar artificialmente os índices de proteção. Os parques estaduais do Ibitiriá e do Podocarpus, por exemplo, são fantasmas, ainda que apareçam em listas publicadas pelo Ibama e pelo IBGE. (iv) O campo limpo, um dos três biomas terrestres que ocorrem em terras brasileiras e que abrange principalmente o Rio Grande do Sul [11], está virtualmente desprotegido e corre o risco de desaparecer do território gaúcho. Em certas áreas do sudoeste do estado, por exemplo, a vegetação original já desapareceu por completo e em seu lugar prosperam os campos de areia. A única unidade de conservação que existe naquela região, a Reserva Biológica de Ibirapuitã (Alegrete) é pequena (351 ha) e está malcuidada.”

23.

Negócios, mentiras e pilhagens andam juntos com bastante frequência. No caso dos grandes negócios, parece haver uma lei: só prosperam – principalmente em países onde a acumulação de capital é recente – os empreendimentos que estão ancorados em atividades sujas e irregulares. Um exemplo óbvio é a mineração, um pesadelo que começou a tomar conta da capitania de Minas Gerais já no início do século 18. Outro exemplo, este ainda a pleno vapor e bem mais amplo e degradante, é o chamado agronegócio – leia-se: grandes empreendimentos agrícolas voltados basicamente para a exportação. Ao contrário do MST (e.g., aqui e aqui), por exemplo, o agronegócio não coloca comida na mesa do brasileiro. De resto, ao lado da degradação ambiental que promovem (e.g., destruição de florestas ribeirinhas e consumo excessivo de água, fertilizantes e agrotóxicos), boa parte dos empresários do agronegócio vive a sonhar com trabalho escravo e sonegação fiscal. Não foi por outro motivo que eles ocuparam a linha de frente da turba que levou adiante o golpe contra o governo Dilma. O RS está tomado pela cultura da soja e a cultura da soja é quase sempre uma chaga. Cito: “Veja o caso da soja, uma leguminosa de pequeno porte, aparentemente frágil, mas cuja cultura é poderosa o suficiente para eleger prefeitos, deputados e até governadores – além de grilar terras e dizimar qualquer trecho de vegetação nativa que encontre pela frente” [12].

24.

Após todos esses anos de trabalho duro, incluindo o trabalho de monitorar a concentração de CO2, o que a ciência afinal tem a dizer sobre a crise climática? Entre as principais conclusões, ouso dizer que uma delas não poderia ser mais direta e preocupante: o aquecimento global (leia-se: a crescente intensificação do efeito estufa) é fruto de uma atmosfera cada dia mais cheia de partículas, cada dia mais suja. Resta saber se os governantes e as agências internacionais terão disposição e força política para enfrentar o problema. Não é e não será uma luta fácil. Afinal, quando o assunto é a emissão de CAntro, do outro lado do ringue estão as companhias petrolíferas (e.g., Shell, Exxon, BP e Petrobras), as companhias produtoras de eletricidade (e.g., a maior parte da eletricidade produzida no mundo vem da queima de carvão mineral) e o agronegócio (e.g., sojicultores e a indústria da carne).

25.

Mais do que uma falha da sociedade, a degradação da natureza e a perda de serviços ecológicos são imposições do mercado. A perda de serviços em larga escala – serviços que são fornecidos espontânea e gratuitamente pelos sistemas ecológicos (e.g., retenção do solo, infiltração da água, polinização de culturas e controle de pragas) – só irá acentuar o problema. Em outras palavras, crise climática promove a desigualdade social, faz aumentar o número de desabrigados, aumenta o número de gente com fome. Em resumo, crise climática é sinônimo de mais sofrimento. Ao contrário do que alguns imaginam, porém, esse quadro degradante não é exatamente fruto da maldade humana. Não é uma questão meramente individual. Outros níveis devem ser considerados em nossa análise. Além do comportamento individual, por exemplo, devemos olhar para o que se passa em níveis mais altos de organização – os grupos sociais ou, no caso da economia capitalista, as empresas e, sobretudo, as grandes corporações transnacionais (e.g., Nestlé, Coca-Cola e Ambev). São estas últimas que mais corroem o planeta. E fazem isso como se estivessem a participar de uma corrida sem fim: correm atrás de lucros e dividendos, mas também parecem correr visando apenas e tão somente continuar correndo. Pois assim é o mundo dos negócios. 

Nessa corrida maluca, medidas espontâneas e isoladas contra a crise climática têm chances reduzidas de prosperar. Por quê? Porque logo serão superadas ou suprimidas. Considere o seguinte exemplo: em um contexto competitivo, se a corporação A decide reduzir a sua voracidade, correrá o sério risco de ser atropelada pela corporação B. Cada empresa, isoladamente, é forçada a continuar escalando o seu comportamento predatório. Esse é um bom resumo do que tem sido a história da economia da anarquia (dita economia do livre mercado). Foi a anarquia econômica que nos trouxe para perto do abismo. O crescimento econômico tem de parar. A produção de quinquilharias inúteis e descartáveis tem de ser inibida. Só um modelo racional e democrático de governança mundial será capaz de frear a degradação. Sem isso, as corporações seguirão a alimentar mercados que elas próprias criam. Incluindo aí os mercados de quinquilharias que visam satisfazer os devaneios de uma parcela cada vez mais infantilizada da população mundial.

*

NOTAS.

[*] Este artigo contém material extraído e adaptado do livro A força do conhecimento & outros ensaios: Um convite à ciência (no prelo). Outros trechos da obra já foram anteriormente divulgados – e.g., Livros, lentes & afinsRevolução Agrícola, a mãe de todas as revoluçõesO que é cultural, afinal?Quem quer ser um cientista?Algumas notas sobre o método científicoAs origens da políticaPodemos aprender com os nossos erros; e Ciência, tecnologia, negócios. Sobre a campanha Pacotes Mistos Completos (por meio da qual é possível adquirir, sem despesas postais, os quatro livros anteriores do autor), ver o artigo Ciência e poesia em quatro volumes. Para adquirir os quatro volumes ou algum volume específico ou para mais informações, faça contato com o autor pelo endereço felipeaplcosta@gmail.com. Para conhecer outros artigos ou obter amostras dos livros anteriores, ver aqui.

[1] Ver o artigo ‘Por que a Terra é esférica?’.

[2] Ver o artigo: ‘A Lua não é oca, não é feita de queijo nem tem um lado escuro’.

[3] Ver o artigo ‘Do Big Bang ao Fanerozoico: breve caracterização de tempos remotos’.

[4] Ver o artigo ‘Alguns planetas vizinhos e a tempestade vermelha que começou em 1879’.

[5] Ver o livro A curva de Keeling e outros processos invisíveis que afetam a vida na Terra (2006, Moderna).

[6] Ver o artigo ‘Primórdios do aquecimento global’.

[7] 315,7 ppm significa dizer que, de cada grupo de 1 milhão de moléculas, 315,7 são moléculas de CO2.

[8] Ver o artigo ‘Finda a lenha, eis o carvão: Como foi mesmo que entramos nessa enrascada?’.

[9] Ver o artigo ‘Um balanço do ciclo global do carbono’.

[10] Considere um caso familiar que ilustra bem como a densidade de partículas afeta a temperatura local. Muita gente que já escalou uma montanha sente na pele que a temperatura cai à medida que nós nos deslocamos para altitudes maiores. (A nossa sensação pode ser atrapalhada por alguns fatores, como os ventos. Para evitar o problema, o melhor a fazer é levar um termômetro e fazer medições em condições padronizadas.) Isso decorre do fato de que o ar se torna rarefeito à medida que escalamos. Como a densidade do ar cai com a altitude, cai o número de ziguezagues e o tempo de retenção da radiação. Ora, se a radiação fica retida por menos tempo, a temperatura local também irá cair.

[11] Ver o livro Ecologia, evolução & o valor das pequenas coisas (2ª ed., 2014).

[12] Ver o artigo: ‘Desflorestamento: pausa para o lanche?’.

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