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segunda-feira, 13 de maio de 2024

Martin Luther King e Malcom X – vidas e mortes cruzadas, por Dora Incontri

 

Para trazer Martin e Malcolm ao nosso tema frequente, ambos são exemplos da intersecção entre política e espiritualidade; entre ativismo e fé


Artigo de Dora Incontri publicado no Jornal GGN:

Não tenho nem o tempo, nem a paciência para assistir a séries de canais streaming. Mas, às vezes, alguma produção consegue furar o meu bloqueio. E falo hoje aqui de Genius (que pode ser vista na Starplus e que tem temporadas biográficas, numa produção da National Geographic). Foco mais especificamente na que trata de forma paralela e cruzada das vidas de Martin Luther King Jr. e Malcom X. Não fosse apenas pela beleza pungente dessas biografias, elas tocam no cerne do debate desta coluna.

A estrutura da narrativa, em oito episódios, tem muitos méritos de roteiro. Entre eles, o fato de que vai contracenando a infância, a juventude, as lutas pessoais e políticas e finalmente o assassinato desses dois grandes líderes da luta contra o racismo nos EUA. Os dois morreram aos 39 anos, com 3 anos de diferença, sendo Malcom, mais velho, o primeiro a ser assassinado. Um acompanhava o outro à distância, com discordâncias, convergências e respeito mútuo. Apertaram-se as mãos apenas uma vez na vida e foi um encontro fraterno e aberto.

A narrativa não é idealizada, porque heróis são seres humanos e têm seus defeitos – o que não arranca o mérito de suas ações para transformar o mundo. E uma das questões que nos desconcertam, principalmente a nós, mulheres feministas do século 21, é justamente a postura muitas vezes machista dos dois e de todo o contexto de então. Mas, o filme mostra, além de ambos, a vida das suas esposas, também desde a infância, enfatizando seu protagonismo e informando algo que pouca gente deve saber: as duas viúvas, Coretta e Betty se tornaram grandes amigas e tiveram um ativismo muito engajado, mantendo vivo o trabalho dos maridos. Ou seja, foram muitas vezes caladas durante a vida deles, mas assumiram suas respectivas missões depois de suas mortes.

Para trazer Martin e Malcolm ao nosso tema frequente, ambos são exemplos consistentes da intersecção entre política e espiritualidade; entre ativismo e fé. Malcom, que teve uma infância bem mais traumática que Martin, tendo seu pai assassinado e sua mãe internada por problemas mentais, muito jovem caiu na criminalidade e foi preso. Foi guiado para fora da tragédia por um líder muçulmano, Elijah Muhammad, chefe da organização Nação do Islã. Convertido ao islamismo e devotado a esse guru, reiniciou sua vida, aliando a luta pela igualdade racial à fé islâmica, como identidade mais enraizada na herança africana. Poucos anos mais tarde, Malcom descobriu os abusos sexuais praticados pelo líder da Nação do Islã e teve a integridade de enfrentá-lo e sair da organização. Mas não deixou o islamismo.

Já Martin nasceu filho de um pastor batista e teve uma infância protegida e estimulada pelos pais, graduou-se e doutorou-se em teologia e, seguindo a carreira do pai, tornou-se pastor.

No Alcorão, Malcolm encontrou forças para a luta e justificativa de que ela poderia recorrer à violência armada. Mas não chegou a matar uma mosca.

No Evangelho de Jesus, interpretado pela leitura de Gandhi, Martin achou inspiração para uma luta não violenta, baseada na desobediência civil e na resistência passiva. Essa proposta da não violência gandhiana foi trazida a Martin por seu conselheiro de campanhas, Bayard Rustin, ativista que foi perseguido e até pouco tempo apagado da história, por sua homossexualidade.

Ambos, porém, Martin e Malcom, extraíram de suas respectivas espiritualidades, força, inspiração, coragem e resiliência para enfrentarem a luta do dia a dia, as perseguições, o cansaço, as ameaças de morte e finalmente a morte. O último discurso de Luther King, reproduzido na série, feito algumas horas antes de ser assassinado é emocionante: ele sente que vai morrer, entrega-se a Deus, diz que não tem mais medo. É como se naquela despedida estivesse encontrando a plenitude de sua fé (que tinha às vezes hesitante, como todos os que têm fé) e agiganta-se no heroísmo e no martírio.

Essa a principal mensagem dessas duas vidas, a ideia de que temos falado aqui. O ativismo social, o ímpeto e o empenho de mudar o mundo, trazendo justiça, igualdade e fraternidade, não estão necessariamente desconectados de uma visão de mundo religiosa. Muito ao contrário, nela se enraízam com muito mais força, porque a esperança de que um dia esse Reino por que se luta virá, encontra maior garantia e serenidade na ideia de uma justiça que permeia a realidade da existência e não apenas uma justiça precária e mutável, construída socialmente.

Se há religiosos alienados e distantes da militância social e política, são eles os incoerentes e afastados das raízes profundas de toda tradição espiritual digna deste nome.  Egoísmo, indiferença com o sofrimento do mundo, cinismo social e distanciamento de movimentos e ideias que propõem mudanças na sociedade estão em oposição às mensagens essenciais das múltiplas espiritualidades e contrariam o exemplo das grandes lideranças que inspiram a humanidade a se reconhecer como humana, fraterna e, ao mesmo tempo, divina.

Dora Incontri – Graduada em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. Mestre e doutora em História e Filosofia da Educação pela USP (Universidade de São Paulo). Pós-doutora em Filosofia da Educação pela USP. Coordenadora geral da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita e do Pampédia Educação. Diretora da Editora Comenius. Coordena a Universidade Livre Pamédia. Mais de trinta livros publicados com o tema de educação, espiritualidade, filosofia e espiritismo, pela Editora Comenius, Ática, Scipione, entre outros.

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