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segunda-feira, 29 de abril de 2024

Jesus de Nazaré e os cristianismos criados em seu nome – o que têm ambos em comum?, por Dora Incontri

Parece que a mensagem é tão bela, tão inédita e inovadora, fala tão profundamente à alma humana, que muitos usurpadores se vestem dela

Cristo em mosaico em igreja ortodoxa em Chipre.


Jesus e os cristianismos – o que têm em comum?

por Dora Incontri, no Jornal GGN:

Há uma tendência hoje a se colocar na conta do cristianismo todas as mazelas de nossas opressões. O patriarcado? O projeto colonial? O racismo? A repressão sexual? Tudo cabe no discurso de rejeição raivosa da mais numerosa tradição espiritual do planeta (quase empatando com o islamismo, que fica por enquanto em segundo lugar). Mas há que se perguntar com honestidade: não havia patriarcado na Grécia, em Roma, na China, na Índia e mesmo em muitos lugares da África? Há quem queira defender o matriarcado africano, mas ele não foi e não é generalizado. E as discriminações étnicas, as conquistas colonizadoras e as religiões promovendo a repressão do corpo? Tudo isso já não houve em outras culturas e outros momentos históricos em que cristãos não estavam presentes?

Por outro lado, quando falamos em cristianismo, de que cristianismo se trata? Até o Concílio de Niceia (325 D.C.) havia dezenas de denominações cristãs: marcionistas, pelagianos, arianos, gnósticos, montanistas, docetistas e outras tantas, incluindo a ortodoxia vencedora e imposta, a católica apostólica romana, que silenciou a ferro e fogo todas as outras correntes, declaradas como heréticas. Isso sem mencionar a Igreja do Oriente, a partir do Império Bizantino, onde se enraizaram as Igrejas ortodoxa grega e a ortodoxa russa; a Igreja maronita, a Igreja apostólica armênia (que reclama para si uma descendência direta dos apóstolos).

Não houve durante todos esses 2 mil anos de mensagem de Jesus inúmeras formações cristãs, algumas perseguidas e eliminadas, outras absorvidas ou ainda presentes em nossos tempos? Na Idade Média, por exemplo, os valdenses e os cátaros? Ou a mensagem de Francisco de Assis, que pela imitação pura da proposta de vida de Jesus, contestou o luxo e o poder da Igreja Católica? O movimento franciscano foi sim cooptado pela igreja, mas ainda germina mudanças na cristandade. Antes e a partir da Reforma, os anglicanos, os hussitas, os luteranos, os anabatistas, os calvinistas, os batistas, os presbiterianos, os metodistas, os quakers – todos cristãos.

E ainda no século 19, temos o próprio espiritismo kardecista, largamente divulgado no Brasil, que se pretende uma forma reencarnacionista de cristianismo, embora isso horrorize os cristãos tradicionais e alguns espíritas por sua vez não se reconheçam como cristãos.

Isso tudo demonstra que o cristianismo é multifacetado, e dentro de cada uma dessas denominações, há tendências e movimentos, pensadores e obras, conservadores e de vanguarda, num debate constante, onde não faltam fluxos e refluxos históricos, perseguições e martírios.

Mas, afinal, quem foi Jesus, o que ele disse, o que ele fez e por que ainda estamos falando num homem, filho de um carpinteiro e de uma camponesa, de um rincão pobre da Palestina dominada pelos romanos, e que reuniu um punhado de homens e mulheres (sim, mulheres também) pobres como ele e analfabetos quase todos? Não será esse o maior milagre, se milagre houve? Um mito, uma lenda, uma farsa histórica não teria tal poder de impactar o mundo, cujos valores até hoje germinam nos corações.

Todos esses cristianismos mantêm a sua mensagem de alguma maneira viva, atraindo ainda e sempre as multidões. Mas a seiva da ideia aparece embrulhada em muitos sincretismos (há, por exemplo, nas Igrejas romana e oriental amálgamas com o paganismo), envolta ainda em muitos dogmas e divagações teológicas inacessíveis. E sobretudo, em nome desse mestre, que nada teve, que sobre ninguém exerceu poder, e que só pregou e exemplificou a paz e a fraternidade, guerreia-se, persegue-se, oprime-se, impõe-se, coloniza-se.

Parece que a mensagem é tão bela, tão inédita e inovadora, fala tão profundamente à alma humana, que muitos usurpadores se vestem dela, como uma aparência, com um manto hipócrita, para dominar e explorar os povos. Quem entre gregos, romanos, judeus – só para citar as culturas em que o cristianismo brotou e se enraizou em primeiro lugar – propunha práticas estapafúrdias (que até hoje a maioria dos ditos cristãos não aceitam e não praticam) como perdoar setenta vezes sete, pagar o mal como bem, querer servir e não ser servido, amar os próprios inimigos? Ao invés, lavar a honra com sangue, retornar um mal recebido com males sem conta, acreditar muito mais na força das armas do que na força do amor era e continua sendo o que se pratica no mundo, por cristãos ou não.

Mas aqueles que se levantam para agir na dimensão ética que Jesus propôs (e nisso não importa se aceitem ou não certos dogmas ou se sigam ou não certa denominação cristã), esses são os que de fato entenderam a que veio o mestre de Nazaré. E suas vidas inspiradoras nos arrebatam com seus exemplos de amor e trabalho pela humanidade, tentando aliviar suas dores e mudar o mundo com suas injustiças.

Nesse caso, pode alguém agir como um cristão, sem se dizer cristão, como podem outros se afirmarem cristãos e se portarem na vida como anticristos! É preciso, pois, separar as coisas. Na mesma denominação amplíssima de cristianismo, há um Francisco de Assis e um Torquemada. O cristianismo, aqui entendido como a mensagem de Jesus, não é a causa de todos os males do mundo. Mas aqueles que abusam do seu nome e agem ao contrário do que ele agiu, esses sim fazem parte dos algozes sociais que estão em toda parte, nas igrejas, na política, nas famílias, na estrutura injusta da sociedade. Jesus para estes, é apenas um pretexto, um discurso, um disfarce para sua tirania.

No entanto, mesmo 2 mil anos depois da vinda do mestre, suas lições verdadeiras, legítimas, podem nos levar a um mundo melhor, aliás àquele Reino que ele anunciou.

Dora Incontri – Graduada em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. Mestre e doutora em História e Filosofia da Educação pela USP (Universidade de São Paulo). Pós-doutora em Filosofia da Educação pela USP. Coordenadora geral da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita e do Pampédia Educação. Diretora da Editora Comenius. Coordena a Universidade Livre Pamédia. Mais de trinta livros publicados com o tema de educação, espiritualidade, filosofia e espiritismo, pela Editora Comenius, Ática, Scipione, entre outros.

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