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terça-feira, 26 de março de 2024

O governo, os militares - que se acham a elite dona do Brasil - e o golpe de 1964 em artigo do sociólogo Jessé Souza

 

Uma sociedade, assim como um indivíduo, só aprende pela lembrança do que ocorreu. E não pelo esquecimento


O governo, os militares e o golpe de 1964



O governo Lula abdicou de qualquer referência ao golpe de Estado militar de 1964 no dia 31 de março. Desistiu também do museu da repressão como existe em diversos países que sofreram processos semelhantes. O debate que muitos colocam é sobre a alternativa entre um suposto pragmatismo racional de conciliar com os militares e a denúncia da covardia do governo.

Para mim, a questão é um pouco mais complexa. Afinal, não são os militares que mandam no país. Quem manda no país é uma associação entre elite global comandada pelos Estados Unidos e, como sócio menor, a elite periférica brasileira que cobra seu quinhão para oprimir o próprio povo.

Este é o arranjo do imperialismo “soft” americano para todo o Sul global: uma autonomia tutelada. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, este é o arranjo que define e explica todas as vicissitudes da sociedade brasileira. Os donos do acordo nunca foram os militares, nem na ditadura militar.

No golpe de 1964 os militares cumpriram apenas sua missão secular verdadeira que é sujar as mãos de sangue em nome dos interesses mais mesquinhos da elite. Obviamente, cobram seu preço pelo trabalho sujo que é o de auferir privilégios individuais e corporativos. O valor das forças armadas é, portanto, meramente instrumental, elas estão sempre a serviço armado da vontade de alguém.

Para se ter um golpe de Estado no Brasil são necessárias duas condições prévias: o apoio americano, que faltou a Bolsonaro, e por conta disso seu golpe fracassou; e a necessidade da elite de retirar algum líder popular do Estado — cuja apropriação privada é a verdadeira mamata da elite — por denúncias duvidosas, empacotadas pela grande imprensa, propriedade privada desta mesma elite. Para isso, sequer é necessária a presença militar como o golpe de 2016 nos mostrou.

Esse fato prova, precisamente, a enorme importância de se debater o golpe de 64. Não apenas a denúncia do autoritarismo e violência militares, mas da violência maior que é o saque recorrente e multifacetado da riqueza popular em nome de uma meia dúzia de endinheirados. Este debate teria a possibilidade de denunciar toda a opressão social secular brasileira e a quem ela serve. É isso que o povo não sabe e precisa urgentemente saber.

Em um contexto de hegemonia das ideias neoliberais e fascistas seria ainda mais necessário se fazer este contraponto. Reconstruir, recontar e relembrar o passado que condiciona nosso presente. Uma sociedade, assim como um indivíduo, só aprende pela lembrança. E não pelo esquecimento. A história está cheia desses ensinamentos.

Um deles eu acompanhei de perto: a desnazificação da Alemanha. Apenas reconhecendo a culpa no holocausto e outros crimes, com seu debate constante na esfera pública, foi possível para os alemães se autocriticarem e se transformarem em um dos povos mais democráticos de hoje. Por que não podemos criticar e lembrar do “nosso holocausto” de opressão, abandono e miséria patrocinados pela nossa elite do saque? A mudança é possível, mas ela exige não só coragem, mas também inteligência, cuja falta marca muitas das ações deste governo.

A crítica mais coerente aos militares seria a denúncia de sua “função latente” de cão de guarda dos interesses elitistas, sob o disfarce de sua “função manifesta”, mas nunca cumprida, de obedecer à Constituição e ao poder civil. Era este o verdadeiro debate que interessaria aos que lutam pela democracia no nosso país. De uma tacada se retiraria a legitimidade dos militares e se denunciaria quem os comanda de fato. Renunciar a isso não é apenas covardia. É também uma completa ignorância acerca de como funciona a sociedade brasileira e quais são as suas prioridades.

Parece existir uma completa ausência de quadros competentes neste governo para lhes proporcionar um guia de ação e uma orientação prática. Parece que tudo é improviso e reação imediata ao contexto. Um governo reativo e passivo muito longe do que sonhávamos. E vale a máxima: sem adequada compreensão e inteligência do contexto social maior o comportamento prático vai ser sempre confuso e ineficaz. É o que temos para hoje.

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