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segunda-feira, 27 de novembro de 2023

Para entender (e enfrentar) o novo fascismo (tipo bolsonarismo e mileinismo)

 

Ele tornou-se ameaça persistente, indica vitória de Milei. Odeia o Estado, surfa na crise da democracia e se aproveita do frenesi sem memória das redes sociais – para apelar às ilusões mais passadistas… É preciso examiná-lo em profundidade



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A vitória de Javier Milei na Argentina traz algumas pistas sobre como a extrema direita consegue se organizar, política e eleitoralmente, em países, contextos e situações distintas.

Primeiro, é necessário ver que a própria gramática da política mudou com a ascensão dos extremistas, assim como os instrumentos de análise. Se há poucos anos candidatos se esforçavam para dar entrevistas a jornalistas renomados e publicar artigos em jornais impressos mais relevantes, por exemplo, hoje eles dispensam intermediários e dão preferência às redes sociais. Sai a linguagem escrita, e muitas vezes a falada, e ganham relevância a imagem e o meme.

Também era comum que políticos tivessem sua oratória elogiada. Ainda hoje, a memória política de pessoas mais velhas está recheada de discursos antológicos feitos em comícios. Hoje, o palco dá voz a candidatos que são performers, personagens de si. Também por conta disso, o desastroso desempenho de Milei no debate realizado uma semana antes do segundo turno não afetou sua campanha.

Em um artigo publicado em 2022, o filósofo e professor da USP Vladimir Safatle apontava que “em um momento histórico, no qual informação e entretenimento se tornam indistinguíveis, no qual os padrões de comunicação da indústria cultural se tornam ‘naturais’, não há surpresa alguma em encontrar políticos que falam como esse ‘povo’ construído pela cultura de massa, com suas dicotomias, com sua concepção de história saída diretamente de seriados de televisão, com seus heroísmos de filme de ação”.

Nesse aspecto, descrever aspectos caricaturais ou mesmo a ignorância de figuras como Milei, Trump ou Bolsonaro apenas reforça a imagem que querem passar às pessoas. “Ou seja, em uma época na qual a indústria cultural forneceu em definitivo a gramática da política, fica mais fácil a extrema direita passar por aquela que fala a linguagem do povo”, disse ainda Safatle.

O conceito vazio de liberdade

As mensagens enviadas por estes candidatos são múltiplas. O individualismo exacerbado tem o seu limite na noção restritiva de “família” e, dentre os muitos inimigos de ocasião fabricados na retórica extremista, o Estado é o principal, como radicalizou em sua proposta Javier Milei. Ele é vendido como aquele que atrapalha a “liberdade” das pessoas. No cenário onde o empreendedorismo é louvado, o caminho deve estar “livre” para a pessoa ser bem sucedida.

Em um país no qual a política está desacreditada, como a Argentina, com a economia em situação caótica, um discurso assim pode soar como música. Mas mesmo em países onde o estado de bem-estar social é mais avançado e consolidado, qualquer ameaça de disrupção pode ser um gatilho. Não é à toa que a extrema direita cresce também em boa parte da Europa, inclusive em locais com elevado IDH. O extremismo vive e se alimenta de crises e qualquer uma delas abre uma janela de oportunidades em um mundo onde as transições se dão velozmente.

Em uma entrevista concedida em 2020, a antropóloga Letícia Cesarino apontava como este discurso conseguia ser exitoso no país no período da pandemia. “O Brasil tem todo um histórico de abandono de parte da população pelo Estado. É muito impressionante do meu ponto de vista e das pesquisas que tenho feito como de fato muitos brasileiros não esperam nada do Estado. Eles nem cogitam que o Estado deveria apoiar de forma mais decisiva e constante para fazerem o isolamento social e ficar em casa. Então são dois lados, o individualismo, esse desejo de liberdade individual, e junto uma desconfiança em relação ao Estado enquanto entidade coletiva que organiza a nossa sociedade.”

Essa noção distorcida de liberdade, tendo como parâmetro único o indivíduo, acaba afetando as mais diversas percepções. A questão da vacinação no Brasil foi um exemplo concreto. “O próprio fato de as pessoas acharem que a vacina é uma opção individual demonstra um desconhecimento completo de como a própria lógica científica da vacina funciona. Não adianta algumas pessoas tomarem e outras não. A imunidade da vacina só pode ser coletiva, isso para qualquer vacina, não só a da covid-19. Mas é impressionante como esse nível social de causalidade não faz mais sentido para as pessoas, infelizmente”, lamentava Letícia à época.

Imediatismo

Além da linguagem e da gramática, é preciso atentar também para algo que já foi dito aqui, o predomínio que existe hoje em boa parte do mundo dos valores da doutrina neoliberal. Ainda que acumule fracassos do ponto de vista econômico, o receituário que prega o individualismo e demoniza o Estado tem se tornado dominante do ponto de vista cultural. Isso implica também em imediatismo e impaciência, campo fértil para as soluções aparentemente simples vendidas pelos extremistas.

“Assim como quando vencem os progressistas, hoje que venceu a extrema direita na Argentina digo a mesma coisa: as pessoas não votam segundo linhas ideológicas. Você está votando contra o que existe com base no que você percebe em seu contexto imediato. E os ciclos políticos estão ficando mais curtos”, resume, em seu perfil no Twitter, o cientista político Elvin Calcaño Ortiz.

Talvez o problema de parte políticos tradicionais seja este: o timing. Acostumados a um tempo das ações diferente, não conseguem se adaptar a tais ciclos curtos, às vezes curtíssimos, em que a vontade do eleitor pode mudar sem aparentemente qualquer evento externo que justifique a mudança.

O professor de ciência política e relações internacionais na Universidade do Sul da Califórnia Gerardo Munck chamou a atenção para o fato de que, em 18 eleições realizadas na América Latina desde 2019, apenas no Paraguai o governo de turno saiu vitorioso, com a oposição vencendo nos demais. Ainda que opositores de esquerda e direita tenham triunfado, este estado de coisas é desfavorável aos esquerdistas, já que, uma vez no poder, costumam enfrentar a insatisfação das elites econômicas e da mídia tradicional.

Retorno a um passado glorioso

Se Donald Trump incorporou o retorno a um passado idílico com seu principal slogan de campanha, Make America Great Again (Torne a América Grande Novamente), Javier Milei também invocou o passado como farol para o futuro da Argentina.

Recorrente em sua campanha, no comício de encerramento do primeiro turno lá estava a sua promessa. “Temos que voltar a abraçar as ideias da Constituição de (Juan Bautista) Alberdi. Temos que voltar a 1860, quando de um país de bárbaros, em 35 anos, nos convertemos na primeira potência mundial”, disse. Com base neste período tido como áureo, prometeu um padrão de vida semelhante ao da Itália ou França, em um período até 15 anos, e o da Alemanha, em 20. “Se me derem 35, Estados Unidos”, enfatizou.

A construção e resgate de um passado que não considera nem índices de desigualdade e nem opressão e submissão de segmentos inteiros da sociedade se coaduna com a defesa dos ditos valores da família tradicional, uma cidadela contra as mudanças que incomodam parte dos segmentos ressentidos da sociedade. Mas muitas vezes também comunicam aos jovens que “si, si puede”, já que o país teria sido melhor em outros tempos e deixou de sê-lo por conta dos inimigos tradicionais: a esquerda, os corruptos, a casta que teria se apossado do Estado.

Isso permite ainda que o passado histórico recente seja ressignificado, como fez e ainda faz Bolsonaro no Brasil, ao adotar uma versão revisionista da ditadura militar, algo que Milei também reproduziu na Argentina.

A naturalização da extrema direita

“La Nación e La Nación+ funcionam na prática como assessoria de imprensa de Macri, agora a serviço da campanha de Milei”, relatava o jornalista, escritor e ativista LGBTQIA+ argentino Bruno Bimbi na semana que precedeu a eleição. De fato, não foram poucos os veículos da mídia tradicional argentina que optaram por estar ao lado do hoje presidente eleito no segundo turno.

E não só de adesão explícita se faz um candidato extremista, mas também de uma omissão cúmplice. Assim como no Brasil e em outros países, personagens com propostas esdrúxulas, que espalham preconceito e desinformação, não são devidamente confrontados. Em geral, ficam sem ser incomodados por um cômodo jornalismo declaratório (que, de fato, não é jornalismo), mero repetidor de falas sem contestação.

Este é um dos efeitos de uma mídia concentrada economicamente, com poucas pessoas dando as cartas em oligopólios e monopólios da informação historicamente construídos no mundo e, em especial, na América Latina, onde estão os quadros mais severos.

“Naturalizados”, tais personagens não são apresentados na mídia tradicional como ameaças à democracia, nem mesmo quando profissionais desta mesma imprensa são agredidos verbal e mesmo fisicamente, como chegou a acontecer no Brasil e na Argentina. A postura beligerante de Milei fez com que a Human Rights Watch e a Repórteres Sem Fronteira emitissem nota expressando preocupação com sua eleição.

E a “direita democrática”?

O triunfo de Milei foi viabilizado graças à transferência massiva de votos da terceira colocada, Patricia Bullrich, do Junto por el Cambio, coligação liderada pelo macrismo. E, para governar, o futuro presidente também terá que contar com o apoio deste segmento, incluído por ele mesmo no que definia pejorativamente como “casta política”.

A atração pelo poder faz com que a direita ou centro-direita logo amenize ou mesmo chegue a imitar os discursos e prática da extrema direita. Figuras como Simone Tebet ou Geraldo Alckmin, que no Brasil fizeram o movimento contrário, são exceções dentro da regra e da régua dos políticos deste campo.

O problema é que a aliança oportunista oferece poucas opções para o retorno. Ou se dá uma completa absorção deste segmento pelo campo extremista, gerando transformações em que o aliado se torna mais “autêntico” do que os originais (vide Roberto Jefferson) ou logo ele vai para as margens da política, se tornando coadjuvante. O ocaso do PSDB mostra isso no Brasil, mas não é o único exemplo.

Nos Estados Unidos, o Partido Republicano se tornou a feição mais acabada de Donald Trump. Nas primárias para 2024, seus eventuais adversários entoam a mesma canção do ex-presidente, fundada em preconceito, xenofobia, defesa de supostos valores familiares e proposição de medidas ultraliberais.

Se parte da mídia tradicional serve de escada para a ascensão destas figuras ao ser cúmplice, omissa e às vezes parceira ativa, é a direita/centro-direita que pavimenta o caminho para o exercício do poder. A defesa da democracia não serve nem como retórica.

A extrema direita pós-Milei

Fora da Argentina, apoiadores da extrema direita se animaram com o triunfo de Javier Milei. Bolsonaro foi convidado para a posse e seu séquito de seguidores vibrou, projetando um retorno ao poder em 2026 (não se sabe ainda com quem, já que o ex-presidente é inelegível).

Também houve celebração no México e até mesmo entre conservadores dos Estados Unidos. “Se alguns aparentemente não se preocupam com o que se passa na Argentina, devo alertar que a Argentina não é o Brasil de ontem. A Argentina pode se tornar o Brasil de amanhã, pois poderia engajar uma nova onda em tendências do bolsonarismo, inclusive nessas outras radicalidades”, postou o historiador e coordenador do Observatório da Extrema Direita Odilon Caldeira Neto.

Estes extremistas vão olhar para a Argentina inclusive para saber se Milei concretizará suas propostas mais radicais ou se será moderado pelos macristas, entregando o comando da economia e se baseando em manobras diversionistas para mobilizar o apoio a seu governo.

Já à esquerda, tanto lá quanto no Brasil e em outros países, cabe também observar e mesmo adaptar para si uma das características principais deste segmento. Sua estratégia de fazer política vai muito além da eleição. São mobilizações permanentes nas redes sociais onde travam o que eles mesmos chama de “guerra cultural”, terreno no qual têm sido bem sucedidos ao propagar valores discriminatórios fundamentados numa falsa “liberdade de expressão”, contando ainda com influencers e veículos que os repercutem.

Resultados como os da Polônia, no qual mulheres e jovens, em especial, foram fundamentais para tirar um regime extremista do poder, mostram que não é uma batalha perdida, ainda que desigual, já que parte significativa do poder econômico encampa o extremismo, contanto que seus lucros fiquem intactos ou aumentem.

Também nos Estados Unidos, mesmo com o avanço do campo trumpista, o direito ao aborto foi reafirmado em todos os estados que fizeram referendo após aSuprema Corte ter revertido o precedente Roe v. Wade, que assegurava a interrupção da gravidez como um direito constitucional. Agora, os republicanos temem que a questão surja na eleição presidencial de 2024 por entenderem que ela beneficiaria os democratas, favoráveis ao direito. Lembrando ainda que hoje a maioria do país vive em áreas em que o uso recreativo da maconha, outro “espantalho” da extrema direita, é legalizado.

São alguns exemplos de que não há derrotas irreversíveis nestes ciclos curtos da política. Mas é preciso lidar com essa nova gramática e entender o jogo praticado pelos extremistas.

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