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segunda-feira, 6 de março de 2023

A atual angústia do capitalismo, por André Márcio Neves Soares

 

Desde a crise de 2008, o capitalismo selvagem, traduzido pela sua face horrenda, o neoliberalismo, parece ter perdido sua paz interior.


Max Ernst

A atual angústia do capitalismo

por André Márcio Neves Soares, no Jornal GGN

No momento em que escrevo este artigo, o capitalismo, o sistema econômico prevalente na modulação da vida humana na maioria dos países do globo terrestre, encontra-se angustiado.

De fato, desde a crise dos subprimes americanos em 2008, o capitalismo selvagem, traduzido pela sua face mais horrenda, qual seja o neoliberalismo, parece ter perdido sua paz interior. Após a crise financeira de 2008, que ocorreu devido a uma bolha imobiliária nos Estados Unidos – decorrente do aumento nos valores imobiliários, desvinculado do correspondente acréscimo na renda da população -, o capitalismo sofreu uma perda generalizada de confiança, e grandes setores do sistema financeiro da América e do mundo ainda estão com suspeitas pairando sobre suas cabeças.

No entanto, a angústia do capitalismo parece estar bem disfarçada na recente discussão que envolveu alguns pensadores da pós-modernidade, como Evgeny Morozov, Jodi Dean e Cédric Durand. Nesse sentido, antes de adentrar o cerne deste texto, considero importante resumir o que pensam esses intelectuais a respeito do futuro desse sistema econômico predominante há dois séculos. Só assim poderemos estender o debate teórico para além do circuito intelectual no primeiro mundo, e propiciar aos leitores uma visão crítica que englobe a perspectiva do porvir do ponto de vista de alguém do sul global. Entendo que a tarefa não é fácil, visto os sólidos argumentos de cada um. Entretanto, penso que escapa a todos eles a percepção mais elementar, a saber, o objetivo final do sistema (re)produtor de mercadorias (capitalismo), enquanto sujeito ativo da transformação ontológica do ser humano e, por tabela, as consequências já nefastas para o planeta.

Na ordem de como foi publicado na mídia, o primeiro texto que discorreu sobre a crise do capitalismo foi o de Evgeny Morozov (1). No seu texto, Morozov critica os intelectuais à esquerda (alguns não tão à esquerda assim), como Yanis Varoufakis, Mariana Mazzucato, Jodi Dean, Wolfgang Streeck, entre outros, por flertarem com conceitos de um suposto “tecnofeudalismo”, como uma nova fase de acumulação primitiva do excedente de toda a economia global, agora fortemente dominado pelas grandes empresas de tecnologias, mas ainda atrelado ao antigo conceito extrativista do feudalismo. Por conseguinte, a lógica econômica feudal, pela qual o excedente produzido pelos camponeses era  apropriado pelos latifundiários, seria a base para elucidar seu regime sucessor, o capitalismo. Este, ao contrário dos meios de extração de excedentes considerados extraeconômicos no feudalismo, ou seja, de natureza política, quando os bens são expropriados através da violência (ou simples ameaça), promove os meios de extração de excedentes inteiramente econômicos, ou seja, pessoas livres são obrigadas a vender sua força de trabalho para sobreviver numa economia monetária.

Todavia, Morozov não está muito interessado em qual paradigma deve ser considerado; se no dito acima, de viés marxista, ou no paradigma dos historiadores não marxistas, os quais sustentam que o feudalismo não era um modo de produção atrasado, mas um sistema sociopolítico atrasado, propício para surtos de violência arbitrária, dependências pessoais e laços de fidelidade baseados em crenças religiosas e fundamentos culturais. Para ele, o mais importante para a crítica de um “feudalismo digital” ou “neofeudalismo” é identificar as principais características do sistema feudal, para viabilizar o exame de como elas podem reaparecer novamente. Nessa toada, entende que o feudalismo como sistema econômico precisa ter uma classe dominante parasitária que desfrute de um estilo de vida luxuoso às custas da miséria das outras classes que domina. Por outro lado, afirma que o feudalismo como sistema sociopolítico possui como ponto central a privatização do poder anteriormente exercido pelo Estado, bem como sua dispersão por meio de instituições frágeis e não responsabilizáveis.

Apesar de Morozov entender os argumentos de alguns desses pensadores quanto ao que confere à economia digital seu peculiar sabor “neofeudal” ou “tecnofeudal”, a saber, que os trabalhadores permanecem explorados de todas as formas capitalistas antigas, e os novos gigantes digitais são os que mais se beneficiam com seus meios sofisticados de predação, ele não concorda que empresas como Google, por exemplo, que tem seu negócio a girar em torno dos acervos de dados que ele é capaz de indexar e operar para produzir sua mercadoria de resultados de pesquisa, possa ser considerado como um mero rentista, e não como uma empresa capitalista padrão. Dessa forma, Morozov entende que apenas uma concepção expandida do próprio capitalismo é capaz de abarcar a exploração e a expropriação em um único modelo. Para tal desidério, cita Jason Moore – um ex-aluno de Wallerstein e Arrighi –, que pode ter chegado, na visão dele, a um novo consenso, quando diz: “o capitalismo prospera quando ilhas de produção e trocas de mercadorias podem se apropriar de oceanos formados por porções de natureza potencialmente baratas – fora do circuito do capital, mas essenciais para sua operação”.

Nessa perspectiva, Morozov acredita que o marxismo político deveria abandonar sua concepção de capitalismo como um sistema marcado pela separação funcional entre o econômico e o político. Ele acredita, assim como Elle M. Woods, que a teoria econômica burguesa abstraiu os aspectos sociais e políticos que envolvem o sistema econômico e delegou ao capitalismo a capacidade de deslocar as questões essencialmente políticas da arena política para a esfera econômica. Logo, a emancipação socialista só poderia se dar com a consciência de que a separação entre essas duas esferas, política e econômica, é verdadeiramente artificial. Contudo, apesar de artificial, a esfera política foi fundamental para a constituição e consolidação da esfera econômica. Logo, apresentar o capitalismo como um sistema econômico que perpetua a separação entre o político e o econômico pode ser a forma pós-moderna de hibridizar a produtividade do capitalismo. Portanto, para ele, a impressionante acumulação que acontece por meio da inovação nas gigantes do setor de tecnologia, em vez da predação e da expropriação, é a ironia final que mostra que o capitalismo de sempre ainda está muito vivo, à moda marxiana, como sistema produtor de valor.

Na sequência, a teórica política e professora americana, Jodi Dean, rebateu Evgeny Morozov ao afirmar que não reconhecer a transição do capitalismo “de sempre” para uma espécie de “tecnofeudalismo” é reduzir a potência das lutas sociais (2). Segunda ela, as formas de captura da riqueza coletiva vão muito além da velha extração de mais-valor. E dá como exemplo a “uberização”, uma nova relação entre trabalhadores e empregados junto às megacorporações, onde estas adquirem um poder político inédito diante dos Estados, análogo ao dos senhores feudais. Nesse sentido, os chamados acordos de “livre” comércio também podem ser incluídos no rol dessa nova forma de captura das riquezas alheias, pois as empresas transnacionais usam seu poder econômico quase ilimitado para exigir as mais variadas formas de indenizações, sempre que o poder político local aprova leis soberanas que prejudicam seus lucros.

Por conseguinte, Dean critica Morozov por não atentar para as novas formas de exploração, pois apenas naturaliza o capitalismo na sua constituição de acumulação ao longo da história. Com efeito, segundo ela, o capitalismo mudou a forma dessa compulsão, ao transformar o que era uma forma direta e pessoal de dominação em algo impessoal, em outros termos, em uma dominação que passa a ser mediada pelas forças do mercado, ou seja, o poder econômico é separado do poder político. Dessa forma, entende Dean que o capitalismo pressupõe a dissolução do todo em partes. Nas suas palavras: “São as ferramentas que os empregam agora. Tudo o que estava presente na unidade originária ainda está lá, mas de uma forma diferente. Sob essa nova ordem, as condições separadas de produção se unem pela mediação do mercado”.

Aparentemente ainda insatisfeita com sua crítica a Morozov, Dean se questiona se existe, de fato, evidência de uma mudança nos elementos que constituem o capitalismo contemporâneo. E mais: questiona-se sobre a natureza da exploração econômica de plataformas como o Uber, se são manifestações do capitalismo sem freios, como argumentou Morozov, ou se elas são uma nova forma de servidão feudal. Nesse ponto, para tentar clarear seus argumentos, vai buscar no relato dos Grundrisse de Marx a solução para resolver essa inversão binária que envolve servidão e liberdade. Lá, segundo Dean: “Marx descreve a massa de trabalho vivo lançada no mercado como ‘livre em duplo sentido, livre das velhas relações de dependência, escravidão e servidão e, em segundo lugar, livre de todos os pertences e posses, das formas objetivas e materiais de ser, livre de toda propriedade”. Dessa maneira, podemos pensar os trabalhadores do Uber como contratados gratuitos, não pelo que conseguem usufruir com a flexibilidade da forma e do tempo de trabalho, mas pelo que perdem em termos de direitos e garantias fundamentais que todos os trabalhadores formais possuem.

Destarte, ao contrário do que pensa Morozov, os novos “senhores digitais” não são capitalistas inovadores, que investem seus lucros em pesquisas e desenvolvimento de novas atividades para produção de mercadorias modernas e atualizadas ao sabor do gosto dos consumidores, devendo ser vistos, na verdade, como “rentistas ociosos”, já que estão a promover a maximização de seus lucros para reinvestirem em excedentes de produção que, em muitos casos, estão destruindo o próprio capitalismo (Dean cita, nominalmente, o Uber, mas também o Airbnb, a DoorDash, entre outros). Logo, esses intermediários se inserem nas relações de troca, desarticulando mercados e destruindo setores produtivos. Para ela, para dominar o mercado, os novos “barões digitais” estão a acumular riqueza por meio de investimentos destrutivos em vez de produtivos. Nessa toada, o novo capitalismo de plataforma gasta bilhões para destruir concorrentes em potencial, em ver de competir com eles através de melhorias na sua eficiência. Ao fazer isso, tornam-se senhores de segmentos de mercados fragmentados e contornam regulamentações, além de aumentarem a pressão sobre trabalhadores e clientes. Nas palavras de Dean: “O capital se torna agora uma arma de conquista e de destruição em massa”.  

Daí ela entender que o neoliberalismo se transforma em “tecnofeudalismo”, porque implode as relações sociais de propriedade que existiam, ao romper os “grilhões” do Estado ou as restrições institucionais ao mercado. Realmente, ao massacrar a concorrência, os novos capitalistas de plataforma adquirem o status de quase donos do mundo no seu segmento de atuação (quando não diversificam para outras áreas econômicas de extração de mais-valor), e se tornam capazes de exercer um poder político e econômico sem precedentes na história, pari passu com o incremento da miséria em todo o planeta. Com efeito, essas novas relações de propriedade social, novos tipos de intermediários e novas leis de movimento desembocam em novos processos de emprego do capital excedente que, se no passado dirigiam-se para fora, ou seja, por meio do colonialismo e do imperialismo, agora voltam-se para dentro de si mesmos.

Por consequência, para Dean, o “neofeudalismo” ou “tecnofeudalismo” não é mais caracterizado por relações de dependência pessoal, mas pela dependência abstrata e algorítmica das plataformas que fazem a mediação da vida cotidiana. Hoje, a fragmentação e a expropriação extraeconômica são as palavras-chave, pois os “senhores digitais”, dotados de incomparável poder econômico, exercem pressão política com base nos termos e nas condições que eles mesmos estabeleceram. Com diz Dean: “Com o parcelamento privado da soberania, a autoridade política e o poder econômico se misturam. A lei não se aplica a bilionários poderosos já que eles podem evitá-la”. Portanto, em nome de uma pretensa liberdade hiperindividual, Dean entende que a contrarrevolução produzida pelo neoliberalismo tem consistido em privatização, fragmentação e separação dos trabalhadores pseudo-livres, que estão presos num novo tipo de servidão: são dependentes de redes e práticas por meio das quais as rendas são extraídas a cada passo econômico que dão na sociedade. 

Já o professor de economia francês Cédric Durand, também criticado por Morozov, argumenta em três frentes para concordar com o conceito do “tecnofeudalismo”: i) defende que o feudalismo deve ser entendido como um sistema de captura da riqueza, assegurado por constrangimento extraeconômico, num contexto de uma pequena produção individual; ii) sustenta que as novas tecnologias não conduzem à pequena produção individual, mas a uma coletivização do trabalho sem paralelo; iii) por fim, discorda de Morozov quanto ao padrão sequencial do capitalismo “de sempre”, pois esta pretensa socialização assume um caráter regressivo, ou seja, ela mercantiliza pouco a pouco todos os aspectos da vida social, até atingir sua máxima eficiência (ainda não atingida, diga-se de passagem) de transformar cada ato vivido em mercadoria.

Neste texto, vamos nos ater brevemente à terceira argumentação de Durand, já que em relação às duas primeiras não há controvérsia significativa.

O ponto máximo da celeuma entre os pensadores citados é que, para Durand, assim como para Dean, as megacorporações de plataformas não investem pesado para fornecer inovações úteis para as pessoas e para o planeta de uma forma geral. Na verdade, seus investimentos sequer são usados para dotar a sociedade global de uma maior equidade. Pelo contrário, elas estão a produzir um nível jamais visto de alienação social, além de promover um quase total desmanche no aproveitamento do trabalho. Paradoxalmente, essa alienação e o aumento da desigualdade no mundo tem reforçado o aumento do domínio dessas redes digitais. Por exemplo, no Brasil, segundo o World Inequality Lab (Laboratório das Desigualdades Mundiais) – que integra a Escola de Economia de Paris e é codirigido pelo economista francês Thomas Piketty, autor do bestseller O Capital no Século 21 -, em relatório divulgado no início do ano passado, os 10% mais ricos no Brasil, com renda de 81,9 mil euros (R$ 253,9 mil em PPP), representam 58,6% da renda total do país. Ou, se preferirem, os 50% mais pobres ganham 29 vezes menos do que os 10% mais ricos. Isso significa dizer que a metade mais pobre no Brasil possui menos de 1% da riqueza do país e que o 1% mais rico possui quase a metade da fortuna patrimonial brasileira (3).

Para corroborar sua argumentação, Durand cita o filósofo francês Etienne Balibar, para captar com precisão o potencial regressivo da socialização contemporânea. Ele cita Balibar, que diz: “Tendencialmente, nenhuma forma de vida – como agência, atividade, passividade e até mesmo a morte – pode ser vivida fora da forma de mercadoria e da forma de valor que é, de fato, um momento no processo de valorização do capital”. O que Balibar está dizendo é que o contínuo processo de mercantilização da vida, de tudo em geral, ultrapassou a linha vermelha de significantes fundamentais para a vida humana e do planeta, como saúde, educação, conhecimento, arte, entretenimento, cuidado, sentimentos e tudo o mais na forma de “mercadorias fictícias”. Ora, isso se traduz em uma “subsunção total” ao mercado global, que resulta numa completa perda de identidade e de autonomia pessoal, em prol da lógica mercadológica que comanda a qualidade e a quantidade da vida humana. Esse é o cerne da hipótese tecno-feudal, ou seja, a mercantilização total leva à negligência de outras formas de socialização. As plataformas digitais passaram a ser os novos ecossistemas por onde flui um “oceano” de dinheiro. A função primeira dessas plataformas é, segundo Durand, “manipular as interações sociais com base nos padrões de comportamento entre pessoas não relacionadas entre si que detectam algoritmicamente”.

Dessa maneira, o novo cenário socioeconômico que está a ser criado é, na visão de Durand, o de uma “causação” cumulativa, na qual os pretensos monopolistas das gigantes digitais investem e inovam para acumular ativos intangíveis, que geram novas formas de controle social. Logo, por evidente, esses monopólios virtuais de conhecimento acarretam uma expansão sistemática de poder, que pode levar a uma troca de mercado desigual. Os usuários das novas tecnologias digitais, por sua vez, são uma nova classe de ativos dessas megacorporações, na medida em que são a matéria-prima por meio da qual elas criam e controlam os dados que lhes permitem gerar receitas. Daí que o “neofeudalismo” está no ambiente social criado e permitido/controlado por essas empresas, para a interação virtual de seus usuários (quanto mais e mais rápido, melhor) e não, necessariamente, no volume de negócios realizados dentro do espaço virtual. Onde tudo isso acaba, nenhum dos três conseguiu apontar. Mas é evidente o aumento exponencial da concentração de renda, desde que a globalização ultrapassou seus limites materiais e atingiu a estratosfera da financeirização do capital. Durand diz: “Esses desenvolvimentos são consistentes com o diagnóstico de um capitalismo disfuncional, onde a centralização do capital ocorre por meio de processos de predação amplamente desconectados das atividades produtivas – a lógica da apropriação do excedente na hipótese tecno-feudal”.

Depois dessa breve digressão a respeito da polêmica transformação do capitalismo, penso ser o momento adequado para discorrer sobre a atual angústia do capitalismo na contemporaneidade. De fato, muito mais do que um novo paradigma de concentração de riquezas com lucros historicamente excepcionais, o mais importante é atinar para as últimas palavras de Durand (motivo pelo qual o deixei no final), para o qual: “Quando a apropriação exceder a exploração capitalista, o sistema passou por uma mutação. Ou será que ela já aconteceu?”. Acredito que não existe, ainda, uma resposta pronta para essa questão. Entretanto, é possível apontar caminhos que tornem nossa investida nessa seara menos estafante em termos teóricos. Com efeito, a aparente contradição entre um modelo selvagem de exploração capitalista, o neoliberalismo, e a sua atual angústia por estar na berlinda do imaginário popular, que o faz ser alvo de todas as acusações de mal-estar civilizatório, pode levá-lo a ter que fazer uma espécie de “escolha de Sofia”: mutação ou maturação.

Outrossim, o professor de filosofia em Hamburgo-Alemanha, Samo Tomsic, escreveu recentemente dois textos complementares em que se perguntava se a sociedade não existe. Como o segundo texto não é para leigos em psicanálise, vou me ater principalmente ao primeiro (4), mas sem deixar de pontuar os aspectos mais importantes do segundo (5). Tomsic recorre aos fundadores das ciências humanas modernas (na visão de Michel Foucault), Nietzsche, Marx e Freud, para estabelecer os três eixos fundamentais da ordem simbólica: moral, econômico e linguístico. Juntos, esses três sistemas de pensamento giram em torno do que ele chamou de um “parasitismo” do infinito (o simbólico) sobre a finitude do corpo. Esse parasitismo é mais vulgarmente conhecido como “pulsão”. Como essa pulsão representa ao mesmo tempo uma força simbólica e material, e a ordem simbólica nunca é apenas uma abstração, mas também representa uma organização da materialidade, ou seja, uma economia, a característica comum dessas três ordens econômicas é que todas representam “economias afetivas”, ou seja, a questão da produção e organização dos afetos na concepção de laços sociais enquanto vínculos afetivos.

Donde Tomsic resgata a fala da ex-primeira ministra britânica Margaret Thatcher, afirmando que “Não existe isso, a sociedade”. O neoliberalismo – que deu seu “start” com forte influência dela e do então presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan – pode ser definido justamente como uma doutrina socioeconômica que preza pela proliferação de afetos antissociais. Neste ponto, parece interessante que intelectuais do porte dos citados anteriormente – Morozov, Dean e Durand – ainda não tenham se dado conta de que a mutação, de fato, já começou. Ademais, perdem-se em longas discussões teóricas-conceituais que não vão chegar a lugar algum, no sentido prático de perceber o que está debaixo dos seus narizes. Afinal, salvo se uma hecatombe (provocada pelo ser humano ou não) acontecer e só restarem poucos de nós, o sistema feudal é parte do passado histórico da humanidade. Buscar novas nomenclaturas, como Dean e Durand estão a elocubrar, para definir o capitalismo em mutação, não é útil para tentarmos entender o caminho que estamos a percorrer. Da mesma forma, negar a mutação do capitalismo, como Morozov tentou fazer de maneira simplória, é reduzir o tamanho da mudança civilizatória que o ser humano está a submeter todo o planeta.

Ora, se não existe a sociedade, o que existe afinal? Os dois cavaleiros do apocalipse citados acima – Thatcher e Reagan – se esforçaram ao máximo para estabelecer uma nova ontologia política: o neoliberalismo. Como diz Tomsic: “O axioma de Margaret Thatcher é, portanto, antes de tudo uma proibição ontológica do social: a sociedade deve ser expulsa, não apenas dos programas políticos, mas da ordem do ser”. Essa exclusão radical da sociabilidade se traduz em um novo lógos (Platão) social, baseado em relações econômicas de competição e estruturas familiares tradicionais, ou seja, a já desgastada fórmula da desregulamentação econômica e da regulação patriarcal. É claro que Thatcher e Reagan sabiam que o neoliberalismo requer essencialmente um estado antissocial e um sistema de antissocialidade organizada. A busca do crescimento econômico a qualquer custo, sem o devido cuidado na repartição do bolo de maneira justa e global, impõe a permissão para que o intruso capital atue nas esferas públicas e privadas de acordo com o imperativo maior de extrair o máximo possível de mais-valor.

Acontece que algo saiu dos trilhos nessas quatro décadas de ganância desmedida do capital, que está deixando-o angustiado. Bem de ver, é muito pouco tempo para que um sistema econômico entre “em parafuso”. Por exemplo, o feudalismo levou mais de dez séculos para se ver suplantado por um novo sistema econômico. O próprio capitalismo industrial levou mais de dois séculos até ser ultrapassado pela sua pior versão, o neoliberalismo. Então o que tem dado errado para esse sistema selvagem de exploração capitalista? Ora, podemos começar por essa frase anterior, ou seja, o neoliberalismo nunca deixou de ser, em essência, uma porção nefasta do capitalismo. Mas o capitalismo clássico, que vigorou desde a primeira Revolução Industrial, no século XVIII, não pode mais ser reconhecido dentro do modelo neoliberal. A criatura desgarrou-se do seu criador. É nesse sentido que afirmo que a mutação capitalista já começou. Mas também é possível ver sinais claros de falha nessa mutação. Como na trilogia “Matrix” entre 1999 a 2003, em que a ocorrência de uma falha gerava o “déja vu” no sistema. Lá, o “déja vu” era a repetição de uma sequência de imagens. Na nossa matrix cotidiana, o “déja vu” da mutação do sistema neoliberal é a angústia dos seres vivos que estão inseridos em um modelo econômico hiper-tecnológico de exploração do mais-valor, e que está a transformá-los em monstros disfuncionais.

Desde Aristóteles, o ser humano é reconhecido como um animal relacional. Significa dizer que os laços sociais e afetivos com os outros seres humanos (e acrescento com a natureza de forma geral) foram e são essenciais para sua permanência como espécie. O neoliberalismo falhou justamente ao negar a “relacionalidade” constitutiva do ser humano. Ao contrário, o neoliberalismo confiou essa “relacionalidade” apenas à troca econômica de mercadorias, através da competição desenfreada e agressiva. O resultado simbólico da busca material dentro do deus-mercado tem sido ganância (Marx), ressentimento (Nietzsche) e inveja (Freud). Afinal, como alerta Brown (2019) no seu livro (6), as ruínas do neoliberalismo são, nada mais nada menos, do que as ruínas produzidas pelo neoliberalismo, a arruinar a sociedade e sua sociabilidade. Mais claro impossível, de que esse modelo econômico não poderia durar.

Não surpreende, portanto, que, se por um lado os universais políticos da Revolução Francesa (“Liberdade, Igualdade e Fraternidade”) ainda permanecem no imaginário popular – acrescidos de outros significantes, como solidariedade,  flexibilidade,  emancipação, bem  comum etc. -, por outro o  quadrivium político do liberalismo econômico apontado por Marx, a saber, “liberdade, igualdade, propriedade e Bentham” é o que de fato prevalece, sendo que o utilitarismo de “Bentham” simboliza o interesse privado sobre o bem comum, do antissocial sobre o social, no qual a forma mercadoria e a propriedade privada privilegiam a competição sobre a solidariedade e a produção ininterrupta do mais-valor desmantela cada dia mais os laços de coesão da sociedade. Como diz Tomsic: “Em última análise, ninguém é verdadeiramente dono da liberdade, exceto o mercado … enquanto sujeitos do modo de produção capitalista, todos nós estamos colocados em uma situação em que devemos delegar nossa liberdade potencial ao mercado, que será livre para nós”.   

Enquanto esse quadrivium marxiano imperar, a verdade é que estaremos submetidos à servidão, à desigualdade, à expropriação e à pulsão do capital. Daí Tomsic alertar para a potência desenfreada do capital, em denunciar qualquer tentativa de reverter a privatização capitalista do político como totalitária. A consequência exagerada dessa denúncia pode incrementar os populismos, tanto de direita como de esquerda, numa ambivalência que, segundo ele, “sugere que podemos estar lidando aqui com uma política de transição, nem inerentemente de esquerda nem inerentemente de direita”. O que Tomsic chama de ambivalência, eu chamo de ponto nevrálgico da mutação política capitalista. De fato, o arrefecer do simbólico “Welfare State” e o desmantelamento da alteridade humana na sua interdependência do outro, em prol de um individualismo extremo, tem nos levado a um modelo econômico que nem os mais gabaritados especialistas sabem aonde desembocará. Se um desses populismos se tornar hegemônico no mundo, o casamento entre a política e a economia será definitivamente sacramentado, e a mutação do capitalismo se concretizará, com nefastas consequências para o social. Afinal, temos visto as mazelas provenientes desse namoro nas últimas quatro décadas.

Nesse sentido, quando eu disse que escapou aos primeiros três pensadores citados o objetivo final do sistema (re)produtor de mercadorias (capitalismo), significa dizer que este se coloca como sujeito ativo intermediário da transformação ontológica do ser humano. Com efeito, não estamos mais falando do capitalismo de sempre em moldes digitais, nem mesmo de um arquétipo tecno-feudal de capitalismo, mas de uma mutação transumanista do ser humano. Realmente, se o casamento da política com a economia se consumar, o populismo totalitário, não importa de qual viés, proverá uma pequena parte da população mundial de benesses que ainda não podemos sequer imaginar. Porém, infelizmente, essas benesses estão prometidas para apenas uma minoria da humanidade, se o “Homo Deus” de Harari (2016) de fato vingar (7). Essa é a real mutação do capital e toda fonte de sua angústia: que novo Frankenstein (Shelley) sairá desse casamento? Será duradouro dessa vez ou será ainda mais efêmero e destrutivo do que seu anterior? Dará conta das garantias prometeicas que forneceu para suplantar a sociedade do bem comum?

Contudo, apesar de tanta angústia, é preciso aquiescer que promessas grandiosas não faltam, mesmo que eivadas de desconfianças e insucessos. Por exemplo, o astrofísico e professor britânico, Martin Rees, escreveu, ainda no início desse século, um livro alertando sobre os perigos de um desastre ambiental para o futuro da humanidade (8). Apesar de serem alertas muito importantes, o livro também desvela a crença desse humanista convicto nas potencialidades quase divinas da raça humana. Não por acaso, bem no final do livro ele se pergunta: “O cosmos mais amplo tem um futuro potencial que poderia ser definido como infinito. Mas serão estas vasta extensões de tempo preenchidas com vida, ou ficarão vazias como os primeiros mares estéreis da terra? A escolha pode depender de nós, neste século” (p. 205). Nessa perspectiva, se a vida não se extinguir no planeta terra, especialmente por ação humana, Rees parece corroborar com a ideia de que o ser humano pode (e deve) fazer todos os esforços possíveis para colonizar o espaço. Mas esse entendimento é em essência ambíguo, para não dizer contraditório, pois, como ele mesmo escreve no livro, o custo dessa exploração galáctica para o planeta, por assim dizer, também pode ser fatal para a vida na Terra. De fato, um simples erro de cálculo, caso o ser humano consiga conhecimento suficiente para tal empreitada, pode simplesmente explodir o globo terrestre.

Não surpreende, portanto, que o capitalismo angustiado esteja a se apegar ao que sempre enxergou como sua tábua de salvação, nos momentos de encruzilhada: a guerra. Como o cenário que Rees descreveu ainda parece bem distante, resta ao grande capital um conflito bélico de grandes proporções para tentar sair da “sinuca de bico” que a mutação digital vem ocasionando na vida cotidiana de todos/as. Isso sem olvidar a possibilidade dessa mutação fugir do controle do capital, o que parece, com efeito, estar a se confirmar. É por isso que o filósofo alemão Jurgen Habermas se mostra tão desesperado num artigo recente sobre a guerra no leste europeu (9). Ao aceitar a alternativa de compromissos toleráveis, Habermas parece antever o espectro que rondou as duas guerras mundiais anteriores, onde o sonambulismo dos principais atores daquela época quase levou o mundo ao colapso. Não obstante sua total condenação aos horrores desse conflito, Habermas é pragmático o suficiente para entender que não haverá vencedores e vencidos. Logo, pleiteia a fim da guerra, mesmo que isso implique em, como diz, “salvar a pele de ambos os lados”.

Apesar de louvável a atitude de Habermas, ele deixou de lado justamente o ponto fundamental desse conflito que estamos a esclarecer: a mutação do capital. Para além do predomínio de forças entre as nações, algo muito óbvio, está a capacidade do vencedor de gerenciar o avanço tecnológico de acordo com o seu interesse. Nesse sentido, não se trata mais de quantos mercados o capitalismo continuará explorando ou desenvolvendo, nem dos novos que porventura possa agregar. Como a nova criatura ultraliberal digital (Frankenstein) matou o seu criador, assim como o ex-Frankenstein (o capitalismo industrial) matou seu antigo criador, a saber, o mercantilismo, de monstros em monstros, o sistema de expropriação e apropriação do grande capital internacional parece ter chegado na encruzilhada de um novo alvorecer, de um tipo de transhumanismo que começou lá atrás, com as primeiras máquinas a vapor. De fato, com várias décadas de atraso, o capitalismo totalitário de George Orwell e Aldous Huxley vem imperando desde o início do século XXI, porém com roupagem mais parecida com a apresentada pela série “Altered Carbon” da Netflix.

Trata-se mais de uma mutação conjunta entre máquina/mercado e humano que só vingará se, realmente, o animal humano conseguir escapar do seu casulo terrestre. Pois, como bem frisou Rees, os recursos da terra estarão quase esgotados quando (e se) conseguirmos esse feito. O que restará para os desafortunados que aqui ficarem, relegados a meros sobreviventes num mundo sem vida pulsante, pode ser uma espécie de apocalipse zumbi, como na série “The Walking Dead”. Ao procurar incessantemente alternativas para aumentar as capacidades intelectuais, físicas e psicológicas humanas, para superar suas limitações fundamentais e impelir a erradicação do sofrimento causado por doenças e obtenção da imunidade aos efeitos do tempo (como envelhecimento e a morte), e a capacidade de se transformar em diferentes seres com habilidades altamente expandidas a partir da condição natural, esse único animal dotado de consciência (até prova em contrário) tem usado as forças poderosas do mercado, ainda que na maior parte do tempo inconscientemente, para transcender a si mesmo. Como indicou o biólogo Julián Huxley, considerado o fundador do transumanismo:

“Até agora, a vida humana tem sido geralmente, como Hobbes descreveu,´desagradável, brutal e curta´; a grande maioria dos seres humanos (se ainda não tenham morrido jovens) são atingidos com a miséria… podemos justificadamente manter a crença de que existem estas terras de possibilidade, e que as atuais limitações e frustrações miseráveis ​​de nossa existência podem ser, em grande medida superadas. A espécie humana superada pode, se o desejar, transcender a si mesmo – não apenas esporadicamente, um indivíduo aqui de uma maneira, um indivíduo lá de outra maneira, mas em sua totalidade, como a humanidade”. (10)

Ainda assim, enquanto esse casamento entre a política e o mercado não resultar concretamente no “Big Brother” orwelliano mundial, resta-nos uma esperança. Pessoalmente, faço parte do grupo pessimista que entende já termos ultrapassado o limite de retorno para uma vida sustentável no nosso planeta. Com efeito, não faltam evidências “pipocando” em artigos sérios de intelectuais a esse respeito. Mas também não compactuo com a tese derrotista de uma minoria que já entregou os pontos sem lutar. Se outra razão não tiver, esta tese vem bem a calhar aos detentores do grande capital digital na consumação do projeto final de abandono do que restar nessas paragens.

Nesse ponto, a real angústia do capital está em que condições chegará ao final dessa mutação. Se conseguir manter um exército de alienados-zumbis suficiente para consumir os recursos terrestres – seja de maneira mais acelerada em momentos de guerra, seja de forma mais cadenciada em tempos de puro espetáculo – sem interromper as cadeias de transformação do ser humano no estágio mais próximo possível do “homo deus”, então o capitalismo terá realizado a profecia do homem-máquina lá atrás de Marx. Se não conseguir manter estruturada minimamente uma sociedade dividida (cada vez mais feroz) em classes bem antagônicas, quanto ao resultado final dessa expropriação e apropriação do capital, porém homogêneas na sua alienação do prazer instantâneo de produzir e consumir bens descartáveis, aí o sistema (re)produtor de mercadorias infinitas corre o risco de, por assim dizer, chegar a um vale-tudo, um salve-se-quem-puder, que poria em risco o projeto de vida intergaláctico daqueles que realmente importam para ele: os donos do poder.

Assim como um vírus efetua sua mutação para sobreviver mais tempo no corpo do hospedeiro, e propiciar mais tempo de vida para ele continuar suas atualizações genéticas em busca de um equilíbrio que garanta sua permanência na natureza (vide recentemente a COVID-19 já com suas inúmeras mutações), o grande capital encetou recorrentes mutações na sua forma de sobreviver no hospedeiro humano. Apesar do equilíbrio nunca ter sido atingido, assim como na natureza o equilíbrio viral é muito tênue, ele sobreviveu aos solavancos de guerras, revoluções e, por que não, a tempos pacíficos. Mas a angústia capitalista sugere, assim como a COVID-19, que o trem que leva a aventura humana na terra pode estar a descarrilhar. Não é possível ter certeza de nada ainda. Porém, é possível visualizar alguns cenários. Estes, entretanto, ficarão para um futuro texto. 

REFERÊNCIAS:

  1. https://outraspalavras.net/pos-capitalismo/tecnofeudalismo-ou-o-capitalismo-de-sempre/;
  2. https://outraspalavras.net/pos-capitalismo/sistema-economico-igual-ao-que-sempre-foi/;
  3. https://wir2022.wid.world/www-site/uploads/2022/03/0098-21_WIL_RIM_RAPPORT_A4.pdf/Págs. 187 e 188;
  4. https://aterraeredonda.com.br/a-sociedade-nao-existe/;
  5. https://aterraeredonda.com.br/a-sociedade-nao-existe-parte-ii/
  6. BROWN, Wendy. Nas Ruínas do Neoliberalismo. São Paulo. Editora Politeia. 2019;
  7. HARARI, Yuval Noah. HOMO DEUS – Uma breve história do amanhã. São Paulo. Companhia das Letras, 2016;
  8. REES, Martin. HORA FINAL. O desastre ambiental ameaça o futuro da humanidade. São Paulo. Companhia das Letras. 2005.
  9. https://www.ihu.unisinos.br/categorias/626338-europa-entre-a-guerra-e-a-paz-artigo-de-juergen-habermas;
  10.  Huxley, Julian (1957). “Transhumanism”, 25 de junho de 2016, Wayback Machine. Retrieved February 24, 2006;

André Márcio Neves Soares é doutorando em Políticas Sociais e Cidadania pela Universidade Católica do Salvador – UCSAL.

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