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terça-feira, 9 de novembro de 2021

Xadrez das raízes do negacionismo pró-Casa Grande e a volta da República Velha, por Luis Nassif

 

O desafio da reconstrução terá apenas duas possibilidades viáveis. O Lula de 2002 e o Lula de 2022, que poderá ser o mesmo, ou mais atirado.

GGN:

Peça 1 – as crises do capitalismo

Nos Estados Unidos, o pós-trumpismo levou a um presidente medíocre, Joe Biden, ameaçando trazer Donald Trump de volta. Mostra que não basta a visão do horror para devolver a sanidade aos países.

O momento atual repete – alguns degraus acima – a desestruturação política e econômica do final do século 19 e a perda de rumo das primeiras décadas da República. Abordo isso em meu livro “Os Cabeças de Planilha”.

Internacionalmente, viviam-se fenômenos relacionados e que se repetem agora:

  1. Revolução tecnológica, um século atrás representada pela energia elétrica, telégrafo sem fios, motor a vapor, vários serviços urbanos etc. e, agoira, pelo avanço inexorável da digitalização.
  2. Expansão do capitalismo financeiro, que enxerga nas novas invenções uma oportunidade ampla de negócios globalizados.
  3. Na outra ponta, invenções exterminadoras de emprego. No início do século, o fordismo acabou com o emprego – e o poder político – dos artesãos. Agora, a robótica e as plataformas eliminam o emprego formal e enfraquecem o sindicalismo.
  4. Em ambos os momentos, um enfraquecimento da produção, comprometendo fundamentalmente o desenvolvimento nacional, acentuando as disparidades sociais, até explodir em crises políticas.

Peça 2 – a retórica dita ou maquiada de “científica” do capitalismo financeiro

Tanto no início do século como agora, a expansão do capitalismo financeiro cavalgava supostas teorias científicas, que consagravam o primado das vantagens competitivas e vendiam uma ilusão: se o país oferecesse todas as vantagens ao capital financeiro, ele transbordaria das nações centrais para as periféricas, trazendo o desenvolvimento. 

Nos países periféricos, o capital financeiro internacional se associou aos capitais nacionais e enveredou pela política usando os arautos dessa suposta ciência:

  1. Aliança com os setores mais internacionalizados da economia – no início da República, os barões do café, agora os bancos de investimento.
  2. Aliança com os partidos que representavam esses setores. No início da República, o Partido Republicano Paulista. Na Nova República, o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), essencialmente paulista. Tanto em um caso quanto no outro, eram partidos progressistas na Monarquia e na Ditadura; depois, tornaram-se partidos conservadores, exterminadores de direitos. No pós-ditadura, a porta de entrada foi Fernando Henrique Cardoso e o Plano Real. Basta conferir a relação de patrocinadores do Instituto Fernando Henrique Cardoso.
  1. Cooptação das autoridades econômicas, Rui Barbosa no início da República; os economistas do Real nos anos 90. Todos tornaram-se sócios do capital financeiro.
  2. As receitas dos “financistas” vendidas como a última palavra da ciência mundial, e transformadas em slogans centrais de campanhas políticas.
  3. No começo do século 20, endosso completo da mídia escrita, maior fator de influência nos governos, apesar dos índices de baixa alfabetização do período; e no século 21, de toda a mídia corporativa.

A atual onda da financeirização

O boom atual da financeirização obedeceu ao mesmo roteiro. A desregulação da economia, a apropriação das políticas econômicas nacionais pelos mercados, a cooptação de setores da academia repetindo o modelo de um século atrás.

Tanto no passado como agora, o modelo levou a uma concentração inédita de riqueza nos países centrais, ao aprofundamento da miséria nos países periféricos, reduzidos à mera condição de fornecedores de matérias primas.

Pior, houve uma parceria com capitais nacionais. Em vez de instrumentos de capitalização das empresas, os capitalistas nacionais tornaram-se sócios dos movimentos especulativos do capital internacional, tirando seu lucro das concessões de serviços públicos, dos créditos ao setor público, de fusões e incorporações que não agregavam nada à capacidade produtiva e à geração de emprego.

Nos dois períodos, o poder financeiro-político acumulado pelo capitalismo financeiro contaminou toda a chamada democracia ocidental, jogando para segundo plano qualquer veleidade civilizatória. Não havia um conjunto de ideias articuladas, uma liderança moral, intelectual, política, capaz de impedir o caminho para o desastre.

No passado, o resultado foram as explosões políticas descontroladas, com a Revolução Russa – tendo como alvo o poder do czar -, e o nazi-fascismo criando inimigos internos como fator de mobilização.

Peça 3 – os desequilíbrios atuais

Durante décadas, o capitalismo financeiro vendeu a ideia de que, se fosse feita a “lição de casa”, o mundo explodiria em progresso e todos seriam beneficiados. Dizia isso em nome da ciência econômica.

A crise de 2008 desmontou a retórica, promovendo uma frustração global em relação ao suposto conhecimento científico dos economistas. Mas o extraordinário poder acumulado no período anterior à crise, acentuou-se no período seguinte, com bancos centrais e governos nacionais promovendo políticas econômicas que fortaleceram ainda mais o capital financeiro e aprofundaram ainda mais a miséria e a descrença em relação à ciência.

Paralelamente, a revolução tecnológica, sem regras, sem limites, trouxe um conjunto de ameaças ao equilíbrio social:

  1. A eliminação de empregos.
  2. O capitalismo de vigilância, através das redes sociais, no qual todos os passos dos cidadãos são mapeados.
  3. O poder corrosivo dos algoritmos das redes sociais.
  4. A desorganização do mercado de informações, com mídia corporativa (no Brasil) e redes de ultra direita disputando narrativas e recorrendo a fake news.

As semelhanças com a República Velha

A situação do Brasil, hoje em dia, é em tudo similar à da República Velha. Há personagens que parecem saídos das brumas do tempo, no bacharelismo vazio de um Luís Roberto Barroso e no economicismo mistificador de um Edmar Bacha, que em tudo lembram setores intelectuais do início do século, que faziam da cultura escada para conquistar um canto nas ante-salas do poder econômico da Velha República.

Portanto, a desconfiança em relação à ciência não está restrita apenas ao formato supersticioso assumido pela ultra-direita, nas bandeiras anti-vacina, mas também nos quadros intelectuais em relação ao futuro tecnológico.

Ou seja, principal desorganizador da política, do equilíbrio das regras sociais, a insegurança em relação ao futuro é uma sensação generalizada, expondo sociedades inteiras a Trumps, Bolsonaros, Erokans e dragões de toda a espécie..

Peça 5 – as crises políticas paralelas

O grande problema atual é o modelo implementado nos últimos anos, excludente, anti-social, tendo os seguintes pontos em comum com a República Velha e com a Europa e Estados Unidos dos anos 20 e 30:

  1. A explosão escandalosa da miséria.

Na República Velha pela falta de políticas de inclusão e abandono completo dos negros no pós-Abolição; agora, pelo desmonte de todas as políticas sociais em vigor e da legislação trabalhista, com Congresso e Supremo atuando conjuntamente no aprofundamento dos efeitos negativos das novas tecnologias. O início foi o governo Temer e a tal Ponte para o Futuro.

  1. O estreitamento do poder

Na República Velha só havia espaço para as famílias tradicionais, que usavam o estado como extensão do poder familiar. Não havia espaços de participação para nenhum outro segmento social. O país se dividia entre a plutocracia e a gendarmeria de classe média intelectual associada, dentro da política café com leite. O Brasil pós-Temer estreitou o acesso ao Estado. Orçamento, serviços públicos, tudo passou a ficar a reboque dos interesses financeiros, com a sociedade civil sendo afastada de todos os conselhos participativos. A falta de um discurso unificador faz com que a insegurança e a revolta sejam difusas, canalizadas para os bolsões anti-sistema, seja através das religiões, dos movimentos ou das coortes bolsonaristas.

  1. A diluição do discurso político.

Bolsonaro foi o ápice da selvageria. A reação contra ele, porém, é difusa.

Porta voz do mercado, a mídia limita-se a combater as posições dele frente à pandemia e os desvios de linguagem e postura, mas endossando as políticas corrosivas de Paulo Guedes. Não há noção do perigo real à frente. Cada grupo quer tirar sua casquinha até onde der.

Peça 6 – o papel dos estadistas

A crise de 1929, antecedida e sucedida por guerras mundiais, mostrou a falência do capitalismo financeiro como agente de promoção do desenvolvimento e da paz social. Mas só depois de 85 milhões de mortos na 2a Guerra, o mundo acordou para a necessidade de uma nova concertação.

A diferença entre barbárie e civilização dependeu exclusivamente dos estadistas que surgiram em cada país, Roosevelt nos Estados Unidos, Hitler e Mussolini nos países do Eixo.

No pós-guerra, a reconstrução só foi possível devido à presença de lideranças fundamentais, os herdeiros de Roosevelt, nos Estados Unidos, Winston Churchill na Inglaterra, Charles De Gaulle, na França e, posteriormente, Konrad Adenauer, na Alemanha.

E agora?

O desafio é amplo:

  1. A necessidade de juntar o maior espectro possível de setores em torno de um plano de salvação nacional, de setores da economia real, do agronegócio, do setor financeiro, aos movimentos sociais, às forças municipalistas, Academia etc .
  2. Sob a batuta do presidente, remontar todas as políticas nacionais com participação direta de agentes econômicos e sociais.
  3. Discernimento para identificar questões-chave, sobre as quais não se pode tergiversar, o que significará visão estratégica para montar alianças para enfrentar esses obstáculos e administrar o Congresso.
  4. Superar a enorme desinformação que campeia em todos os setores do país, especialmente no meio empresarial, incapaz de entender os temas que mexem com os chamados interesses difusos do país. Enfrentar também a desinformação do Supremo Tribunal Federal, atualmente capturado pelo mercado em cima das fantasias do Novo Iluminismo.
  5. Manter a chama da esperança na fase inicial de reconstrução até começar a colher os frutos.

Peça 7 – os estadistas brasileiros

Estadistas não se fabricam com manchetes de jornais.

Os candidatos da 3a Via são inexpressivos para qualquer ensaio de concertação. O único foco da dupla mídia-mercado é qualquer pessoa – literalmente, qualquer pessoa – que possa atrair a atenção do público. Peidou colorido?, vira presidenciável.

Todos têm em comum uma postura anti-política social, um antipetismo invencível, uma visão totalmente excludente da política e uma carência de biografia.

Restam dois políticos com visão nacional: Ciro Gomes e Lula.

Há duas diferenças fundamentais entre eles.

A primeira, na formulação de projeto de país. A segunda, na estratégia para implementá-lo.

Ciro acredita no desenvolvimentismo. Acionam-se as ferramentas clássicas – câmbio, política monetária, gastos públicos, prioridade para o mercado interno – e o crescimento abrirá espaço para as demais políticas públicas.

Mas é dono de uma visão autocrática da política. Provavelmente abrirá pouco espaço para setores e movimentos participarem da construção das políticas setoriais. E a estratégia de enfrentar todas as forças existentes apenas com o poder do discurso e das grandes ideias é uma utopia – desfeita, aliás, quando na votação da PEC dos Precatórios mostrou sua desatenção em relação até aos movimentos de seus seguidores mais próximos.

Já Lula tem visão estratégica da política e visão sistêmica do país, mas com menos ênfase na economia. Com ele haverá seguramente a participação de industriais, agricultores, movimentos sociais, sindicatos, associações empresariais na construção das principais políticas públicas. Mas haverá dúvidas sobre como enfrentará os dois grandes desafios da reconstrução:

  1. O cartel financeiro e
  2. o cartel da mídia.

Nos seus dois governos, cedeu em tudo para o mercado. Provavelmente o país teria mergulhado em um profundo déficit externo, não fosse a crise de 2008 – que promoveu um reequilíbrio no câmbio. Antonio Palocci e Henrique Meirelles atuavam meramente como despachantes do mercado. 

Em contrapartida, ganhou espaço para montar as mais bem sucedidas políticas sociais da história.

Peça 8 – a grande indagação

Como seria o Lula 2022? Teria a mesma habilidade política do Lula de 2002, mas, agora, disposto a enfrentar o grande poder do mercado, canalizando seu potencial para programas de desenvolvimento? Entraria enfraquecido pelo antilulismo visceral da mídia, ou fortalecido pela exposição dos grandes erros do ultraliberalismo pós-impeachment?

Ciro insiste para que Lula explicite suas ideias. Neste momento, explicitar significaria criar resistências prévias nos setores que possam ser afetados. Por outro lado, a não explicitação deixará no ar a dúvida sobre qual Lula assumiria em 2022.

De qualquer modo, o desafio da reconstrução terá apenas duas possibilidades viáveis.

  1. O Lula de 2002.
  2. O Lula de 2022, que poderá ser o mesmo, ou mais atirado.

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