Assim como os grandes gênios da humanidade, Kardec foi um homem imerso na História e sua cultura, e, portanto, de contradições.
Kardec, raça e ciência
por Matheus Laureano
O espiritismo é uma doutrina em progresso. O espiritismo também é uma doutrina pedagógica. É preciso considerar essas duas afirmações para um melhor entendimento do espiritismo, pois se tivermos uma acepção de que o espiritismo é algo pronto e acabado, não tem o que discutir, melhorar e nem mesmo modificar quaisquer das ideias e teorias espíritas. É uma doutrina pedagógica porque busca, principalmente, a melhoria da sociedade e dos indivíduos por meio da educação, do diálogo e da busca pela verdade.
Assim como os grandes gênios da humanidade, Kardec foi um homem de contradições. Primeiramente há que considerar a Doutrina Espírita uma obra muito mais dele que dos espíritos desencarnados. Foi ele quem tomou todas as ações de pesquisar, que mensagens deveriam conter nas obras, quais foram os espíritos escolhidos, quais eram os(as) médiuns de confiança e, mais que tudo, desenvolveu a teoria espírita baseada em seu arcabouço teórico e histórico. A genialidade de Kardec, entre outras coisas, se demonstra na capacidade que ele teve de se deparar com o fenômeno espírita, oferecer uma compreensão de toda a sua magnitude e buscar por toda a sua vida dar corpo pedagógico, tornando-o simples para a humanidade.
Embora tudo isso seja a sua essência, Kardec era um homem inserido em determinado contexto e dele foi prisioneiro também. Em diversas oportunidades ele foi além de seu tempo, tornando o mundo mais palpável e compreensível, uma vez que abriu o véu da obscuridade e trouxe luz aos fenômenos sobrenaturais, naturalizando a realidade espiritual.
Dito estes pontos breves, introdutórios e importantes para o que se segue, vamos ao que nos propomos para esse breve artigo. Antes, quero avisar que o texto é um pouco duro. Não foi fácil escrevê-lo. Tenho em Kardec uma admiração gigante, foi por conta dele que o espírito crítico se iniciou em mim, assim como a vontade de estudar e ler ainda mais. Não foi fácil quando descobri que Kardec foi racista e isso já tem mais de 20 anos, e depois de um tempo refletindo consegui compreender que somos todos seres em evolução e a única coisa de Kardec que morreu em mim, foi a sua sacralização, e nasceu um ser incrível e cheio de contradições, assim como todos nós.
Kardec foi racista! Sim, Kardec foi racista e isso tem um grau importante (e devastador) em sua obra. Quem estuda Kardec em seus livros e textos, percebe que tudo sempre foi pautado pela fraternidade e entendimento de que a educação é o meio de transformação da sociedade; sempre buscou o respeito, a igualdade, a liberdade e tudo o que pode engrandecer a vida humana. Um humanista nato. No entanto…
O primeiro texto[1] que exemplifica o racismo de Kardec é intitulado “A Perfectibilidade da Raça Negra”, foi publicado na edição de abril de 1862 da Revista Espírita. Esse texto é uma busca, por meio da Frenologia, de inserir a sociedade europeia como o supra sumo do progresso humano à sua época. Eu poderia dizer, como muitos já tentaram, que foi uma tentativa de compreender as diferenças sociais por meio da Frenologia, mas como verão adiante, Kardec vai deixar claro a sua predileção pela exaltação à sociedade europeia, mesmo que lance mão de ideias absurdas.
Nesse referido texto diz Kardec:
“Assim, como organização física, os negros serão sempre os mesmos. Como Espíritos, são inquestionavelmente uma raça inferior, isto é, primitiva. São verdadeiras crianças às quais muito pouco se pode ensinar. Mas, por meio de cuidados inteligentes é sempre possível modificar certos hábitos, certas tendências, o que já representa um progresso que levarão para outra existência, e que lhes permitirá, mais tarde, tomar um envoltório de melhores condições.”[2]
A maneira como Kardec se refere aos negros, assemelha-se a alguém relatando que está levando um cachorro a um centro de adestramento para modificar alguns hábitos e se comportar de acordo com o que estabelecemos como norma de conduta. Trazendo para uma perspectiva de pensamento contemporâneo, há uma desumanização do negro, em que se assemelha a animais que precisam ser domados para viverem em sociedade.
Em outro trecho do mesmo texto, ele diz:
“(…) a raça negra, enquanto raça negra, corporalmente falando, jamais atingirá os níveis das raças caucásicas, mas como Espíritos é outra coisa: pode tornar-se e tornar-se-á aquilo que somos. Apenas necessitará de tempo e de melhores instrumentos. Eis por que as raças selvagens, mesmo em contato com as raças civilizadas, ficam sempre selvagens. Entretanto, à medida que as raças civilizadas se desenvolvem, as selvagens diminuem, até o desaparecimento completo, como desapareceram as raças dos caraíbas, dos guanches e outras. Os corpos desapareceram, mas em que se transformaram os Espíritos? Alguns talvez se achem entre nós.”[3]
Como se diz no ditado popular, Kardec “morde e assopra”. Ao mesmo tempo em que rebaixa os negros indicando que nunca alcançarão a evolução espiritual dos brancos enquanto encarnados em corpos negros (por conta da constituição física), coloca um fio de esperança na evolução espiritual, que é se transformar em um europeu com as sucessivas reencarnações, branqueando a raça negra até o ponto em que ela desapareça. Eugenia! Vale salientar que essa ideia de branqueamento da população negra foi muito recorrente no século XIX, inclusive no Brasil, em que o governo incentivava a miscigenação e a vinda de europeus para ocupar o Brasil para branquear a população no intuito de ela se parecer mais com a europeia. Além de cruel, evidencia uma percepção muito rasa e racista acerca das diferentes culturas. Kardec ou não sabe, ou esconde o processo de desaparecimento de sociedades nativas pelo mundo por meio de matanças perpetradas pelos caucásicos europeus em busca de expandir seus comércios e de dominar o mundo por meio da força e da escravidão. A escravidão existia também na África, mas nenhum povo foi capaz de tornar a escravidão a maior fonte de renda do que o Cáucaso. Com a dominação europeia os povos nativos eram mantidos em escravidão e os brancos surravam, estupravam, matavam e torturavam diariamente para manter a produção, enquanto em casa rezavam com a bíblia próximos a uma mesa farta, produto dos seres humanos escravizados e famintos que sofreram de tudo para que o cristão branco europeu pudesse deitar a cabeça tranquilamente todas as noites. O civilizado branco foi o principal responsável pelo extermínio de dezenas de povos nativos pelo mundo.
Neste ponto, Kardec sofria ou de uma ignorância imensa, ou de um eurocentrismo patológico que não o deixou enxergar além do centro de Paris. Digo isso porque várias pessoas ao escreverem sobre o racismo de Kardec pensam que Kardec nunca viu um negro, que não havia negros na França, que só se sabia de notícias, mas é um ledo engano.
Os negros estão na Europa desde o final do século XV, não somente como serviçais, mas também em outras profissões e sendo recebidos com respeito e honraria quando enviados por franceses brancos de suas diversas colônias. Em 1687, o rei Luís XIV recebeu um negro, designado por franceses dominicanos dizendo que se tratava de um herdeiro do trono do reino de Assine (Costa do Marfim, África). Tratado com honra real, ele foi batizado pelo bispo Bousset e teve como padrinho o próprio rei. No final do século XVIII alguns poucos negros eram enviados à Europa para estudar ou terem treinamento religioso.[4] Além disso, era muito comum as famílias ricas terem serviçais negros(as) para todos os tipos de trabalho. Então, Kardec não somente viu negros(as), mas teve oportunidade de conhecer, conversar e aprender sobre as sociedades africanas, pois a presença negra na França era comum.
Em agosto de 1864, na Revista Espírita, Kardec também toca no assunto sobre a superioridade da raça branca sobre as demais raças[5]. Na Revista Espírita de fevereiro de 1867 na seção variedades, Kardec dispõe acerca de um homem negro, cego e escravo que tinha aptidão de tocar qualquer música, uma vez tendo-a escutado. Desde músicas populares até as mais difíceis músicas clássicas. Para dar explicação à luz da Doutrina Espírita, Kardec diz que “como a raça negra em geral, e sobretudo no estado de escravidão, não brilha pela cultura das artes, há que concluir que o Espírito de Tom não pertence a essa raça, mas que nela se encarnou como expiação ou como meio providencial de reabilitação dessa raça (…)”. Mais adiante diz também que a Lei da Reencarnação vem trazer a fraternidade universal e que é inconcebível que haja preconceito contra qualquer pessoa.[6]
Em A Gênese, Kardec utilizava como sempre, do conhecimento científico da época e discorre dizendo que a espécie humana não teve um só princípio, mas diversos e espalhados pelo globo. Exemplifica isso falando que as “diferentes” raças tiveram origens próprias e de forma simultânea ou sucessivamente em diferentes partes do mundo[7]. Até para criticar a versão bíblica acerca de Adão Kardec diz que “Não se conceberia, pois, que esse tronco tenha tido como descendentes povos numerosos e tão atrasados, de uma inteligência tão rudimentar, que beiram, ainda em nossos dias, a animalidade” (grifos nossos).
Então, vamos refletir um pouco… Kardec dizia que a raça negra estava na infância espiritual, e em A Gênese diz que as raças surgiram simultaneamente ou sucessivamente. Isso quer dizer que o corpo negro é destinado exclusivamente às primeiras encarnações? Ou que espíritos escolhem ou são levados a reencarnar em corpo negro por não ter inteligência e moral suficiente para encarnar em um corpo branco? Ou que Deus escolheu corpos para sofrimento e corpos para desfrutar da inteligência e da vivência com pessoas moralmente superiores?
Em que tudo isso importa? Vamos começar pela influência dessas palavras de Kardec no movimento espírita. É ainda recorrente centros espíritas que não aceitam ou aceitam com ressalvas comunicações de pretos velhos, índios e outros espíritos que se apresentam de maneira não convencionada como de confiança. Os espíritas fazem esforços para se aproximar das religiões cristãs, ainda que contra a vontade das igrejas cristãs, ao mesmo tempo que fazem esforços para se distanciar das religiões de matriz africana, mesmo elas guardando algumas semelhanças e sendo mais abertas que as cristãs. É comum os centros espíritas apoiarem as artes que tenham influências europeias, como grupos harmônicos, balés, corais, mas dificilmente apoiam grupos rítmicos, danças africanas e cânticos indígenas. O Brasil é formado por cerca de 54% de negros e pardos, mas apenas 30% dos espíritas se identificam como negros e pardos[8]. É um movimento branco, de classe média, com renda e escolaridade acima da média do país. Mesmo sendo 30% de negros e pardos, precisamos perguntar: quantos estão em cargos de diretoria em centros espíritas? Quantos estão à frente de Federações Espíritas? Quantos são os palestrantes negros que se destacam, que são estrelas do panteão de palestrantes espíritas? Muitos vão exemplificar com as exceções, que vem somente a corroborar com o fato de que, também no movimento espírita, há um racismo estrutural.
Além disso tudo, há um fato histórico que exemplifica esta questão. A Umbanda nasceu a partir do preconceito de espíritas, quando Zélio de Moraes foi à Federação Espírita de Niterói por apresentava problemas de saúde que ninguém sabia curar. Uma vez na mesa mediúnica da referida federação, espíritos de negros escravos e índios se apresentaram, mas foram convidados a se retirar pelo dirigente da reunião por julgar que eram “espíritos atrasados”. Foi então que se manifestou o espírito Caboclo das Sete Encruzilhadas, proferindo um discurso de defesa dos espíritos que se apresentaram, bem como das pessoas que eram discriminadas no Brasil. Comunicou aos presentes na mesa que no dia seguinte seria instalada uma religião que não teria discriminação e que todos seriam bem vindos[9].
Os diversos movimentos espíritas precisam reconhecer que o racismo estrutural está presente em seu seio, e que tem o dever cívico educar e de lutar contra, além educar a população sobre a espiritualidade, que espírito não tem cor, nem sexo e que não há sacralização de Kardec. Reconhece-se a grandiosidade de Kardec, assim como se deve reconhecer este lapso de caráter nele, que provavelmente pela Lei de Progresso já deve pensar muito diferente de há 150 anos.
Finalmente, Kardec bem antenado ao movimento intelectual de sua época e num esforço para ir além do que se podia, com a descoberta da realidade espiritual e suas consequências, conseguiu ir um pouco além da ciência de sua época nesse ponto, pois não via qualquer raça condenada a opressão, mas numa infância do progresso espiritual. Apesar de tudo, dos pensadores europeus Kardec provavelmente foi quem teve um olhar menos preconceituoso acerca dos negros. Nós temos um dever cívico de continuar a debater o assunto e construir um espiritismo mais antenado à ciência da atualidade, pois o codificador pensava que “o Espiritismo jamais será superado, pois, se novas descobertas demonstrarem estar em erro em um determinado ponto, ele se modificará sobre esse ponto”[10]. Além da perspectiva científica, é uma questão ética apontar e compreender o racismo em Kardec. Não é aceitável e devemos debater sobre o que fazer com os textos escritos acerca do assunto. Como devem ser as notas de rodapé sobre isso? Apenas explicando que era um pensamento comum à época, ou firmar posição contra essa ideia de Kardec? Eu sou da opinião que as notas de rodapé não podem somente dizer que era um pensamento comum à época dele, mas de afirmar que essas ideias não coadunam com o pensamento espírita atual, que são veementemente repudiadas e que Kardec estava ERRADO, sem medo de dizer. Então espíritas, estamos prontos para modificar esse ponto, ou vamos passar pano em Kardec e ter que dar explicações falaciosas de tempos em tempos?
Matheus Laureano é Mestre em Psicologia Social, escritor, empresário e atual Presidente da ASSEPE (www.assepe.org.br) <mattheuslaureano@gmail.com>
[1] Não falarei do texto contido em Obras Póstumas, pelo simples fato de não ter sido publicado por Kardec e por ele não diferir muito dos que foram contemplados neste artigo.
[2] Revista Espírita, abril de 1862
[3] ibid.
[4] McCloy, Shelby T. Negroes and Mulattoes in Eighteenth-Century France. The Journal of Negro History, Vol. 30, No. 3 (Jul., 1945), pp. 276-292.
[5] Revista Espírita, agosto de 1864.
[6] Revista Espírita, fevereiro de 1867.
[7] A Gênese. Cap. XI, Raça Adâmica. pp. 238-239. Edição conforme o texto original de Allan Kardec da 1ª Edição de 1868.
[9] Rohde, Bruno Faria. Umbanda, uma Religião que não Nasceu: Breves Considerações sobre uma Tendência Dominante na Interpretação do Universo Umbandista. Revista de Estudos da Religião. 2009, pp. 77-96
[10] A Gênese, Cap I, 55, pp 71. Edição conforme o texto original de Allan Kardec da 1ª Edição de 1868.
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