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domingo, 31 de maio de 2020

Xadrez do caminho aberto para a cassação de Bolsonaro, por Luis Nassif


Mostradas as cartas, a única coisa que Bolsonaro dispunha era a mobilização do Gabinete do Ódio, que se encolheu para não ser apanhado nas malhas do inquérito das fakenews.

Jornal GGN:

Peça 1 – o STF pagou para ver

Nas últimas semanas, Jair Bolsonaro blefou dia sim, dia não. Ameaçou invocar as Forças Armadas, berrou palavrões, anunciou que “agora chega”. Finalmente, o Supremo Tribunal Federal (STF) pagou para ver. A intimação do Ministro Celso de Mello para a entrega do vídeo da reunião de 22 de abril, a posterior divulgação do vídeo, as operações de busca e apreensão do inquérito dos fakenews, a convocação do Ministro da Educação Abraham Weintraub depor, tudo isso gerou declarações indignadas que não mudaram em nada a determinação do STF.
Mostradas as cartas, a única coisa que Bolsonaro dispunha era a mobilização do Gabinete do Ódio, que se encolheu para não ser apanhado nas malhas do inquérito das fakenews.

Peça 2 – o fracasso do governo

Para completar o ciclo semanal, a divulgação do PIB do primeiro trimestre comprovou que Paulo Guedes blefava, quando mencionava uma suposta recuperação da economia que teria sido abortada pelo coronavirus. Os dados trimestrais, portanto com dois meses sem o Covid, mostraram uma economia exangue, sem fôlego, mesmo antes da pandemia. O capital estrangeiro já tinha começado a sair mêses antes.
O quadro vai piorar devido à absoluta inoperância de Guedes, na frente econômico, e do gabinete da crise, comandado pelo general Braga Neto, na frente sanitária.
Guedes não foi capaz de destravar o crédito para pequenas e médias empresas, nem para financiamento da folha salarial. Atrasou enormemente os repasses para estados, travou o plano Pró-Brasil, ignorou as grandes discussões mundiais para financiamento do gasto público, minimizando os desdobramentos da crise. Só acordou com os resultados do PIB e, aí, desesperou-se comportando-se como aeromoça apavorada com a tempestade.
Por tudo isso, fica claro que o governo Bolsonaro é uma ameaça não apenas devido às pirações fundamentalistas do presidente, mas a uma incompetência generalizada, que coloca em risco as relações externas, as políticas científico-tecnológicas, educacional, o meio ambiente.
O ponto final desse festival de amadorismo foi a tomada do Ministério da Saúde por militares sem conhecimento do setor.

Passo 3 – a ofensiva contra Bolsonaro

A semana terminou comprovando que os Bolsonaro são tigres sem dente e seus seguidores são mais barulhentos do que numerosos.
O vídeo foi entregue, Weintraub depôs, o general Augusto Heleno recuou de forma desajeitada; Bolsonaro condecorou o Procurador Geral Augusto Aras e lhe prometeu pastel de vento: uma indicação de Ministro do STF em alguma terceira vaga que vier a ser aberta. E ainda teve Carlos Bolsonaro, o filho mais abilolado de Bolsonaro, soltando imprecações incompreensíveis no grupo de WhatsApp dos vereadores do Rio; Eduardo Bolsonaro justificando Weintraub;  e  Flávio Bolsonaro sem se manifestar, depois de ter celebrado a operação contra o governador do Rio de Janeiro Wilson Witzel e louvado a competência do foragido Queiroz. A Polícia Federal foi até o Ministério da Educação ouvir o Ministro da Educação Abraham Weintraub, demolindo qualquer veleidade de resistência. Weintraub nada declarou, recorrendo ao direito de não se incriminar, disponível para qualquer cidadão.
A partir de agora, a porta está escancarada para iniciativas individuais de procuradores e promotores, para levar adiante a enorme quantidade de inquéritos, como desdobramento do inquérito das fake News.
Na sexta-feira, Celso de Mello encaminhou à Procuradoria Geral da República uma interpelação de um cidadão contra as declarações de Eduardo, ameaçando as instituições.
Ao mesmo tempo, a Polícia Civil do Distrito Federal indiciou manifestantes que agrediram enfermeiros em manifestação recente; e a de São Paulo prendeu manifestantes que montaram arruaças na frente da casa do Ministro Alexandre Moraes. A Polícia Federal pediu autorização para o STF para ouvir o próprio Bolsonaro.
O próximo passo será a definição de regras com redes sociais – incluindo o WhatsApp – para identificação e desmantelamento das correntes de ódio.
Em suma, os Bolsonaro entraram definitivamente na linha de tiro das instituições, quando caiu a ficha da impossibilidade de se esperar qualquer comportamento racional da família, devido a duas constatações definitivas.
1º – Bolsonaro não vai parar. Sabe que na hora em que perder poder, filhos estarão sujeitos a prisão.
2º  – Mesmo se acalmar, a falta de comando do governo está conduzindo o país para desastre amplo.
É aí que se entra na fase decisiva, da campanha pelo afastamento de Bolsonaro.

Passo 4 – Inquérito no TSE

Já falamos no GGN
  1. Em nosso “Xadrez para entender o inquérito das fakenews” ficou claro que Aras perdeu a ocasião de impugnar o tal inquérito “extrapolicial – judicial” – e concordou com a existência dele.
  2. Na cautelar que ele propôs na semana passada, contra o inquérito, Aras abriu mão de seu poder de determinar. Ficou só com o de opinar. E opinou contra a diligência.
  3. Acontece que o STF não abriu mão do seu poder de determinar, principalmente em casos em que quem deveria atuar, ou seja, o MP, ficou quieto. – Essa foi a síntese do nosso xadrez.
  4. Ao não atuar, Aras legitimou o inquérito, já que ao juiz é facultado a solicitação de provas, quando entende que há um vácuo nas investigações.
  5. De qualquer modo, como a denúncia contra o Presidente só poderá ser feita pelo PGR, cria-se um obstáculo jurídico aí, já que o STF, por ser julgador de última instância, não terá como recorrer.
É aí que se entra no busílis da questão.
Em outro texto, fica claro que o inquérito das fake news pode não gerar denúncia contra o presidente Jair Bolsonaro, porque precisaria da Procuradoria-Geral da República para isso e ela já disse que agora está contra esse inquérito.
Mas as provas colhidas neste inquérito não serão em vão. Elas podem ser compartilhadas com o Tribunal Superior Eleitoral, que tem duas ações relevantes que podem levar à cassação de Jair Bolsonaro e Hamilton Mourão e ao consequente chamamento de novas eleições.
As ações que tratam dos disparos em massa de fake news, via WhatsApp, que foram revelados pela Folha de S. Paulo ainda durante a eleição presidencial de 2018, bem com do financiamento empresarial dessas ações, que podem configurar crime de caixa 2 eleitoral.
No inquérito das fake news, o ministro Alexandre de Moraes determinou a busca e apreensão e a quebra de sigilo fiscal e bancário dos empresários Luciano Hang (Havan) e Edgard Corona (BioRitmo e SmartFit), do humorista Reynaldo Bianchi Junior e do militante Winston Rodrigues Lima. Eles são suspeitos de financiar a rede bolsonarista de ataques à honra e ameaça à segurança dos ministros do Supremo.
É bastante provável que, nessa diligência questionada pelo PGR, fique comprovado que essas pessoas, os filhos do presidente e o próprio presidente, abasteceram e integraram essa rede de fake news  desde a campanha eleitoral.
Chama atenção que o novo presidente do TSE, Luis Roberto Barroso, em sua primeira manifestação tenha investido fortemente contra os fake News.
Segundo a Folha desta sexta (29), um advogado que defende um dos empresários no inquérito das fake news disse que “a informação extraoficial é que Moraes já reuniu mais de 6.000 páginas no inquérito como elementos contra os alvos da PF.”

Passo 5 – o que ocorreria com a cassação da chapa

O resultado de uma ação desse tipo no TSE não leva a um impeachment, mas à cassação da chapa Bolsonaro/Mourão e, como isto ocorreria nos dois primeiros anos de mandato, diz a Constituição que devem ser convocadas novas eleições.
Impeachment depende da prática de um crime comum ou de responsabilidade durante o exercício do cargo – e justamente por ser durante o exercício do cargo, depende sempre, para que o processo se desenvolva, de autorização do Congresso Nacional  – e daí entram as negociações que conhecemos tão bem.
Em outras palavras, as provas colhidas no inquérito das fake news não levam a um Impeachment, mas podem contaminar a eleição de Bolsonaro, e como a sua eleição foi impugnada no tempo correto perante o TSE, sob esse exato fundamento, abre-se espaço para a cassação da chapa. Não se esqueça que, na quebra de sigilo fiscal dos supostos financiadores, Alexandre Moraes retroagiu para o período eleitoral.
Com isso, Bolsonaro (e seu vice) estão sujeitos a um decreto judicial, do TSE, de perda de mandato.  Isto faz com que a aparente parcialidade de Aras e a capacidade de cooptação dos congressistas, do Centrão, parem de ter qualquer influência na situação da presidência.
Se ocorrer a cassação da chapa, a Constituição diz o seguinte:
– se isso acontecer nos dois primeiros anos de mandato, tem que ter novas eleições, no prazo de 90 dias;
– se isso acontecer nos dos últimos anos, também tem que ter nova eleição, mas daí  a eleição será indireta, pelo Congresso Nacional, no prazo de 30 dias.
Em ambas as hipóteses, enquanto as novas eleições não acontecem, quem assume interinamente a presidência é  o Presidente da Câmara dos Deputados, na sua falta, o do Senado Federal e, na sua falta, o do Supremo Tribunal Federal.
E mais, qualquer um que seja eleito nessas condições, assumirá apenas um mandato “tampão”, isto porque esse mandato vai durar apenas até completar o  período dos seus antecessores, ou seja, no caso de Bolsonaro e Mourão, até o ano de 2022. Foi o que aconteceu com Itamar Franco, após a cassação de Fernando Collor.

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O brasil enfrentará o efeito Coringa, por Luis Nassif



Cada dia a mais de Bolsonaro  significará maior acúmulo de frustrações, maior agravamento das duas crises, a de saúde e a econômica, e maior dificuldades em vencê-las.
Jornal GGN:
O filme “Coringa” foi premonitório. Relata uma situação de extrema tensão que explode com um episódio específico, um grupo de yuppies de mercado que, em um vagão de metrô, humilha uma pessoa fantasiada de palhaço. Há uma reação, e a vítima mata os agressores. A partir daí, há uma pandemia de violência explodindo por toda a cidade e a vestimenta de palhaço torna-se o símbolo da reação.
O que ocorre hoje, nos Estados Unidos, é semelhante, uma reação espontânea provocada pela morte de George Floyd, cidadão negro detido pela polícia e morto, depois de 9 minutos de asfixia a que foi submetido por um policial.
O episódio deflagrou um festival de protestos por várias cidades, com a explosão da panela de pressão acumulada pelo racismo arraigado da sociedade americana, acentuado pela ascensão do supremacismo branco representado por Donald Trump. Em cima disso, a revolta contra o fracasso da luta contra o Covid-19, a explosão do desemprego, a incidência da doença, manifestando-se mais acentuadamente nas regiões pobres e junto às populações negras. E, no comando do país, uma luta intestina entre partidos políticos.
No Brasil, as mortes de negros por policiais tornaram-se banalizadas pela repetição. Mas a tensão social está cada vez maior, uma panela de pressão de alto teor. Não haverá como não emular a violência difusa americana.
Há a explosão do desemprego, o desmonte das redes de sociais, a quebra de pequenas e microempresas, a doença grassando nas periferias das grandes cidades. E, na Presidência, um desatinado provocando em doses iguais revolta e adesão de seguidores fanatizados.
Nos próximos meses, haverá agravamento de todos esses problemas, o de saúde, o econômico, o aumento do desalento.
A expectativa de fim da pandemia evaporou-se. A pressão sobre governadores e presidentes está provocando uma flexibilização imprudente do isolamento, que agravará o problema no momento seguinte. Daqui a pouco tempo haverá um recuo, acentuando mais frustração popular.
O governo acabou, falhou em todas as frentes, na econômica, na política, na social. Há um grupo político envolvido em crimes explícitos, de alimentação da violência virtual à suspeita de crimes de morte.
A cassação de Bolsonaro ocorrerá mais cedo ou mais tarde, tal a disfuncionalidade do governo e o acúmulo de indícios de práticas criminosas. Cada dia a mais de Bolsonaro  significará maior acúmulo de frustrações, maior agravamento das duas crises, a de saúde e a econômica, e maior dificuldades em vencê-las.
É um caldo de violência que abre inúmeras possibilidades. Um governo que rompa com o dogmatismo de Paulo Guedes, com um plano bem articulado de emissão de moeda e gastos públicos, conseguirá resultados rápidos na economia. E, com isso, ganhará um trunfo político inigualável. Há um cadinho de cultura para a exploração da violência.
Nos anos 30 houve duas maneiras de enfrentamento da crise: Roosevelt com o New Deal, Hitler com o plano econômico articulado por seu Ministro da Economia. Na base, cidadãos desesperados, prontos a aderir ao primeiro salvador e a enfrentar qualquer fantasma, com as armas que lhes sejam indicadas, ou a solidariedade ou a violência mais selvagem.
Haverá uma reação à queda inevitável de Bolsonaro. Hoje em dia, Bolsonaro é a referência maior das guerras virtuais, entre os contra e os a favor.
Expelido do poder, haverá dois movimentos inevitáveis. O primeiro, dos fanáticos, não se afastando a possibilidade de atos violentos, praticados por milicianos e associações de tiros. O segundo a violência difusa, à medida em que os Bolsonaro saiam do centro das atenções.
Há uma saída amadurecendo para a crise atual: a cassação rápida da chapa de Bolsonaro-Mourão pelo Tribunal Superior Eleitoral. Nesse caso, o governo será assumido pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia, em um mandato tampão. Em todo esse prendo, Maia ganhou uma dimensão política insuspeita, ornando-se o centro de gravidade dos acordos políticos e da racionalidade.
Sendo mandato tampão, terá toda a boa vontade dos diversos setores políticos, como teve Itamar Fraco, depois do terremoto do impeachment de Collor. Hoje em dia, há um Coringa no meio do caminho. E o país confrontado com seu maior desafio.

El País: A legitimidade do Governo Bolsonaro acabou mundo afora



A placa com o nome “Brazil” continuará a ser ocupada nas mesas da ONU por embaixadores que representam o Governo, mas sua legitimidade acabou

O presidente Jair Bolsonaro entre apoiadores em frente ao Palácio da Alvorada.
O presidente Jair Bolsonaro entre apoiadores em frente ao Palácio da Alvorada.JOÉDSON ALVES / EFE

Thomas Hobbes deixa claro que a liderança política é considerada como legítima na medida em que o soberano garanta a proteção de seus cidadãos. Se isso não ocorrer, o acordo pode ser desfeito e a autoridade perde sua legitimidade em governar. Esse é, no fundo, o coração do contrato social.
No campo das relações internacionais, há ainda um amplo debate sobre a legitimidade externa de um governo, com repercussões sobre seu assentos nas instituições multilaterais e sua capacidade de ser reconhecido como um interlocutor genuíno.
Em muitos sentidos, o Brasil atravessa esse debate.
Internamente, decisões e comportamentos revelaram que o governo não está interessado em assegurar a proteção de seus cidadãos. Seja na Amazôniaseja na periferia das grandes cidades.
A cada cova cavada, a legitimidade original obtida nas urnas é desmanchada. A cada ataque contra a imprensa, ela é diluída. A cada proposta de intervenção nas forças de polícia, tal direito adquirido é suspenso. A cada perdão de multas ambientais, sua autoridade é transformada em abuso de poder.
Ao colocar seus generais para ameaçar a lei, ao declarar abertamente que sua família está acima do direito, ao gargalhar ao ouvir de seu ministro que cada cidadão terá de se apanhar para sobreviver ou ao disparar mentiras nas redes sociais, o governo vê refletido no chão sua sombra: a silhueta do cadáver da democracia.
No plano internacional, a atual resposta do governo Bolsonaro à pandemia se soma a uma série de desastres em sua política externa. O país já havia sido colocado no centro do debate ao adotar uma postura negacionista em relação ao clima. A deterioração da imagem se aprofundou quando o presidente passou a ofender líderes estrangeiros e fazer apologia a ditadores acusados de crimes contra a humanidade.
Em diversas ocasiões, ele foi preterido por outros presidentes sul-americanos em reuniões internacionais, inclusive no G-7. O resultado passou a ser um país dependente dos mestres em Washington e, em relação ao restante do mundo, isolado.
Mas Bolsonaro —e sua rejeição em aceitar a gravidade da pandemia— transformou o país em algo mais sério que pária internacional: um risco sanitário.
Uma a uma, suas principais teses estão sendo rejeitadas pela ciência. Depois da queda de dois ministros da Saúde, o governo trocou o protocolo para incluir a cloroquina em suas recomendações. Na mesma semana, um estudo da revista científica The Lancet chegou à conclusão de que os riscos para a saúde superam as evidências positivas.
A OMS (Organização Mundial de Saúde), dias depois, optou por suspender temporariamente todos os testes com o remédio, medida que foi seguida pela França.
distanciamento social também foi chancelado pela agência, indicando que não há prova de que um país com intensa transmissão simplesmente verá o desaparecimento do vírus. A única saída para um país que não tem ampla capacidade de testas, segundo a Organização Mundial de Saúde, é a adoção de medidas sociais, como quarentenas ou lockdown.
Em termos políticos, o cenário é consequência do que o governo semeou. Em abril, o Itamaraty ficou de fora de uma aliança mundial criada para desenvolver uma vacina. Constrangidos em Brasília, os diplomatas sequer sabiam que tal mecanismo estava sendo criado.
Semanas depois, os protagonistas na reunião anual da OMS em meados de maio passaram a ser os presidentes da Colômbia e Paraguai, todos comprometidos em lutar contra o vírus. A diplomacia brasileira se recusa a informar sequer se houve um convite a Bolsonaro para ser um dos participantes.
Foi apenas no final do mês, quando o Brasil já tinha se transformado no novo epicentro da doença, que o Itamaraty sinalizou que faria parte da iniciativa da OMS para o compartilhamento de informações e desenvolvimento da vacina. Ainda assim, a adesão foi feita como coadjuvante, deixando países como a Costa Rica e Equador como protagonistas na liderança do projeto e assumindo uma posição que tradicionalmente era do Brasil.
Também chamou a atenção nos bastidores da diplomacia o fato de que o Brasil não fez parte dos líderes internacionais que, nesta semana, iniciaram os trabalhos para redesenhar a economia mundial. A iniciativa lançada na ONU com mais de 50 países contou ainda com um recado por parte do secretário-geral da entidade, Antonio Guterres, contra presidentes que se recusem a aceitar a gravidade da crise: abandonem a “arrogância”.
Mas essa exclusão não ocorreu por acaso. Ela foi resultado de semanas de ataques por parte do governo brasileiro contra a OMS, sugerindo que a entidade fizesse parte de um “plano comunista” para permitir uma maior influência da China num mundo pós-pandemia.
Em reuniões fechadas ou mesmo em público, o chanceler Ernesto Araújo vem defendendo a tese de que o vírus do comunismo precisa ser enfrentado, o que lhe valeu chacotas de seus próprios embaixadores espalhados pelo mundo.
No fim de semana, mais um golpe. E desta vez por parte do principal aliado: os EUA. O governo de Donald Trump anunciou a proibição de voos de brasileiros para os aeroportos americanos. Ainda que a medida tenha sido vendida pelo governo de Bolsonaro como uma questão “técnica”, a decisão desmontou a tese do Planalto de que existiria uma relação privilegiada entre Washington e Brasília.
A medida, aos olhos do restante do mundo, também foi interpretada como um sinal de que a pandemia, no Brasil, está hoje fora de controle.
Bolsonaro ainda terá de se explicar diante da ONU. O relator das Nações Unidas, Baskut Tuncak, decidiu ampliar suas investigações sobre o Brasil e incluir as respostas do governo à covid-19 em seu informe que apontará para as violações de direitos humanos cometidas pelo governo ao não proteger sua população.
O gesto promete aprofundar uma imagem já desgastada e levantar questões sobre a responsabilidade legal do governo diante das mortes.
Outros dois relatores também já criticaram o governo, deixando o Itamaraty irritado com a nova onda de pressão internacional. Até mesmo a Alta Comissária da ONU para Direitos Humanos, Michelle Bachelet, alertou que, se a postura negacionista do governo tivesse sido evitada, vidas teriam sido salvas. No Tribunal Penal Internacional, queixas também foram submetidas.
Enquanto isso, no Parlamento Europeu, deputados têm proliferado cartas à Comissão Europeia pedindo que o bloco reveja suas relações com o Brasil. Na Alemanha, deputados deixam claro que não há, hoje, como ratificar o acordo comercial entre UE e o Mercosul.
Numa sociedade que começa a abrir suas portas, a Europa se depara nas prateleiras de jornais com fotos de Bolsonaro são acompanhadas por palavras como “caos”, “catástrofe”, “morte” e “populismo". Não faltaram ainda protestos, como o que um artista organizou na fachada da embaixada do Brasil em Paris, sede justamente de um dos diplomatas mais vocais na defesa do bolsonarismo.
E, assim, o governo perdeu sua legitimidade. Interna, ao romper o contrato social com uma parcela enorme da população. E, externa, ao violar deliberadamente acordos costurados para proteger o planeta.
A placa com o nome “Brazil” continuará a ser ocupada nas mesas da ONU por embaixadores que representam o governo Bolsonaro pelo mundo. E, internamente, o presidente continua em seu palácio.
Mas sua legitimidade acabou.
Jamil Chade é correspondente na Europa desde 2000, mestre em relações internacionais pelo Instituto de Altos Estudos Internacionais de Genebra e autor do romance O Caminho de Abraão (Planeta) e outros cinco livros.

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sexta-feira, 29 de maio de 2020

Xadrez do impasse final entre democracia para todos x ditadura de bolsonaro, por Luis Nassif

Garantir Bolsonaro será submeter as Forças Armadas ao pior caudilhismo que já surgiu na América Latina, ao nível de um Rafael Trujillo, da República Dominicana.

Peça 1 – STF pagou para ver

A primeira peça do nosso xadrez é que o Supremo Tribunal Federal (ST) pagou para ver. Não há recuo possível. Qualquer recuo significará o campo aberto para o golpe final de Jair Bolsonaro.
Portanto, haverá um desfecho breve. Ou Bolsonaro se curva às determinações do STF; ou ganha salvo-conduto para perpetrar o golpe final, conforme anunciado ontem por seu filho Eduardo Bolsonaro.

Peça 2 – o relatório dos fakenews

O Ministro Alexandre de Moraes teve mais de um ano para investigar os fakenews. Montou o seu xadrez assessorado por pessoas de confiança da Polícia Civil de São Paulo e da Polícia Federal. A escolha dos alvos não foi aleatória, e o aprofundamento das investigações não ficou na superfície das manifestações públicas dos militantes do ódio. O inquérito bate nos principais disseminadores de ódio, nos financiadores, mapeia o funcionamento das redes de robôs e junta todas as peças que comprovam a existência de uma organização criminosa, com vínculos diretos com o Palácio de governo.

>>>  GGN PREPARA DOSSIÊ SOBRE SERGIO MORO. SAIBA MAIS <<<

O inquérito se baseou em depoimentos de Joyce Hasselman e Alexandre Frota. Levantou perfis falsos e mensagens idênticas apresentadas como originais de cada perfil.
Um dos depoimentos, do deputado Heitor Freire, apontou diretamente três assessores especiais da Presidência da República, Matheus Sales, Mateus Matos Diniz e Tercio Arnaud Tomaz, integrantes principais do chamado “Gabinete do Ódio”.
“Esse “gabinete” coordena nacional e regionalmente a propagação dessas mensagens falsas ou agressivas, contando para isso com a atuação interligada de uma grande quantidade de páginas nas redes sociais, que replicam quase instantaneamente as mensagens de interesse do “gabinete”. Essa organização conta com vários colaboradores nos diferentes Estados, a grande maioria sendo assessores de parlamentares federais e estaduais”.
As pesquisas do inquérito analisaram cruzamentos em torno de palavras-chave de ataques a membros do STF e chegaram a onze perfis do Twitter coordenadores da rede.
O acesso a computadores e celulares permitirá levantar inclusive manifestações da família Bolsonaro, palavras de ordem e articulações políticas, contra a democracia e contra o  isolamento.
O inquérito pede busca e apreensão, bloqueio de contas em redes sociais, oitiva com Polícia Federal, quebra do sigilo bancário dos empresários financiadores, oitivas de parlamentares envolvidos.
São amplas as possibilidades de levantamento de crimes variados, podendo chegar à organização de milícias armadas, como já é público em grupos como comprovam as manifestações do grupo liderado por Sara Winter, ativista bolsonarista.
O próprio relatório do inquérito já deixa explícitos os seguintes pontos, independentemente do que vier a ser levantado da análise dos equipamentos apreendidos:
  1. Foram cometidos crimes, ao se montar campanhas financiadas de ataques contra as instituições e com o uso de robôs, caracterizando a existência de uma organização criminosa.
  2. Foram identificados agentes do crime trabalhando dentro da sede do governo, no tal “Gabinete do Ódio”.
  3. Há provas concretas do comando do gabinete do ódio por Carlos Bolsonaro, filho do presidente da República.
Ao mapear o financiamento da máquina, as manifestações saem do campo da liberdade de expressão e passam a ser enquadradas como crime organizado.
O relatório mostra também manifestações de empresários, como Edgard Corona, estimulando as ações.

Peça 3 – o esquema Bolsonaro e o fator Augusto Aras

Nos embates de ontem, dois órgãos de governo e um de Estado se comportaram como advogados dos envolvidos, mostrando o aparelhamento total da máquina pública. Do lado do governo, o Ministro da Justiça e a Advocacia Geral da União assumindo a defesa do Ministro Abraham Weintraub. Do lado da Procuradoria Geral da República, um súbito acesso de garantismo, arguindo a ilegalidade do inquérito.
E aí entra-se na seguinte situação.
Ontem, em entrevista ao GGN, o jurista Lênio Streck sintetizou os principais pontos e principais dúvidas em relação ao quadro atual.
  1. O inquérito é visto como legal e constitucional por se basear em um princípio adotado pelos países democráticos: quando a Suprema Corte sofre ataques e não é defendida pelos poderes adequados – o Ministério Público -, tem o direito de abrir e conduzir investigações. Portanto o inquérito, em si, é legal, apesar do Supremo ser a última instância.
  2. Não houve um movimento sequer da PGR em relação aos crimes cometidos, mesmo tendo o STF como vítima, caracterizando, assim, o vácuo que se criou na defesa do Supremo.
  3. Mesmo assim, concluído o inquérito a denúncia só poderá ser feita pelo Procurador Geral da República. Se o PGR não quiser levar a denúncia adiante, cria-se um vácuo.
O PGR está submetido a duas pressões. Até agora, a pressão vitoriosa é do Presidente da República. Mas há a pressão da opinião pública e, especialmente, da sua própria corporação. Dependendo das evidências levantadas pelo inquérito, Aras terá que se haver com sua própria biografia e com as consequências de seus atos. Há uma boa probabilidade de que, entre a Constituição e o Presidente, opte pela Constituição.

Peça 4 – o impasse final e o fator militar

Nos próximos dias haverá embates de monta entre os dois poderes.
O STF insistirá no inquérito e poderá exigir até depoimentos do próprio Bolsonaro. Mais que isso, o final do inquérito comprovará as denúncias da peça inicial, de envolvimento de assessores diretos da Presidência e do próprio filho Carlos Bolsonaro com os crimes apontados.
Por seu lado, Bolsonaro tem estimulado seu Ministro da Educação Abraham Weintraub a não acatar a determinação do STF de prestar depoimento à Polícia Federal. O episódio Wentraub será o primeiro round desse conflito. Criado o impasse, se saberá se o endosso do fator militar tem sido um blefe de Bolsonaro ou uma ameaça real.
Nas últimas semanas, a imprensa mundial passou a responsabilizar diretamente os militares no governo de Bolsonaro como responsáveis pela crise da saúde e da economia. Deram endosso total a Bolsonaro no desmonte das políticas de precaução do Ministério da Saúde.
Além disso, há ligações evidentes dos Bolsonaro com o crime organizado, as milícias. E houve endosso à decisão de Bolsonaro de ampliar a autorização para a posse de armas pela população e para o não rastreamento da munição adquirida.
Há várias manifestações pretendendo substituir as Forças Armadas pelas milícias armadas, como garantidoras do governo, conforme tuites antigos de Eduardo Bolsonaro e Olavo de Carvalho.
Garantir Bolsonaro será submeter as Forças Armadas ao pior caudilhismo que já surgiu na América Latina, ao nível de um Rafael Trujillo, da República Dominicana.
Além disso, o endosso americano às loucuras de Bolsonaro está restrito a um apoio cada vez mais claudicante de Donald Trump. A derrota de Trump, nas próximas eleições, tirará dos Bolsonaro seu único ponto de apoio no mundo.
Por outro lado, não se pode ignorar o fascínio de um cargo civil, as portas que se abrem para familiares e para o mercado de trabalho do lobby, depois da reforma. E o enorme espaço aberto por Bolsonaro para a entrada de militares em áreas do Estado.
O destino da democracia brasileira será decidido nos próximos dias.

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