O dinheiro é o único deus. Os bancos são os templos em que ele é adorado pelos sumos sacerdotes organizam o culto financeiro. A política é apenas um espaço público em que ocorrem os sacrifícios em benefício do vil metal digital.
Sêneca, Confúcio e a nova ordem mundial
por Fábio de Oliveira Ribeiro
Antes de chegar ao fim, pandemia do COVID19 deixará um rastro de morte e de dor. Mas também de uma profunda reestruturação das sociedades que ela afetou.
Desde o fim da URSS, o único entrave político à predominância da ideologia capitalista é a democracia. Isso explica porque o regime democrático vem sendo atacado e destruído tanto nos EUA quanto na Europa. O conflito entre o ocidente e oriente deixará de existir no exato momento em que o modelo autoritário chinês se tornar predominante no planeta inteiro.
No Ocidente desindustrializado, a riqueza acumulada é oriunda das finanças (EUA, Inglaterra, etc). No Oriente a acumulação de riqueza é predominantemente decorrente do comércio internacional de produtos industrializados (China, Japão e Coreia do Sul). Alguns países se especializaram em fornecer matérias-primas (Rússia, Brasil, etc). Outros exportam predominantemente alimentos (Argentina, Brasil, etc). Na Europa central e na África diversos países sobrevivem exportando apenas mão de obra e importando lixo europeu. De maneira geral o planeta inteiro foi mobilizado para cumprir apenas um único objetivo: a produção e a acumulação de riqueza.
O dinheiro é o único deus. Os bancos são os templos em que ele é adorado pelos sumos sacerdotes organizam o culto financeiro. A política é apenas um espaço público em que ocorrem os sacrifícios em benefício do vil metal digital. O que caracteriza essa nova teologia é a identificação total entre o mundo temporal e o universo espiritual. A terra prometida de gozo permanente está em todo lugar em que o dinheiro pode ser gasto. Onde apenas a carência predomina, a fome e a pobreza aliadas ao desejo de consumir constroem ciclos infernais dantescos.
Muitos chegaram a acreditar que a história havia acabado. Mas ela recomeçou durante rebelião nazista vitoriosa na Ucrânia. A chegada da esquerda ao poder na Grécia consolidou a percepção geral de que a teoria de Francis Fukuyama deveria ser abandonada. A pandemia do COVID19 será em breve considerada uma certidão de nascimento de um novo ciclo histórico. Como ele irá se construir dependerá do que for feito.
A pandemia voltou a dividir o mundo ideologicamente. Enquanto a China construiu hospitais para cuidar dos doentes o ocidente se limitou a cavar sepulturas individuais ou coletivas. Nos EUA, país mais rico do planeta, o tratamento dispensado aos doentes pobres é ultrajante e humilhante. Eles são confinados a céu aberto em retângulos desenhados no chão dos estacionamentos. Donald Trump demorou a adotar medidas emergenciais, mas quando começou a fazer algo deixou bem claro que pretende salvar os bancos, hotéis, empresas de turismo e companhias aéreas. Xi Jinping aplicou o orçamento do seu país para salvar as vidas dos cidadãos.
Lucius Annaeus Seneca disse algo que me parece definir bem as escolhas que podem ser feitas nesse momento:
“… si vivieres conforme a las leyes de la naturaleza, jamás serás pobre; si com las de la opinión jamás serás rico; porque siendo muy poco lo que la naturaleza pide, es mucho lo que pide la opinión.” (Tratados Filosóficos, Lucio Anneo Séneca, Clásicos Inolvidables, Librería El Ateneo Editorial, Buenos Aires, 1952 – De la pobreza, p. 186)
O que é verdade nesse momento era verdade no século I dC. A natureza deveria comandar as ações governamentais nesse momento em que as escolhas são apenas duas: Esse dilema é falso, pois não há economia sem pessoas. Mesmo assim, no imaginário de algumas pessoas a teologia neoliberal não pode ser desafiada. O culto do dinheiro deve continuar. Os cadáveres da pandemia são apenas um tributo que os banqueiros e seus agentes políticos estão dispostos a sacrificar no altar da maximização dos lucros.
A propagação da pandemia é ruim para os negócios? Sem dúvida. Mas o prejuízo será maior se ela não for controlada. Se abandonarem os pobres à própria sorte em pouco tempo os ricos serão obrigados a viver num mundo em que ninguém será capaz de produzir ou comercializar o que quer que seja. Por maiores que sejam, os estoques de alimentos são finitos. Ninguém pode comer moedas ou bits. Ninguém morrerá de fome às portas de supermercados quase vazios sem ficar tentado a cometer atos de violência. Quando a violência civil se espalha numa sociedade com dezenas ou centenas de milhões de habitantes não existe força policial ou militar capaz de restabelecer a ordem.
É evidente que ao cuidar primeiro das pessoaspara depois salvar a economia do seu país, Xi Jinping não aplicou os princípios comunistas de Mao Tsé-Tung. Durante os anos em que governou a China, o Maodemonstrou um grande desprezo pela vida humana. A coletivização forçada da agricultura durante o Grande Salto para frente causou desabastecimento, forme e milhões de mortes https://pt.wikipedia.org/wiki/ Grande_Salto_Adiante.
Ao que parece, Xi Jinping preferiu seguir fielmente os ensinamentos de Confúcio.
“La verdadera virtud no perfecciona solamente al hombre que la posse, sino que perfecciona también todas las cosas. Lo que hace al hombre perfecto es la virtud de humanidad, sin la cual el hombre no es verdaderamente hombre; lo que perfecciona a las cosas exteriores, es la prudencia, que discierne y aplica los medios convenientes para alcanzar el fin propuesto. Estas dos virtudes son dones de la Naturaleza. Con ellas el hombre abraza, a la vez, lo interior y exterior; se perfecciona él mismo y todo lo que está fuera del él.” (Tratados Morales y Políticos, Confucio, Obras Maestras, Editorial Iberia, Barcelona, 1959, Tchung-jung o el medio invariable, p. 41/42)
Não há uma diferença muito grande entre a filosofia de Lucius Annaeus Seneca e a de Confúcio. Ambos valorizam a natureza e a humanidade. Tanto o chinês quanto o romano acreditam que a verdadeira riqueza é aquela que permite ao homem se recusar a viver segundo as imposições criadas pelas ilusões (a acumulação de riquezas é uma delas). A prudência de que fala Confúcio (como um meio conveniente para alcançar o fim proposto)é, sem dúvida alguma a mesma virtude que orienta Lucius Annaeus Seneca a distinguir entre as necessidades impostas pela natureza e aquelas criadas pela cultura e a valorizar a primeira e não a segunda.
No mundo antigo a distância entre o Oriente e o Ocidente era bem pequena. A pandemia voltou a aproximar esses dois polos. Só há uma escolha a ser feita: cuidar da população para depois cuidar da economia. A finalidade da economia é proporcionar a melhor vida possível a todos os cidadãos e não apenas garantir a acumulação de riqueza por alguns deles. A própria riqueza deixará de existir ou de ser útil se a sociedade mergulhar no caos em virtude de uma pandemia incontrolável.
As decisões desumanas tomadas por líderes políticos como Donald Trump e Jair Bolsonaro não terão espaço numa nova ordem mundial pós-COVID19. Os conselhos de Lucius Annaeus Seneca e Confúcio não poderão mais ser desprezados por nenhum governante.
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