A saga da família começou quando dona Maria Luiza foi a primeira vez à UPA na quarta-feira, 26, com tosse, coriza, febre e uma diarreia leve. Foi diagnosticada com gripe e liberada para casa. Três dias depois, com dificuldade para respirar, voltou ao posto. Durante a nebulização, passou mal, precisou ser entubada às pressas e foi internada na sala vermelha da unidade, local para onde são direcionados os pacientes em estado grave. Só então o caso passou a ser tratado como suspeita de covid-19.
The Intercept Brasil:
Reportagem: Juliana Gonçalves
FORAM 50 ANOS vivendo na Rocinha, na zona sul do Rio de Janeiro. E foi na UPA da comunidade que a aposentada Maria Luiza Santana do Nascimento, 72, faleceu na segunda-feira, 30, com suspeita do novo coronavírus – se confirmada será a primeira morte por covid-19 em favelas cariocas. Um dos seus seis filhos, Cristiano Santana do Nascimento, 47 anos, ainda procura encontrar respostas. “Há pouco tempo, fomos juntos assistir a final da Libertadores no Maracanã, e ela não se cansou.”
A saga da família começou quando dona Maria Luiza foi a primeira vez à UPA na quarta-feira, 26, com tosse, coriza, febre e uma diarreia leve. Foi diagnosticada com gripe e liberada para casa. Três dias depois, com dificuldade para respirar, voltou ao posto. Durante a nebulização, passou mal, precisou ser entubada às pressas e foi internada na sala vermelha da unidade, local para onde são direcionados os pacientes em estado grave. Só então o caso passou a ser tratado como suspeita de covid-19.
A partir daí se iniciou uma corrida contra o tempo para tentar salvar sua vida. A família tentou transferi-la para um local com mais estrutura e UTI no sábado, mas, diante da falta de vagas, não deu tempo. O relato foi editado para fins de clareza.
MINHA MÃE COMEÇOU a sentir tosse, muita coriza e diarreia numa quarta-feira. A minha irmã mais nova e meu irmão mais velho a levaram na UPA da Rocinha. O médico a atendeu e prescreveu azitromicina, loratadina para coriza e paracetamol. Nesse primeiro atendimento não trataram o caso como coronavírus. Na verdade, é esse o padrão. A pessoa vai na UPA, o médico passa remédio e manda voltar para casa. Acredito que o médico já até sabe que tem algo errado, mas parece ter alguma diretriz para voltar para casa. Desde então, minha mãe só piorou. Quando ela voltou à UPA, dois dias depois, iniciou a jornada para morte.
A nebulização não funcionou, e minha mãe foi entubada imediatamente. Mas a UPA não tem estrutura para os casos mais graves de coronavírus. Eles seguem um procedimento-padrão. Colocam no respirador, mas ele sozinho não faz milagre. Soube de diversas pessoas já morreram porque os rins param de funcionar com a infecção. Foi o que aconteceu com a minha mãe: os rins pararam. E na UPA, não há máquina de hemodiálise. Se eu soubesse disso, eu não teria a levado para a UPA na segunda vez que ela precisou de atendimento.
‘Observei através do vidro que a minha mãe estava definhando.’
Observei através do vidro que a minha mãe estava definhando. Se alguém tiver algum parente idoso, melhor pesquisar antes e achar um hospital com mais recursos. Se entubarem um parente idoso na UPA, a pessoa fica nas mãos da sorte. Não há recursos tecnológicos e estruturais. A UPA não é para isso.
Quando observamos que ali não era o local ideal para o tratamento, começamos a buscar uma transferência para um hospital com UTI. Minha mãe entrou na fila de transferências do estado no domingo, 29. É um cadastro único com todos que estão buscando um leito no Rio. Começou outra agonia. Você perguntava e não tinha uma resposta além de que havia uma fila. A única informação é que estávamos na lista para a transferência, mas a gente sabia quantas pessoas estavam na frente e se haveria alguma possibilidade de transferência. Não sabemos se essa fila é enorme. Não sabíamos nada. Você fica cego e não vê horizonte. Tentamos a transferência, mas não deu tempo. Minha mãe morreu na segunda, 30.
Quando a minha mãe foi entubada, surgiu a questão do exame para atestar a covid-19. Nós não fomos informados em que data o material coletado seria enviado para o laboratório. Soube quando liguei para a Secretaria de Saúde que o exame foi enviado dois dias depois para análise (no dia da morte de dona Maria Luiza). O exame ainda não ficou pronto. A servidora que me atendeu disse que dariam prioridade, mas não pegaram nem meu número de telefone para passar o resultado depois. Não sei se eles vão passar o resultado para a UPA. Mas o telefone da UPA da Rocinha não funciona. Vou ligar novamente para a Secretária de Saúde. Deveria existir esse comprometimento do estado e do município para informar a família. Mesmo após o falecimento, essa informação é importante para a família. Precisamos saber o que aconteceu e também nos proteger para evitar novos casos. Mas até agora, uma semana depois, não sabemos de nada.
‘Precisamos saber o que aconteceu e também nos proteger para evitar novos casos. Até agora não sabemos de nada.’
Quando nos disseram que a mãe tinha morrido, também sentimos a falta de suporte. O ideal seria ter uma assistente social na UPA nos orientando como proceder. A única informação que tivemos é que deveríamos tirar o corpo de lá em 24h porque eles não tinham geladeira ou teriam transferi-lo para algum hospital. Não tivemos mais nenhuma orientação. Não sabíamos para onde levar o corpo. A gente não sabia se existia um procedimento especial por causa da suspeita de coronavírus. Nós que tivemos que correr atrás de tudo.
Eu tive que ler um documento do Ministério da Saúde sobre o preparo de um corpo com coronavírus para o sepultamento. É preciso envolvê-lo em três camadas de proteção, e o enterro precisa ser rápido. Sem velório. A partir daí, eu procurei diversas funerárias com ajuda dos meus amigos do trabalho. Encontramos uma boa funerária que também já tinha informações sobre como lidar com falecimentos por covid-19. Nós tivemos condições de pagar por esse serviço. Fico imaginando como isso funciona para as pessoas mais humildes e com dificuldade de acesso à informação.
Também esbarramos em outro problema, todos os cartórios estão fechados devido à quarentena e não tínhamos como tirar a certidão de óbito. No final, descobrimos um cartório ao lado do cemitério São João Batista, onde ela foi enterrada, porque alguém na rua percebeu nosso desespero e comentou.
‘O médico colocou sepse como causa da morte. Com a certidão de óbito, eu poderia ter feito um velório tradicional.’
O conteúdo da certidão de óbito em si também é problemático. O médico não colocou suspeita de coronavírus como causa da morte. Colocou sepse (infecção generalizada). Com a certidão de óbito que recebi, poderia fazer um velório tradicional para minha mãe com pessoas reunidas. No nosso caso, seguimos as informações do Ministério da Saúde. A funerária foi lá na UPA no horário marcado, e entre 15h45 e as 17h o sepultamento já tinha acontecido.
Só o meu irmão mais velho acompanhou o sepultamento como testemunha. Ele fez o reconhecimento do corpo e esteve com a minha mãe durante o período da doença e a internação. Ele se expôs diversas vezes ao vírus. No desespero, acabou em certos momentos não obedecendo integralmente as recomendações. É complicado, é uma pessoa que você ama e só uma regra muita clara o impediria de seguir seus instintos básicos. Se eu fosse diretor de um hospital, eu daria ordens para nenhum parente se aproximar da pessoa.
‘Ela sempre foi cuidadosa e procurava cumprir todas as recomendações sobre a quarentena.’
A minha mãe era ativa. Caminhava bastante no calçadão de São Conrado. Nunca cheguei em casa e a encontrei cansada, com falta de ar ou indisposta. Não tinha diabetes, não era fumante, se alimentava bem. Para se ter uma ideia, nós fomos ver o Flamengo na final da Libertadores, que foi transmitida em telões no Maracanã – chegando lá descobrimos que estávamos na entrada errada, tivemos que dar a volta no estádio e a minha mãe caminhou tranquilamente.
Ela sempre foi cuidadosa e procurava cumprir todas as recomendações sobre a quarentena. Limpava as maçanetas. Lavava as compras com água sanitária. Tem um irmão nosso que a visitava com frequência sem muita consciência desse perigo. Ela chegou a proibir a entrada dele em casa. Mas não sabemos se isso foi tarde demais.
Agora, fico aqui pensando que se ela teria tido alguma chance se tivesse sido transferida, se fosse levada a outro hospital com mais estrutura e se tivéssemos mudado a estratégia. Também penso que nosso sofrimento poderia ter sido atenuado por um trabalho mais humano do poder público.
A família já está em desespero, com o corpo na mão, procurando um local para sepultar e ainda precisa lidar com a falta de informação num momento de luto e desespero. A UPA deveria estar preparada para isso. Nesse processo todo, desde o atendimento da minha mãe até a sua morte, percebemos um monte de problemas e a maior parte deles referente à (falta de) comunicação com o cidadão. Em diversos momentos, tivemos que ficar garimpando informações de coisas que o poder público poderia ter tomado a iniciativa antes da gente. Toda família quer é ser acolhida e não abandonada, sem suporte, sem apoio. É uma parte muito importante quando você perde uma mãe.
*O Intercept entrou em contato com a Secretaria Municipal de Saúde do Rio para saber como é o protocolo de atendimento de casos suspeitos de covid-19 nas unidades básicas de saúde e de orientação à família em caso de morte, mas não obteve retorno até a publicação. O texto será atualizado caso haja resposta às questões.
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