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sexta-feira, 13 de março de 2020

O papel da Igreja Pentecostal nas lacunas sociais


Perfil social dos grupos religiosos que mais crescem no país é, também, negro e feminino. Diante da vida violenta e precária, seitas oferecem espaço de aparente protagonismo e autoestima — enquanto outras formas de organização estão ausentes
Maria das Dores Campos Machado e Christina Vital, em entrevista ao IHU
Pesquisas anteriores à feita pelo Instituto Datafolha, segundo a qual a cara típica do evangélico brasileiro é feminina e negra, “já assinalavam a grande atração das igrejas pentecostais junto aos segmentos sociais vulneráveis e vivendo nas periferias das grandes cidades”, diz a socióloga Maria das Dores Campos Machado à IHU On-Line. Entre as diversas denominações religiosas, os evangélicos são os que mais crescem no país e hoje representam 31% da população brasileira. “Desde 1940 crescem e a partir de 1990 este crescimento se tornou mais significativo em termos percentuais e também em termos da visibilidade destes atores e suas agendas em diferentes esferas da vida social: da cultural à política”, pontua a socióloga Christina Vital.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, as sociólogas mencionam alguns dos fatores que explicam a adesão de mulheres às religiões evangélicas. De acordo com Maria das Dores, que estuda o fenômeno religioso no país há mais de 30 anos, muitas das mulheres que se convertem às religiões pentecostais rompem com a religião da família porque são atraídas por outro grupo religioso. “As igrejas pentecostais atraem estas mulheres por vários fatores. Em primeiro lugar, porque pastores/as que apresentam um perfil social muito próximo ao delas falam de uma forma bem simples de temas que lhes interessam, como por exemplo: família, casamento, violência, uso de drogas, desemprego, doenças etc. Com um discurso mágico, elas também prometem ajudar os/as fiéis a superarem suas dificuldades”, conta.
O acolhimento e a participação das mulheres nos cultos também favorecem a migração delas para as igrejas pentecostais. “As igrejas aumentam a autoestima das mulheres e estimulam a trabalhar em situações em que os homens não estão presentes, não conseguem garantir o provimento da família e/ou são dependentes em função de algum problema de saúde. A comunidade religiosa oferece uma rede de apoio e de atividades que ampliam as relações sociais e a circulação das mulheres na esfera pública. Enfim, as igrejas evangélicas crescem porque existe na sociedade brasileira um grande contingente populacional que se encontra em situações precárias e de muita violência e que não tem acesso a outras instituições e/ou iniciativas de movimentos sociais não religiosos”, explica.
Christina Vital lembra que as mulheres “são majoritárias nas religiões no Brasil” e destaca a crescente introdução de pautas femininas entre os evangélicos. “Inúmeras lideranças evangélicas estão levantando a pauta do combate à violência contra a mulher, do novo comportamento necessário do homem em relação às mulheres, a questão das jornadas extenuantes de trabalho”, menciona. E assegura: “Não se trata de uma abordagem que procure transformar a estrutura familiar e afetiva que funda a sociedade, mas de defesa e proteção da mulher, de sua saúde, da consideração de suas necessidades materiais de existência, em seu reconhecimento como célula fundamental que deve ser cuidada”.
Maria das Dores Campos Machado é graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, mestra e doutora em Sociologia pela Sociedade Brasileira de Instrução – SBI/Iuperj, com a tese intitulada “Adesão religiosa e seus efeitos na esfera privada: um estudo comparativo dos carismáticos e pentecostais”. Tornou-se professora titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro em 2017, aposentou-se em 2018 e atualmente é professora voluntária do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da UFRJ.
É autora de “Carismáticos e Pentecostais: Adesão Religiosa e Seus Efeitos Na Esfera Familiar” (Campinas: Editora Autores Associados/Anpocs, 1996) e “Política e Religião: A participação dos evangélicos nas eleições” (Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, 2006). Organizou ainda juntamente com outros autores o livro “Religiões e Homossexualidades” (Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, 2010) e a coletânea “Os votos de Deus: Evangélicos, política e eleições no Brasil” (Recife: Massangana, 2006).
Christina Vital da Cunha é doutora em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – PPCIS-Uerj e pelo Centre de Recherche sur le Brèsil Contemporain na École de Hautes Études en Sciences Sociales. Atualmente leciona no Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal Fluminense, coordena o Laboratório de Estudos Socioantropológicos em Política, Arte e Religião – LePar e integra a equipe de pesquisadores do grupo de antropologia Religião, Arte, Materialidade, Espaço Público – Mares e a Rede de Pesquisadores Luso-Brasileiros de Artes e Intervenções Urbanas.
É autora de “Religião e Política: uma análise da participação de parlamentares evangélicos sobre o direito das mulheres e de LGBTs no Brasil” (Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll & Instituto de Estudos da Religião, 2012); “Oração de Traficante: uma etnografia” (Rio de Janeiro: Ed. Garamond, 2015); “Religião e Conflito” (Curitiba: Ed. Prismas, 2016); “Religião e Política: medos sociais, extremismo religioso e as eleições 2014” (Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll & Instituto de Estudos da Religião, 2017). É editora do periódico científico Religião & Sociedade e é colaboradora ad hoc do Instituto de Estudos da Religião – Iser.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Pesquisa recente do Instituto Datafolha aponta que “a cara típica do evangélico brasileiro” é feminina e negra e, em muitos casos, está na periferia. Concorda com esse diagnóstico apontado pela pesquisa? Como a senhora analisa esses dados?
Maria das Dores Campos Machado – O universo evangélico é bastante diferenciado, mas os segmentos que mais crescem são justamente os pentecostais, cuja base social sempre contou com uma presença grande das mulheres e dos negros. Pesquisas anteriores já assinalavam a grande atração das igrejas pentecostais junto aos segmentos sociais vulneráveis e vivendo nas periferias das grandes cidades. As mulheres e os setores negros encontram-se entre estes grupos. Os dados dos censos do IBGE das décadas anteriores já mostravam a maior presença de mulheres neste grupo, embora em uma percentagem menor. O Censo de 2010 indicava 55% de mulheres entre os evangélicos e a Pesquisa do Instituto Datafolha encontrou 58%. Os dados daquele censo já sinalizavam que a Igreja Católica vinha perdendo mais fiéis no segmento feminino, que os homens representavam a maioria dos católicos na primeira década do século XXI e que o segmento confessional que mais se beneficiou do declínio dos católicos entre as mulheres fora o evangélico. Em síntese, o diagnóstico está correto, valendo as ressalvas de que existem diferenças nas representações de homens e mulheres quando examinamos as estatísticas por igrejas evangélicas. As chamadas igrejas históricas tendem a ter uma distribuição por sexo mais simétrica.
IHU On-Line – O que atrai as mulheres negras e de periferias para essas confissões evangélicas?
Maria das Dores Campos Machado – Existe uma vasta literatura sobre os fatores de atração do pentecostalismo junto aos segmentos pobres e de baixa escolaridade. Um número mais restrito de estudos faz o recorte de gênero e procura examinar a relação de homens e mulheres com a religião pentecostal. Uma parte desta literatura, e meus estudos se enquadram aí, reconhece a agência das mulheres que rompem com a religião da família – quase sempre a católica – e se convertem às religiões pentecostais. Entretanto, é preciso contextualizar este movimento de trânsito religioso e de expansão do pentecostalismo em nossa sociedade que é marcada:
1) por uma vergonhosa desigualdade econômica;
2) por índices alarmantes de violência contra jovens negros e mulheres;
3) por um Estado que tem se mostrado incapaz de prestar assistência social e se fazer presente na periferia das grandes cidades. Ser uma mulher negra e pobre na sociedade brasileira significa ter que enfrentar inúmeras adversidades no dia a dia para criar e manter vivos os filhos.
As igrejas pentecostais atraem estas mulheres por vários fatores. Em primeiro lugar, porque pastores/as que apresentam um perfil social muito próximo ao delas falam de uma forma bem simples de temas que lhes interessam, como por exemplo: família, casamento, violência, uso de drogas, desemprego, doenças etc. Com um discurso mágico, elas também prometem ajudar os/as fiéis a superarem suas dificuldades. Além disso, seus cultos são marcados por uma forte emoção e participação dos/as fiéis, o que acaba gerando uma sensação de acolhimento e pertencimento.
Outro ponto fundamental é que as igrejas aumentam a autoestima das mulheres e estimulam a trabalhar em situações em que os homens não estão presentes, não conseguem garantir o provimento da família e/ou são dependentes em função de algum problema de saúde. A comunidade religiosa oferece uma rede de apoio e de atividades que ampliam as relações sociais e a circulação das mulheres na esfera pública. Enfim, as igrejas evangélicas crescem porque existe na sociedade brasileira um grande contingente populacional que se encontra em situações precárias e de muita violência e que não tem acesso a outras instituições e/ou iniciativas de movimentos sociais não religiosos.
IHU On-Line – Em igrejas neopentecostais como Universal do Reino de Deus e Renascer em Cristo o percentual de mulheres chega a 69%. Como observa esse fenômeno? O que nessas igrejas sobressai em relação às demais evangélicas?
Maria das Dores Campos Machado – São igrejas pentecostais mais novas e também mais liberais do ponto de vista do vestuário e das exigências comportamentais. A Universal do Reino de Deus é a que mais se destaca neste campo e é uma Igreja extremamente pragmática. Mantém abertas as portas de seus templos em grandes avenidas ou ruas para receber a qualquer hora do dia as pessoas em sofrimento e elas são muitas e principalmente do sexo feminino. Os cultos são organizados em função de temas que afligem as pessoas – doenças, separações de casal, dificuldades econômicas etc. E se o/a fiel tem que fazer uma oferta ou pagar o dízimo, também está sempre recebendo um pouco de esperança junto com um elemento mágico qualquer oferecido pelos pastores. Pode ser uma bênção na carteira de trabalho de algum familiar desempregado, mas pode também ser um pedaço de pano com a palavra paz para colocar na casa. Isto, para quem se sente abandonado e vivendo uma grande adversidade, funciona como um alento.
Além disso, esta Igreja dispõe de uma estrutura midiática muito grande que funciona como um chamariz para as mulheres e homens que enfrentam problemas das mais diferentes naturezas. Os programas radiofônicos e televisivos transmitem testemunhos de pessoas que falam do que alcançaram com a conversão, o que pode gerar empatia e esperança no telespectador. Ao mesmo tempo, os pastores e suas mulheres estimulam o/a espectador/a a parar de sofrer e assumir uma postura mais proativa na solução de seus problemas.
A Universal, desde a década de 90 do século passado, vinha desenvolvendo programas voltados para as mulheres. Lembro-me de um programa chamado SOS Mulher, que pelo próprio nome já indicava a sensibilidade da liderança religiosa com o grupo que se pretendia recrutar ou manter na igreja. Outro ponto importante é a teologia da prosperidade que esta Igreja adota e que enfatiza o tempo presente. Esta teologia serve de dispositivo para que as mulheres revejam suas atitudes e busquem novas estratégias para aumentar a renda familiar.
IHU On-Line – Como essas confissões evangélicas compreendem o papel social da mulher e em que medida essa compreensão atende aos anseios da mulher negra e da periferia?
Maria das Dores Campos Machado – Existem representações de gênero diferenciadas nos grupos evangélicos, com algumas igrejas, como é o caso da Luterana e da Anglicana, revelando uma maior adaptação às alterações da sociedade no campo das relações de gênero. Ou seja, são igrejas mais sensíveis aos ideários dos movimentos feministas e LGBTQ e que têm percepções mais liberais acerca dos papéis da mulher na sociedade. Nas últimas décadas do século passado, adaptações também começaram a ocorrer em igrejas pentecostais e na Igreja Batista. Algumas igrejas reviram o interdito à consagração feminina, e começaram a surgir no Brasil igrejas fundadas e lideradas por mulheres.
No caso da consagração de mulheres, as pesquisas mostram que as lideranças masculinas, para manter a autoridade na Igreja, passaram a estimular a consagração de mulheres de pastores e bispos e o ministério do casal. O que acabou por vincular o pastorado feminino ao casamento. Reconhece-se a necessidade de as mulheres hoje trabalharem fora de casa e em algumas igrejas até estimula-se a entrada feminina no mercado formal ou informal de trabalho para que a família possa prosperar. Este tipo de incentivo em um segmento que vem assumindo cada vez mais a chefia de domicílio é muito importante. Algumas igrejas também lançaram candidaturas femininas para a representação do grupo confessional na política. Uma vez mais, verifica-se a preferência por esposas e filhas de pastores ou bispos, mantendo-se o controle da família e especialmente dos homens sobre as trajetórias políticas destas mulheres. De qualquer maneira, predomina entre os batistas e os pentecostais a visão da superioridade masculina frente às mulheres.
hashtag#belarecatadaedolar, criada para retratar a situação da ex-primeira dama da República Marcela Temer, foi intensamente compartilhada nas redes sociais de mulheres evangélicas de várias partes do Brasil. E hoje existem várias iniciativas encabeçadas por mulheres evangélicas que reproduzem representações tradicionais de gênero. Um exemplo disso é o chamado Culto das Princesas, comandado pela pastora Sarah Sheeva. Deve-se registrar que mesmo entre mulheres evangélicas que estudaram, tornaram-se pastoras ou profissionalizaram-se, como é o caso da ministra Damares Alves, esta reprodução dos estereótipos de gênero ocorre. Damares é uma advogada que foi assessora parlamentar e hoje, à frente do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, vem adotando uma agenda antigênero e propondo políticas regressivas no campo da educação sexual de crianças e adolescentes.
IHU On-Line – Grosso modo, as confissões evangélicas são tomadas como mais conservadoras, especialmente no que diz respeito a costumes e práticas sociais. Como essa perspectiva repercute nessa maioria feminina de fiéis?
Maria das Dores Campos Machado – É preciso lembrar que a Igreja Católica também tem valores muito conservadores no campo da sexualidade e da reprodução e que também cresce no Brasil a influência de grupos católicos extremamente conservadores. Aliás, o ataque à perspectiva de gênero começou no campo católico e depois foi assimilado pelos evangélicos. Dito isso, os valores morais defendidos pela liderança e os modelos de masculinidade e feminilidade apresentados à comunidade de fiéis não são assimilados em sua totalidade pelos que frequentam as igrejas, leem os livros e assistem aos programas confessionais. As pessoas têm agência, ação própria, e selecionam o que lhes convém. Basta ver os índices de aborto, separação e novos casamentos na sociedade contemporânea. De qualquer maneira, as pesquisas indicam que quanto maior a frequência aos eventos religiosos, maior a tendência de um alinhamento com o ideário do grupo confessional.
E aí podemos nos deparar com situações paradoxais, como no caso das campanhas antigênero desenvolvidas por setores católicos e evangélicosconservadores em vários países da América Latina – Colômbia, Peru, Equador, Brasil etc. – e que tiveram uma importante participação do segmento feminino evangélico. Estas campanhas são extremamente nocivas para os setores femininos, para as novas gerações e para as comunidades LGBTQ. Mas muitas mulheres evangélicas e católicas conservadoras se engajaram nas mobilizações por sentirem seus valores ameaçados e por se preocuparem com suas famílias e em especial com os filhos. O pânico moral criado pelas lideranças cristãs em torno da questão da educação sexual tem alimentado as campanhas contra a “ideologia de gênero” e levado estas mulheres às ruas e às galerias das casas legislativas para combater a perspectiva feminista e as demandas dos coletivos LGBTQ na área educacional.
IHU On-Line – A mesma pesquisa do Datafolha revela grande concentração de evangélicos na região Norte do país. O que esses dados indicam, na sua opinião?
Maria das Dores Campos Machado – O segmento evangélico tem uma grande capilaridade, pois é composto por centenas de igrejas sem comando verticalizado – caso da Igreja Católica – que vão se expandindo naquela região. A Universal é dentre as pentecostais a que tem uma forma de governo mais parecida com a da Igreja Católica, mas o que vemos no Norte do país é uma proliferação de grupos evangélicos, a maioria pentecostal. Em uma região com pouca infraestrutura e de difícil acesso, são pequenas igrejas que vão se instalando e assumindo funções importantes na vida social local uma vez que a presença do Estado é débil e a Igreja Católica não dispõe de quadros suficientes para atender a região. Não se pode esquecer também que foi naquela região que se instalou uma das primeiras e mais importantes igrejas pentecostais do Brasil: a Assembleia de Deus.
Christina Vital – Não se pode esquecer também que o Norte do país foi um dos polos de dispersão de evangélicos no Brasil no início do século XX, um local escolhido por missionários pentecostais para basear e difundir um novo modo de ser e de fazer a igreja de Cristo no país. Ali surgiu, por exemplo, a Assembleia de Deus, maior denominação evangélica brasileira. Sabemos que o modelo congregacional lhe permite (assim como a maior parte das denominações pentecostais no país) uma diversidade litúrgica e até mesmo doutrinária, mas fortalecem uma mensagem bíblica em torno da cura que hoje em dia é tratada em muitas esferas: espiritual, desde sempre, mas o psicológico/emocional e social também.
O Norte do país segue com sua vocação para as missões religiosas dadas as populações isoladas (indígenas, ribeirinhas entre outras) e precarizadas por trabalhos sazonais, uma pauperização significativa que faz com que o tipo de ação evangélica em redes de proteção e solidariedade tenha muita importância. Deste modo, falamos em uma questão que poderíamos dizer cultural, ou seja, a formação de gerações de evangélicos naquela região que foi lugar prioritário de missões pentecostais no início dos 1900 e também de uma questão social inegável. Isso não esvazia o sentido religioso desta expansão, mas nos possibilita pensar em dinâmicas socioculturais que auxiliam na análise do caso em particular.
IHU On-Line – Uma das discussões que tomou o Sínodo Pan-Amazônico, promovido pela Igreja Católica, foi a demora da resposta da instituição para problemas locais da região amazônica. Nesse sentido, podemos considerar que as confissões evangélicas são mais hábeis na pronta resposta aos problemas concretos da vida dos fiéis? Por quê?
Christina Vital – O modo de operação evangélico é absolutamente mais eficiente em termos de aproximação com a população local. Trata-se de áreas de difícil acesso e nas quais o trabalho face a face e diuturno são fundamentais. Entre as igrejas evangélicas há muitas de caráter independente, ou seja, que não estão ligadas a nenhum ministério ou congregação maior. Estas assumem centralidade na capilaridade da mensagem cristã tanto nestas áreas distantes quanto em favelas e periferias urbanas. São aqueles missionários, missionárias, pastores e pastoras que estão constantemente com a população oferecendo apoios diversos. O modelo episcopal de governo da Igreja Católica, e mesmo o de várias denominações evangélicas mais conhecidas na mídia, como a Universal do Reino de Deus, Igreja da Graça, Mundial do Poder de Deus, Renascer em Cristo, entre outras, dificultam o acesso a estes grupos. O modelo congregacional e a possibilidade de criação infinita de denominações e casas de oração facilitam muito o crescimento dos evangélicos nestas regiões. É uma perspectiva muito integral de religião que reúne a questão espiritual, propriamente, e também social, econômica e emocional.
IHU On-Line – Quais os limites de se ler o Sínodo Pan-Amazônico apenas como um avanço evangélico na região? E qual sua leitura particular do Sínodo?
Christina Vital – O Sínodo na Amazônia foi anunciado em 2017, pelo papa Francisco, e realizado em outubro de 2019. Nele, os representantes episcopais de nove países (Brasil, Peru, Bolívia, Colômbia, Equador e Venezuela, Suriname, Guiana e Guiana Francesa) tinham por objetivo discutir a situação da Igreja na região amazônica em termos ambientais, sociais e religiosos. Ou seja, uma das pontas era a questão da precária presença da Igreja e a existência crescente de outras religiões, com destaque para a evangélica. Como organização política e religiosa, a Igreja Católica tratou neste evento de questões internas à própria igreja e das questões do que diríamos sociologicamente, do campo religioso e das competições entre atores em seu interior. Deste modo, seria inadequado afirmar que a escolha do Sínodo e mesmo que o tema principal tenha sido o crescimento dos evangélicos na região.
IHU On-Line – Como observa o aumento, a evolução e expansão de religiões evangélicas no Brasil? Com base nos dados mais recentes, podemos afirmar que os evangélicos ainda crescem no país? Ou esse crescimento já teria chegado a um teto?
Christina Vital – Os evangélicos continuam crescendo a cada censo. Desde 1940 crescem e a partir de 1990 este crescimento se tornou mais significativo em termos percentuais e também em termos da visibilidade destes atores e suas agendas em diferentes esferas da vida social: da cultural à política. Segundo dados mais recentes do Instituto Datafolha, eles perfazem 31% da população. Em 2016, segundo o mesmo instituto, eram 29% e segundo o IBGE, em 2012, eram 22%. E o que isso quer dizer? Muitíssimas coisas. Por um lado, até aqui, foram crescendo e se afirmando como grupos minoritários, vilipendiados por uma cultura católica. O confronto cultural e político conformou/conforma boa parte das ações de atores evangélicos na sociedade. Contudo, com seu crescimento e difusão cultural, somado ao grande número de denominações, várias delas competitivas entre si, veremos o que será. Ou seja, esta visão que temos dos evangélicos hoje como aqueles a disputarem ostensivamente espaço nos âmbitos jurídico, político e cultural pode ser muito diferente do futuro, no qual podem chegar a superar os católicos em termos percentuais. Como os demais grupos agirão em relação aos evangélicos? A diversidade de denominações, pela competição interna produzida, pode ser um elemento limitador desta expansão no futuro, contrariamente ao que vemos agora?
IHU On-Line – Que leitura é possível fazer de um Brasil em que 50% se dizem católicos? Como compreender o catolicismo no Brasil de hoje, em especial na perspectiva com os evangélicos?
Christina Vital – Não interpreto estes números de modo assustador como muitos analistas parecem fazê-lo. Em primeiro lugar porque não acho que os evangélicos, como grupo social e religioso, representem um mal em si. Neste segmento há financistas selvagens, fundamentalistas, há progressistas, defensores de direitos humanos, pessoas que trabalham duro no dia a dia para proporcionar uma rede de apoio a pessoas muito marginalizadas em uma sociedade de consumo e elitista como a nossa. Entre católicos a mesma coisa.
Em segundo lugar, estes números não significam, necessariamente, uma perda de engajamento católico. Ou seja, conforme a contribuição de inúmeros estudiosos da religião, nascer no Brasil, anos atrás, era o mesmo que ser católico. Uma adesão difusa e cultural, mas que não representava engajamento, ou, como dizem os religiosos, que todos os que se autodeclaravam católicos “trabalhavam na obra”. Neste sentido, estamos, talvez, chegando a um número mais preciso daqueles católicos que combinam valores morais de referência e atuação nas igrejas e comunidades.
Entre os evangélicos estamos observando o movimento contrário: aumento daqueles que se reconhecem cultural e espiritualmente como evangélicos, mas que não estão engajados em nenhuma denominação ou trabalho missionário. Estes jogos sociais devem ser acompanhados de modo fino para não incorrermos no aumento do sentimento público de medo, pânico e atordoamento tão afeitos aos que querem controlar a sociedade mediante força e com interesses escusos.
IHU On-Line – De que forma a política entra nesse universo de fiéis femininas e negras? Qual o papel dessas mulheres na formação do “eleitorado evangélico”?
Christina Vital – As mulheres são majoritárias nas religiões no Brasil. Em algumas tradições mais do que em outras, mas formam o contingente mais numeroso dos três grandes grupos religiosos no país, a saber, católicos, evangélicos e religiões de matriz afro-brasileira. No entanto, as mulheres possuem um capital político interno e externo às suas denominações inferior ao da maioria dos homens igualmente evangélicos. Neste quesito, as religiões de matriz afro-brasileira se destacam. Em termos da representação política eletiva, por exemplo, na Frente Parlamentar de Terreiros, as mulheres dispunham de um lugar privilegiado, inclusive com a presidência da Frente sendo exercida por uma mulher. No interior das casas e terreiros de candomblé e umbanda também assumem lugar de destaque, superando, muitas vezes, os homens em termos de prestígio religioso.
No campo evangélico no qual há posição assimétrica entre homens e mulheres, como desfavorecimento destas últimas, observamos uma crescente introdução da pauta feminina. Inúmeras lideranças evangélicas estão levantando a pauta do combate à violência contra a mulher, do novo comportamento necessário do homem em relação às mulheres, a questão das jornadas extenuantes de trabalho. Dentre elas podemos citar o caso da ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, de cantoras gospel, missionárias e políticas atuantes em assembleias legislativas pelo Brasil afora como no caso da deputada estadual Rosane Félix e Alana Passos. Enfim, essas são pautas que estão no universo evangélico e que temos visto agora com força no Legislativo e no Executivo. Não se trata de uma abordagem que procure transformar a estrutura familiar e afetiva que funda a sociedade, mas de defesa e proteção da mulher, de sua saúde, da consideração de suas necessidades materiais de existência, em seu reconhecimento como célula fundamental que deve ser cuidada. Não é uma luta pelo que se poderia chamar de libertação da mulher, mas por melhores condições de vida. Para um número muito significativo de mulheres isto é o suficiente.
A detecção disso tem feito com que muitos políticos deem declarações que parecem aviltantes para um pequeno segmento social de elite intelectual, mas que ressoa forte em várias mentes e corações. Basta lembrar as declarações do então presidente Michel Temer no dia 08 de março de 2017 sobre a importância social e econômica das mulheres brasileiras e mesmo as declarações de Bolsonaro sobre a importância espiritual, social e política de sua atual esposa em diferentes eventos públicos, sobretudo nos religiosos e o rebatimento que isso tem em uma base social composta majoritariamente por mulheres. Eles estão falando propositalmente sobre a importância da mulher no lar, na família, como dominante na educação dos filhos e gestão da casa em sua complexidade. Muitas mulheres querem este reconhecimento e a possibilidade de exercício pleno desta funcionalidade. Não a negam, portanto. Querem exercê-la em melhores condições, digamos. Não sob pressão, humilhação e desprezo. Com dignidade e reconhecimento dos maridos e filhos e da sociedade em geral.
IHU On-Line – O atual governo tem bradado ideais cristãos nas orientações de Estado. Como a senhora tem apreendido a interferência das religiões no Estado brasileiro, do Executivo ao Legislativo, passando pelo Judiciário?
Maria das Dores Campos Machado – É preciso lembrar que as relações do Estado brasileiro com a Igreja Católica foram muito estreitas na maior parte da história de nossa sociedade e que os princípios da doutrina católica influenciaram o nosso sistema legal. Ou seja, a tentativa de atores religiosos católicos de influenciar as leis e as políticas públicas ocorria e segue ocorrendo. O que causa uma certa perplexidade é que com o crescimento exponencial dos evangélicos e o fortalecimento político de setores pentecostais, nos defrontamos hoje com uma atualização do conservadorismo cristão que se expressa na aliança de atores políticos católicos e evangélicos que apoiaram a eleição de Jair Bolsonaro. Trata-se de uma aliança que foi se estabelecendo em reação às conquistas legais dos movimentos feministas e pela diversidade sexual na virada do século XX para o XXI e que exigiu uma adaptação nas estratégias de intervenção pública dos dois grupos religiosos.
O fortalecimento da narrativa dos direitos humanos, por exemplo, fez que estes segmentos religiosos incorporassem vários argumentos deste campo de valores em seus discursos e passassem a disputar os sentidos e os limites destes direitos. Da mesma forma, observa-se uma tendência de criação de ONGs ligadas aos grupos religiosos evangélicos e católicos, com intuito de mobilizar os cristãos brasileiros em torno de temas como o aborto, adoção de crianças por casais homoparentais e educação sexual nas escolas. Seguindo iniciativas de outros atores políticos e da própria Igreja Católica, setores evangélicos estão também judicializando os conflitos com os outros grupos de interesse, como no caso dos psicólogos cristãos que impetraram, em 2017, uma Ação Popular no Distrito Federal contra a deliberação do Conselho Federal de Psicologia que proibia a oferta de serviços psicológicos com o propósito de mudar a orientação sexual dos pacientes. Em síntese, os grupos religiosos reagem às mudanças na sociedade, mas para obterem sucesso nesta empreitada vão também modificando seus discursos e estratégias de atuação na sociedade.
IHU On-Line – Como imagina que vai ser a presença evangélica (de candidato ao peso de eleitores) nas eleições municipais deste ano?
Christina Vital – A mobilização política evangélica costuma ser histriônica, mas muitos segmentos religiosos estão de olho nestas eleições 2020, pois elas são absolutamente fundamentais: ou se fortalecem e se capilarizam a agenda e os atores extremistas e conservadores ou poderemos verificar uma reação de segmentos de esquerda e progressistas. Como outros grupos religiosos, os evangélicos são majoritariamente conservadores, como apresentamos no livro de 2017. Este deverá ser disputado por extremistas e por progressistas. Vale chamar atenção disso para não confundirmos grupos conservadores religiosos com amantes de armas, militantes pela redução de direitos de maiorias minorizadas etc. Não é isso. A captura da maioria deste segmento conservador evangélico nas eleições de 2018 se deu na base da acentuação de medos e de uma retórica da perda que mexia com sentimentos públicos muitos difusos, como já falei em outras oportunidades. Sendo assim, podemos pensar que a adesão de conservadores aos extremistas é parcial. Aos progressistas cabe dialogar com as mentes, mas também com os corações amedrontados e atordoados de vários de seus irmãos na atualidade que vivem em meio a uma situação de precarização crescente.
Aos progressistas cabe dialogar com as mentes, mas também com os corações amedrontados e atordoados de vários de seus irmãos na atualidade que vivem em meio a uma situação de precarização crescente – Christina Vital

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