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quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

Aporofobia: o ódio elitista aos pobres em tempos sombrios, por Carlos Eduardo Araújo



   Aporofobia é um neologismo inventado pela filósofa Adela Cortina, professora catedrática de Ética e Filosofia Política da Universidade de Valência. A palavra nos parece estranha, seja ortográfica, seja foneticamente, mas tem a proeza de nomear uma realidade nefasta e ignóbil. Foi escolhida a palavra do ano de 2017, pela Fundação Espanhola Urgente.


Do site Justificando:

 Aporofobia: o ódio aos pobres em tempos sombrios

 Aporofobia: o ódio aos pobres em tempos sombrios

 

Imagem: Agência Brasil

Por Carlos Eduardo Araújo

Aporofobia é um neologismo inventado pela filósofa Adela Cortina, professora catedrática de Ética e Filosofia Política da Universidade de Valência. A palavra nos parece estranha, seja ortográfica, seja foneticamente, mas tem a proeza de nomear uma realidade nefasta e ignóbil. Foi escolhida a palavra do ano de 2017, pela Fundação Espanhola Urgente.


O vocábulo, cunhada pela professora Adela e usado em diversos artigos, livros, entrevistas e palestras, é composto pela junção de dois diferentes termos, emprestados da língua grega, e se propõe a identificar uma fobia, um medo, uma patologia social que se manifesta na aversão a alguém que é percebido como portador de determinado atributo, origem, comportamento, aspecto ou traço, como são exemplos a homofobia, a islamofobia, a xenofobia. “Aporofobia”, do grego á-poros, sem recursos, indigente, pobre; e fobos, medo; refere-se ao medo, rejeição, hostilidade e repulsa às pessoas pobres e à pobreza.

A palavra, recentemente incorporada ao léxico da língua espanhola e que já ganha foros globais, vem em um momento propício para nos ajudar a nominar e compreender o fenômeno que se depreende da fala do Ministro Paulo Guedes sobre as empregadas domésticas. Falando para empresários, a elite econômica do país, sobre a alta do dólar, disse que seria algo positivo uma vez que o câmbio baixo, o que se deu durante os governos petistas, possibilitava até empregadas domésticas irem à Disneylândia, o que seria, diz em tom jocoso e de repreensão, uma festa. Essa fala denuncia, às escâncaras e sem peias, um enorme e indisfarçável ódio, intangível mais real, aos pobres ou às classes sociais que se situam na base da pirâmide social. É um preconceito de classe, no qual se identifica um colossal desprezo, repulsa, aversão ou nojo pelos pobres, ao mesmo tempo que visa os colocar “em seu devido lugar”.

Houve um tempo em que os preconceitos, como um carma social atávico, eram objeto de interdições, de um prudente pudor, de uma pátina de civilização. As pessoas se sentiam constrangidas de os ostentar em público, eram fulminados quando expostos à luz do dia, sensíveis a ela como Drácula ao sol. Todavia, nestes tempos esdrúxulos em que vivemos, com a extrema direita no poder, foi aberta da caixa de Pandora, da qual escaparam, entre outros males, o despudor, a ofensa, a indiferença, a insensibilidade, a incivilidade. As virtudes foram subvertidas ou viradas de ponta cabeça. Aqueles preconceitos que até então eram sufocados, em proveito do convívio e de uma ética social, porque era feio, vil e indigno os alardear publicamente, passaram a ser vocalizados, exibidos e legitimados na nova ordem moral impudica, corrompida e iníqua que se instaurou entre nós, hodiernamente, e que ganhou assento no poder.

Todavia, os preconceitos ou ódios de classe não são uma invenção da onda bolsonarista, que ora usurpa o poder. Fazem parte de nossa história, gestados no seio de uma sociedade escravocrata, cujo racismo é um componente estrutural e permanente. Entretanto, não podemos deixar de reconhecer que o atual mandatário do executivo federal e seu séquito os estimulam, legitimam e difundem, por meio de falas, gestos e atitudes.

As camadas médias e altas da sociedade brasileira têm dado provas reiteradas de seu ódio de classe, de seu desprezo, de sua repulsa, de seu nojo aos pobres. Assim, qualquer mínimo progresso material que, virtualmente, as classes populares venham a auferir incomoda e gera uma desmedida aversão, principalmente da classe média, que se sente ameaçada e insegura com essa aproximação, que a obriga a coexistir em determinados espaços públicos, com pessoas egressas ou pertencentes às classe populares. 

Maria Luiza Martins de Mendonça e Janaína Vieira de Paula Jordão, estudando o nojo que as classes médias e altas devotam aos pobres aventam que: “Parece possível supor que a reação de indivíduos das camadas médias e altas frente à “invasão” dos espaços sociais por “seres inferiores” se funda também no temor da contaminação pelo Outro inferior, que se caracteriza pela falta: de capital cultural, de (bom) gosto, de maneiras adequadas de se portar e vestir (no sentido que Bourdieu lhes dá). Talvez sejam essas expressões de nojo parte de uma identidade de classe que se constrói e se mantém em oposição à classe trabalhadora e aos excluídos, uma vez que estes não possuem as condições materiais e culturais de conviver em espaços elitizados”.[1]

Um exemplo eloquente do ódio e do nojo pelos pobres pode ser extraído de um vídeo, que circula há anos no YouTube, retratando a “invasão” das praias da zona sul carioca, nos idos dos anos 80, do século passado, por um grupo de pessoas, moradoras dos subúrbios do Rio de Janeiro, que chegam em ônibus apinhados, para usufruírem de um dia de sol e mar.[2]


No mencionado vídeo desfilam falas de extremo preconceito, repulsa e nojo aos pobres. Uma jovem carioca se sentiu ultrajada pela “invasão” de sua praia: “uns ônibus horrorosos, com pessoas completamente horríveis que saem de dentro dos ônibus e vão lá sujar a praia … É uma gente sem educação mesmo, não pode tirar o pessoal do Meier e do Mangue e levar para ir a Copacabana … Eu não posso conviver com pessoas que não têm o mínimo de educação … É uma gente suja, você olhar para a cara dessas pessoas dá vontade de fugir … Eu tenho horror de olhar para estas pessoas e saber que estão no meu país, um horror, não são brasileiros não, são uma sub-raça”. Outras pessoas ouvidas acham que deveria haver uma demarcação nas praias, impedindo a entrada dos indesejáveis pobres. Outra opina que deveria ser cobrado ingresso dessas pessoas, impedindo-as, assim, de terem acesso à praia, tornando, assim, privativo de “uma elite” aquilo que se situa na esfera pública. Outro diz que está ali na praia para estar com os seus e não para conviver com essa gente mal-educada. Outra sugeri que sejam criados espaços de lazer próximos às comunidades pobres, impedindo, desta forma, que venham invadir sua praia.[3] Portanto, o preconceito de classe e o nojo por outro grupo social, promove uma hierarquização, na qual um dos grupos, no caso o dos pobres, é visto como algo fora do lugar e dotado de inferioridade. 

Com base nos estudos de Willian Ian Miller (The anatomy of disgust), Maria Luiza e Janaína Vieira Jordão depreendem que “o nojo também é considerado algo mais forte do que o sentimento, uma emoção, dado o seu enraizamento no contexto social e cultural, que lhe dá sentido e um intenso significado político, por possibilitar criar e manter hierarquias na ordem política e, inclusive, demonstrar superioridade. Ou seja, o nojo tem relação com o posicionamento superior/ inferior de coisas e pessoas. O inferior pode tornar-se, aos olhos do superior, um risco, um perigo de contágio que demonstra uma vulnerabilidade do superior em relação ao inferior provocada pelo medo de contágio, que impõe distanciamento. A experiência de uma presença indesejada, uma proximidade compulsória, pode provocar sentimentos de repulsa, medo de contaminação que podem ser percebidos por meio de expressões faciais”. [4] As expressões faciais de asco, desprezo e nojo, de representantes da classe média carioca, ficam evidenciadas no vídeo que retrata o passeio à praia de pessoas pertencentes às classes populares. 

A mídia tem sua parcela considerável de contribuição, por meio de suas novelas e “programas de humor”, na difusão de uma visão depreciativa e grotesca do pobre. Geralmente os personagens pobres são figuras estereotipadas: falam alto e com estardalhaço, mastigam de boca aberta e se vestem de maneira extravagante. 

Um programa de “humor” que caricaturava as pessoas das classes populares, com um viés de horror e nojo, era o “Sai de baixo”, produzido e transmitido pela TV Globo. 

Um personagem específico, Caco Antibes, interpretado por Miguel Falabella, frequentemente tinha falas cujos finais eram: “Eu tenho horror a pobre.” 

Seguem algumas:

 – “Palco de pobre é terreiro de umbanda. Eu tenho horror a pobre.”

– [Falando sobre bingo] “Senta as véia pobre e abre, tem um sanduíche de mortadela dentro. Aí elas come enquanto o homem tá cantando as pedra e aí dá uns peidinho assim de lado. Olha pra minha cara!”

– “Pobre é uma coisa triste. Pobre, quando quer falar bem, ficar pernóstico, coloca mais letra que o necessário […]. E termina com aquela frase que caracteriza, é praticamente um crachá de pobre: ‘Desculpe qualquer coisa.’ Eu tenho horror a pobre!”

– “Um pobre espirrou em cima de mim. Espirro de pobre adora uma aglomeração. Aquilo ali, quando ele espirra em cima de você, vem uma van lotada de bactéria. E são umas bactéria pobre, que fala tudo errado: ‘Vou causar um pobrema naquela criatura.’

– “Isto vai ser uma visão do inferno: um ônibus atochado de bicha pobre. Aquelas bicha com a metade do cabelo descolorido, oxigenado, roendo a unha e aquele futum de deocolônia. Eu tenho horror a bicha pobre.” [5]

Como denunciam Maria Luiza e Janaína Vieira Jordão: “O personagem critica modos, cheiros, espirros, associando a escatologia à pobreza, em relação a qual ele sente nojo e horror. O curioso é que, apesar de desqualificar também a linguagem popular, assumindo o lado da linguagem culta, normalmente não utiliza corretamente as normas gramaticais cultas, o que pode representar uma vigilância maior aos “modos” das classes populares e à sua falta de capital cultural”. [6]

Outro evento que escancarou o ódio, a repulsa e o nojo aos pobres foram os “rolezinhos” que ocorreram, entre os anos de 2013/2014, em alguns Shoppings da Capital paulista. Uma figura execrável da extrema direita, Rodrigo Constantino, à época jornalista da revista Veja, deu uma inolvidável contribuição para o incremento do preconceito e ódio de classe. Afirmou que os rolezinhos são um movimento de pessoas invejosas, que: “Não toleram as “patricinhas” e os “mauricinhos”, a riqueza alheia, a civilização mais educada. Não aceitam conviver com as diferenças, tolerar que há locais mais refinados que demandam comportamento mais discreto, ao contrário de um baile funk. São bárbaros incapazes de reconhecer a própria inferioridade, e morrem de inveja da civilização”.[7]

Como constatam Maria Luiza e Janaína Vieira Jordão: “Talvez um dos aspectos mais importantes do fenômeno acompanhado das reações, que são dirigidas a partir das representações sociais, seja “a confissão de que a sociedade brasileira existe sob a base da divisão de classes”. Talvez podemos, no fundo, estar observando não só um passeio de jovens de classes desprivilegiadas em um shopping. Podem ser os reflexos de um enrijecimento de fronteiras entre diferentes classes, cujos aspectos que nos parecem mais expressivos são o estranhamento, o nojo, a distância e a distinção”.[8]

O desprezo, o desrespeito e o desdém das classes médias em face das classes trabalhadoras e populares, ou seja o povo, foi personificado, recentemente, por uma palestra do jornalista Alexandre Garcia, na qual disse o seguinte: “Digamos que seja possível a gente trocar de população com o Japão, que a gente transferisse 210 milhões de brasileiros para o arquipélago japonês e trouxéssemos os 153 milhões de japoneses para o continente brasileiro. E esperássemos 10 anos para ver o que acontecia aqui – lá eu não quero pensar (…). Alguém teria dúvida de que os japoneses transformariam isso aqui em 1ª potência do mundo em 10 anos?” [9] É o que o sociólogo Jessé Souza vem denominando, inspirado em Nelson Rodrigues, de complexo de vira-lata e poderíamos denominar de demofobia. 

Jessé Souza, em um detido e instigante estudo sobre a classe média, nos diz que “O que está em jogo nessas relações é uma luta de classes muito singular: entre uma que tem tudo e outra que não tem nada. O que está em jogo, na verdade, é uma covarde opressão de classe que tende a se eternizar”. [10]

Dostoiévski denunciou, em sua extensa e extraordinária obra, situações de opressão e exploração social. Já em seu romance de estreia, “Gente Pobre”, publicado em 1846, a problemática da exclusão social está presente. O romance descreve a história, por meio de cartas trocadas, de dois personagens, um modesto escrevente de meia idade, Makar Dievúchkin, que trabalha numa grande repartição pública em São Petersburgo e uma jovem órfã recém saída da adolescência, Várvara Dobrossiélova. Eram parentes distantes e Dievúchkin tenta protegê-la de uma trama, urdida pela vizinha cafetina da jovem, que a “vende” a um jovem ricaço libertino. No decorrer do enredo percebe-se que Makar está timidamente apaixonado por sua protegida, ajudando-a economicamente, o que vai, gradativamente, o levar a penúria e a quase miséria. É um romance que retrata a injustiça social que acomete as pessoas pobres, naquela Rússia pré-revolucionária. A correspondência entre os dois se estende do dia 08 de abril ao dia 30 de setembro, de um ano que não é declinado.


Em uma carta datada de 1º de agosto há um registro digno de ser reproduzido, no qual Makar, já vitimado pela pobreza, diz a Várvara: “E todo mundo sabe, Várienka, que uma pessoa pobre é pior que um trapo e não é digna de nenhum respeito da parte de ninguém, seja lá o que for que escrevam! eles mesmos, esses escrevinhadores, podem escrever o que for! — para o pobre vai ficar tudo como sempre foi. E por que vai ficar na mesma? Porque num homem pobre, na opinião deles, tudo deve estar virado do avesso; porque ele não deve ter nada de secreto, nenhuma vaidade que seja, de jeito nenhum!” [11] Este romance social de Dostoiévski, logo aclamado pelo público, denuncia e ilustra a luta de classes e todo ódio e desprezo reservados aos pobres nesta contenda. 

Merece transcrição e reflexão o trecho da percuciente análise que Joseph Frank faz sobre o enredo do romance “Gente Pobre”. Frank é o autor da mais ampla e detalhada biografia de Dostoiévski publicada entre nós. No Brasil, foi publicada pela EDUSP, em cinco alentados volumes. Acompanhemos sua digressão sobre uma tocante passagem do romance: “No ponto mais crítico da miséria – acossado pela senhoria, humilhado pelos empregados da pensão e atormentado por seu aspecto maltrapilho – Dievúchkin, completamente abatido, se entrega à bebida. Nunca havia se sentido tão degradado e inútil, e é neste momento que uma centelha de revolta se acende em seu coração, naturalmente tão dócil e tão submisso. Caminhando por uma das ruas elegantes de São Petersburgo, cheias de lojas de luxo e de gente vestida com apuro, ele se espanta com a diferença entre esse ambiente e as multidões soturnas e infelizes de seu bairro miserável. E, de súbito, Dievúchkin começa a se perguntar por que razão Várvara e ele estão condenados à pobreza enquanto outros nascem em berço de ouro”.[12] Percebam que o romance foi publicado dois antes do famoso Manifesto Comunista, de Marx e Engels. 

Essa indagação de Dievúchkin me remete ao livro de contos de Rubem Fonseca, “O Cobrador”, no qual o personagem que dá título ao conto e ao livro, é um amálgama de bandido, poeta e revolucionário, o Cobrador seria uma espécie de vingador não apenas da divisão de classes, mas também da violência simbólica a que era submetido, cotidianamente. A certa altura diz: “A rua cheia de gente. Digo, dentro da minha cabeça, e às vezes para fora, está todo mundo me devendo! Estão me devendo comida, buceta, cobertor, sapato, casa, automóvel, relógio, dentes, estão me devendo”. [13]

Como, ao se perceberem em uma situação de absoluta iniquidade, exploração e humilhação, a que são rotineiramente submetidas, as classes proletárias e pobres não se revoltam? Jessé Souza oferece-nos uma hipótese: “Os donos do dinheiro e do poder não podem simplesmente dizer ao restante da sociedade: “Nosso intuito é deixar todos vocês, otários, sem propriedade e sem poder, apenas com a roupa do corpo, trabalhando nas condições mais favoráveis para mim.” Não é assim que acontece. Caso contrário, teríamos revolta e revolução. Não há dominação de poucos sobre muitos sem o recurso à mentira e ao engano. Em consequência, a opressão precisa ser moralizada, difundindo-se a ilusão de que o interesse do dominado é levado em conta e, mais importante, convencendo-o de que a própria dominação é para o seu bem”. [14]

O escritor inglês George Orwell escreveu, além dos romances clássicos que o fizeram mundialmente conhecido, a exemplo de “A Revolução dos bichos” e “1984”, também textos de uma contundente crítica social. Investido de uma visão anticolonialista, denunciou à exploração imperialista inglesa em vários países asiáticos, deixando, também, importantíssimas e graves acusações sobre a situação de pobreza que provocaram. 

O livro “O Caminho para Wigan Pier”, um misto de reportagem realista e manifesto político, publicado originalmente em 1937, retrata de maneira direta e virulenta, as condições miseráveis de vida dos trabalhadores do norte da Inglaterra à beira da Segunda Guerra mundial. A pobreza e o sofrimento pungentes dos mineiros são retratados de forma brutal, desde as condições iníquas de moradia, ao medo das frequentes ondas de desemprego que assolavam a região, colocando em risco extremo a sobrevivência física dos trabalhadores e de suas famílias. Orwell já havia mergulhado a fundo na experiência da pobreza quase absoluta, nos dois anos que viveu perambulando como mendigo e trabalhador desqualificado pela França e pela própria Inglaterra – experiência narrada em seu primeiro livro, Na pior em Paris e Londres.

Neste livro-denúncia Orwell expõe, com crueza e azedume, todo o ódio e desprezo da classe média inglesa à classe operária. Tantas décadas nos separam das contundentes palavras do autor e de seu libelo social, enunciados para outra época e outra sociedade e,  infelizmente, tão atuais: “Toda pessoa de classe média tem um preconceito de classe adormecido que só precisa de qualquer coisinha para despertar; e, se tiver mais de quarenta anos, provavelmente tem a firme convicção de que sua classe social foi sacrificada em prol da classe mais abaixo. Tente sugerir a um homem bem-nascido, do tipo que não pensa muito, e que luta para manter as aparências com quatrocentas ou quinhentas libras por ano, que ele pertence a uma classe de parasitas exploradores — ele vai achar que você está louco. Com perfeita sinceridade, vai apontar uma dúzia de aspectos em que ele está pior de vida do que um operário. Aos seus olhos, os operários não são uma raça submersa de escravos; são uma maré sinistra, isso sim, que vai subindo sorrateiramente até engolir a todos — a ele mesmo, seus amigos e sua família — e varrer do mapa toda cultura e toda a decência. Daí vem essa estranha ansiedade, esse temor de que a classe operária se torne muito próspera. Em uma edição da Punch logo depois da guerra, quando o carvão ainda conseguia altos preços, há um desenho mostrando quatro ou cinco mineiros de cara feia e sinistra, andando em um carro barato. Um amigo que os vê na rua os chama e pergunta onde conseguiram aquele carro emprestado. Eles respondem: “A gente comprou este troço!”. E isso, veja, é suficiente para a Punch; pois que mineiros comprem um carro, mesmo que sejam quatro ou cinco em um carrinho, é uma monstruosidade, uma espécie de crime”.[15]

Episódios eivados de preconceitos de classe, como aquele envolvendo a fala de Paulo Guedes sobre as empregadas domésticas, demonstram como é incômoda para as classes médias e altas da sociedade a presença de pessoas da classe trabalhadora, a coexistir no mesmo espaço físico que elas, gozando de iguais direitos, porque vistas como inferiores. Não é que as classes trabalhadoras não possam frequentar os mesmos espaços destinados às elites: podem, mas dependem de consentimento, de autorização, ou seja, na condição de empregados, balconistas, faxineiros etc., não como iguais. Tudo a escancarar a brutal desigualdade e exploração social a que estão submetidos os pobres e que nos constitui, enquanto uma sociedade, marcada indelevelmente pela escravidão. 

Mais uma vez é Jessé Souza que, com sua contundência crítica, nos diz: “… ao aspecto econômico se soma o sadismo, presente no cerne de toda sociedade fundada no trabalho escravo. Ninguém escraviza o outro sem, ao mesmo tempo, negar-lhe a humanidade. […] É preciso mostrar que o outro é inferior e está ali apenas para servir. […] A classe média brasileira herda o abuso e o sadismo de seus avós, e um dos motivos para isso é que nossa inteligência cooptada e colonizada nem sequer percebe a escravidão como a nossa semente social mais importante. […] Nossa classe média não apenas explora economicamente as classes abaixo dela, ela humilha covardemente os mais frágeis, os esquecidos e abandonados tanto por ela, classe média, quanto pela “elite do atraso”. [16]


Carlos Eduardo Araújo é Mestre em Teoria do Direito (PUC -MG)


Notas:

[1] MENDONÇA, Maria Luiza Martins de e JORDÃO, Janaína Vieira de Paula. Nojo de pobre: representações do popular e preconceito de classe. Contemporânea.  Ano.12, Vol.1, N23, 2014.
[2] Documento Especial – Pobres vão à praia (Melhores Momentos). Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=QShr9GpMOEc. Acesso em 17 fev. de 2020.
[3] Documento Especial – Pobres vão à praia (Melhores Momentos). Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=QShr9GpMOEc. Acesso em 17 fev. de 2020.
[4] MENDONÇA, Maria Luiza Martins de e JORDÃO, Janaína Vieira de Paula. Nojo de pobre: representações do popular e preconceito de classe. Contemporânea.  Ano.12, Vol.1, N23, 2014.
[5] MENDONÇA, Maria Luiza Martins de e JORDÃO, Janaína Vieira de Paula. Nojo de pobre: representações do popular e preconceito de classe. Contemporânea.  Ano.12, Vol.1, N23, 2014.
[6] MENDONÇA, Maria Luiza Martins de e JORDÃO, Janaína Vieira de Paula. Nojo de pobre: representações do popular e preconceito de classe. Contemporânea.  Ano.12, 
[7] MENDONÇA, Maria Luiza Martins de e JORDÃO, Janaína Vieira de Paula. Nojo de pobre: representações do popular e preconceito de classe. Contemporânea.  Ano.12, Vol.1, N23, 2014.
[8] MENDONÇA, Maria Luiza Martins de e JORDÃO, Janaína Vieira de Paula. Nojo de pobre: representações do popular e preconceito de classe. Contemporânea.  Ano.12, Vol.1, N23, 2014.
[9] Site Brasil 247 – Redação. Bolsonaro divulga vídeo de Alexandre Garcia menosprezando brasileiros. Disponível em: https://www.brasil247.com/brasil/bolsonaro-divulga-video-de-alexandre-garcia-menosprezando-brasileiros. Acesso em 18 de fev. de 2020.
 [10] SOUZA, Jessé. A Classe Média no Espelho: Sua História, Seus Sonhos e Ilusões, Sua Realidade. Estação Brasil. 2008.
[11] Dostoiévski, Fiódor. Gente Pobre. Editora 34, 2009. 
[12] FRANK, Joseph. Dostoiévski: As Sementes da revolta (1821 a 1849). EDUSP, 1999.
[13] FONSECA, Rubem. O Cobrador. Agir, 2010.
[14] SOUZA, Jessé. A Classe Média no Espelho: Sua História, Seus Sonhos e Ilusões, Sua Realidade. Estação Brasil. 2008.
[15] George Orwell. O caminho para Wigan. Companhia das Letras, 2010. 
[16] SOUZA, Jessé. A Classe Média no Espelho: Sua História, Seus Sonhos e Ilusões, Sua Realidade. Estação Brasil. 2008.

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