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terça-feira, 7 de janeiro de 2020

Trump e o discurso da salvação fundamentalista neopentecostal em proveito próprio: a garantia para a ofensiva contra o Irã, por Bruno Reikdal Lima




A possibilidade de guerra atômica (ou qualquer outra catástrofe global) passa a ser interpretada como esperança para a o “novo reino”, uma nova vida, a “restauração do paraíso”.

Trump e a salvação fundamentalista: a garantia para a ofensiva contra o Irã

por Bruno Reikdal Lima -  Jornal GGN

Assim como Reagan e Bush, Trump depende do fundamentalismo evangélico estadunidense para tornar internamente aceitável suas políticas, especialmente o ataque insano ao Irã e o potencial catastrófico de suas consequências. Lutando contra o “reino do mal” (Reagan) e o “eixo do mal” (Bush), em nome do “reino da liberdade” e da “democracia”, os ex-presidentes se firmaram nas narrativas milenaristas e apocalípticas que se tornaram hegemônicas entre evangélicos tradicionais e pentecostais nos EUA após a Segunda Guerra, para fazer valer políticas de austeridade e intervenções militares.
Essas narrativas, em geral, assumem um tipo de leitura literal dos textos bíblicos, procurando aplicar os oráculos, os ditos de sabedoria e profecias a fatos e eventos históricos, de modo a encontrar os sinais que indiquem a chegada do “dia do Juízo” ou “o Juízo Final”, chamado por vezes de “Armagedon”. É uma leitura moderna, relativamente recente, que reduz a interpretação do Apocalipse, último livro do cânone, a um enigma a ser decifrado, e que preparará as comunidades de fiéis para a uma grande catástrofe, o evento definitivo que abriria as portas para a vinda de Jesus e o fim da História.
Toda essa construção depende de uma série de pressupostos e critérios para a interpretação bíblica que precisam ser assumidos. É uma leitura moderna, com raízes no final do século XVIII e que se desenvolve especialmente no mundo algo-saxão, durante o século XIX. A noção de “verdade” para essa interpretação precisa ser científica, no sentido de histórica e factualmente verificável – mas sem a aplicação de método ou procedimento científico de verificação. Desse modo, se a Bíblia é verdadeira (modernamente falando), o que nela está escrito é uma descrição histórica de fatos, que podem ser verificados (ou que devem ser nesse “novo mundo”). Da mesma maneira, os textos proféticos ou oraculares dizem respeito a dias futuros também verificáveis e que necessariamente devem ocorrer, de acordo com a interpretação. O quebra-cabeças hermenêutico vai se montando e a aceitação da violência e dos desastres como inevitáveis ou ainda como bons por servirem como sinais de confirmação do “fim dos tempos”, pode ser concretizada.
A fetichização dessa interpretação e o desejo por se juntar a Deus em seu reino no fim não apenas facilitam a deglutição de catástrofes, como por vezes incentivam a aceleração do relógio da história. A criação do Estado de Israel, por exemplo, foi compreendida a seu tempo como cumprimento de uma profecia das Escrituras – narrativa mantida por muitas comunidades até o dia de hoje. Nesse prisma, os inimigos do Estado de Israel se tornam inimigos das comunidades evangélicas, pois são grupos que se voltam contra a profecia e passam a cumprir o papel dos que desejam impedir o retorno do Cristo. Mais do que isso: a intensificação da guerra e das tensões entre o Estado de Israel e seus adversários alimenta uma interpretação profética de que esse conflito requererá uma batalha final e anos de paz. Interpretação relativamente útil para tornar possível constantemente se acender um fósforo próximo do barril de pólvora que é o Oriente Médio.
É curioso como essa narrativa ganha vida no final dos anos 90 e início de 2000 com a série de livros best-seller nos EUA e na América Latina Deixados para trás, publicado em português pela United Press, que em 16 volumes desenvolve histórias de pessoas que viveriam os eventos proféticos do Armagedon. Na ficção doutrinária, temos as tensões e pacificações no Oriente como tema, uma liderança popular e carismática como sendo o anti-Cristo, a catástrofe como destino e a desconfiança da bondade nas relações políticas e internacionais como o posicionamento correto dos cristãos que terão uma segunda chance de salvação em um período de tribulações. Do mesmo modo, é curioso como nos anos 80 nos EUA se tornaram best-sellers livros de Hal Lindsey como There’s a new world coming e The late, great planeth Earth. Neste último, Lindsey escreve que:
Quando a batalha do Armagedon chegue a seu temível fim e pareça que toda a existência terrena ficará destruída, nesse mesmo momento aparecerá o Senhor Jesus Cristo e evitará a aniquilação total. à medida que a história se apressa para esse momento, permita-me o leitor fazer algumas perguntas: sentes medo ou esperança de libertação? A resposta que você der para esta pergunta determinará sua condição espiritual.
Mais interessante ainda porque considera que a batalha do Armagedon será uma guerra nuclear, aterrorizante, mas necessária de acordo com o modo como interpreta as Escrituras. Assim, o medo ou a esperança de que isso aconteça por parte do fiel é termômetro para sua capacidade de estar espiritualmente pronto, salvo, preparado para a volta de Jesus, ou não. Nem sua influência e em seu apelo para a batalha do Armagedon como a guerra nuclear (necessária, portanto) mudaram, como podemos ver em escritos mais recentes como Apocalipse Code, de 1997 Faith for the Earth’s Earth hour, de 2003 (um ano após escrever um livro sobre a Jihad islâmica de seu ponto de vista evangélico fundamentalista, The everlast hatred: roots of Jihad). Lindsey escreve os primeiros textos durante a Guerra Fria e tendo como adversário a União Soviética. Já os últimos, nos tempos de Bush e tendo em mente os conflitos no Oriente Médio e o fortalecimento do Islã.
A possibilidade de guerra atômica (ou qualquer outra catástrofe global, como os efeitos das mudanças climáticas ou a Terceira Guerra Mundial) passa a ser interpretada como esperança para a o “novo reino”, uma nova vida, a “restauração do paraíso”. As consequências de uma guerra, a potencialização dos conflitos sociais, as turbulências econômicas e políticas, são todas manifestações e sinais de que o “dia do Juízo” ou o “fim dos tempos” está chegando. Dessa forma, se o ataque ao Irã não é vontade de Deus, permitindo uma guerra santa, as consequências que desse caso crítico podem deflagrar os sinais e momentos pelos quais as comunidades de fiéis devem ansiar. Trump não precisa ser um “homem de Deus” que realiza sua vontade para que a narrativa fundamentalista faça sentido, mas apenas alguém que historicamente cumpre os planos divinos para a salvação da humanidade e o retorno de Jesus, que necessariamente ocorrem após um grande momento de desastre e violência.
Nesse sentido, diferentemente de um fundamentalismo dependente de uma personagem carismática que encarne e execute com perfeição os desígnios de Deus, o fundamentalismo evangélico do tipo estadunidense é capaz de suprimir a pessoa que toma as decisões e suas imperfeições pela realização divina e histórica dos planos sagrados, tornando a guerra santa não por ser justa, mas exatamente em seu oposto: por potencializar ou promover opressões que resultem no “fim de tudo” – o que realmente se espera, para que venha o verdadeiro Salvador. Trump passa a ser um peão que pode operar livre e irresponsavelmente, tendo as consequências de suas ações recebidas como efeitos negativos necessários, convertidos agora em bons atos, já que auxiliam na realização da profecia, da fé. Para suas ofensivas como presidente dos EUA, depende do funcionamento perfeito de sua religião popular.


Referências citadas no texto
LAHAYE, Tim. Deixados para trás. United Press, 2001.
LINDSEY, Hal. The late, great planeth Earth. Zordevan Publish House, 1970.
LINDSEY, Hal. There’s a new world coming. Harvest House, 1973.
LINDSEY, Hal. Apocalipse Code. Western Front Ltda, 1997.
LINDSEY, Hal. The everlast hatred: roots of Jihad. WND Books, 2002.
LINDSEY, Hal. Faith for the Earth’s Earth hour. Oracle House Pub Inc, 2003.

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