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quarta-feira, 27 de março de 2019

Lava Jato: a guerra ideológica, o homem comum e o que “realmente importa”, por Sylvia Debossan Moretzsohn




Passes de mágica sempre realizam um duplo movimento: atraem a atenção do público e a desviam dos mecanismos que permitiram o truque. Ao desenhar o juiz Marcelo Bretas tirando da cartola o ex-presidente Temer em pele de coelho diante da terra arrasada que Picasso consagrou mundialmente com seu painel sobre o bombardeio de Guernica, Renato Aroeira representou com precisão o mais recente golpe da Lava Jato. No estado atual de degradação da política, esse golpe pode se tornar o ponto de partida para o recrudescimento das manifestações populares que interromperam o mais longo período de democracia no Brasil e, agora, consolidariam o caminho fascistizante iniciado desde então.

Esse risco, porém, é negligenciado por quem se limita a ver nos passes de mágica apenas o movimento ilusionista. Como na sucessão de bolsonarices, damarices, olavices e outras sandices protagonizadas por membros do atual governo, também desta vez, com o estardalhaço habitual que as operações da Lava Jato provocam, retomou-se nas mídias e redes sociais a onda de alertas para o “desvio de atenção” daquilo que “realmente importa” – no caso, acima de tudo e imediatamente, a reforma da Previdência.

O ex-senador Roberto Requião, por exemplo, tuitou assim:


De fato, a súbita decisão de mandar prender Temer – identificado como chefe de uma quadrilha atuante há 40 anos, mas apenas agora descoberto – e o ex-ministro e ex-governador do Rio Moreira Franco, entre outros, no dia 21 de março, ocupou o noticiário e as redes e retirou o foco das críticas a Bolsonaro em sua desastrada visita aos Estados Unidos, e de quebra contribuiu para reduzir, nas mídias sociais, a repercussão das manifestações contra a reforma da Previdência, que a grande imprensa não mencionou, embora esse ocultamento, no caso, provavelmente fosse ocorrer de qualquer modo, dado o comprometimento dessa imprensa com o projeto da reforma.

Porém, há três equívocos nessa interpretação. O primeiro é ignorar o duplo sentido do diversionismo, que ao mesmo tempo desvia a atenção mas reitera a pauta ideológica. Quando, por exemplo, a ministra Damares Alves apareceu num vídeo afirmando que menino veste azul e menina veste rosa, ela não estava apenas produzindo uma cortina de fumaça, mas investindo na rejeição das reivindicações do movimento LGBT e de todos quantos lutam pela aceitação da diversidade de gênero. Quando o ministro Ernesto Araújo fala sobre o combate ao “marxismo cultural” e o associa à tentativa de exterminar a humanidade, ele carrega as baterias contra todos os movimentos que ao longo de pelo menos o último século e meio se empenharam na luta pela igualdade de direitos.

Discursos delirantes têm, portanto, consequências muito concretas, e isso não poderia ser desprezado. E este é o segundo e principal equívoco: ignorar a importância decisiva da luta ideológica, que as forças vitoriosas desde a gestação do golpe travaram com enorme competência. Não por acaso Bolsonaro insiste tanto no afastamento do “viés ideológico” que marcaria os governos anteriores, como se o dele não tivesse um viés muito mais marcante.

O terceiro equívoco é considerar que, de fato, a (suposta) cortina de fumaça seja eficaz  – e que, portanto, sejamos todos mesmo muito tolos – e que, uma vez dissipada, teríamos força para barrar os projetos ou reverter as decisões que destroem direitos e entregam o patrimônio nacional. Ora, o que “realmente importa” foi justamente a campanha ideológica baseada em fake news – entre elas o kit gay e a mamadeira de piroca – que convenceram uma significativa parcela da população a votar contra si própria.

Bateu, levou

No caso da mais recente ação da Lava Jato, mesmo os mais célebres jornalistas de direita, como Reinaldo Azevedo, criticaram a decisão do juiz Marcelo Bretas, da mesma forma que juristas, que assinalaram a  “motivação política e midiática” da medida, diante da fragilidade das justificativas apresentadas. Foi, obviamente, uma forma de reagir à decisão do STF, que, embora por apenas um voto, frustrou a ambição dos procuradores da Lava Jato de criar uma fundação de direito privado no Paraná para gerir R$ 2,5 bilhões oriundos de um acordo com a Petrobras, resultantes do pagamento de multas da empresa nos EUA e depositadas no Brasil em reais, que consolidaria o poder paralelo da “República de Curitiba”. Foi, também, uma resposta à reação do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, à pressão de Sérgio Moro, ex-juiz condutor da Lava Jato e atual ministro da Justiça, para a aprovação de seu “projeto anticrime”.

Como escreveu o insuspeito Merval Pereira em seu blog no jornal O Globo, a ação foi “uma demonstração de força da Lava-Jato, depois da derrota que sofreu no STF. É o modus operandi deles, dar o troco para deixar a sensação de que não são passíveis de controle. Cada vez que sofrem uma derrota, dão o troco alto”. Mais ou menos como ameaçava e praticava o famoso assessor de Collor, Cláudio Humberto: “bateu, levou”.

Mas vejam só: um órgão público de investigação destinado a averiguar atos de corrupção não precisa atuar de acordo com o estrito cumprimento da lei. É a coisa mais natural do mundo que aja politicamente – não no sentido de que todas as instituições são mesmo políticas, mas no sentido da pequena política das barganhas e ameaças – e esteja autorizado a “dar o troco” diante de qualquer ameaça à realização da vontade de seus integrantes.

Ao ver derrotado o projeto da “República de Curitiba”, Deltan Dallagnol, o líder dos procuradores, aquele que se considera investido de uma missão divina para sanear o país, começou a disparar tuítes tentando justificar seu projeto e ao mesmo tempo atacando a decisão do STF como uma derrota dos que lutam contra a corrupção, o que, indiretamente, compromete o outro lado com a própria prática a ser combatida. Da mesma forma, ao responder à contestação depreciativa de Maia, Moro declarou: “Talvez alguns entendam que o combate ao crime pode ser adiado indefinidamente, mas o povo brasileiro não aguenta mais”. E arrematou, na nota divulgada à imprensa a respeito desse episódio, com um apelo: “Que Deus abençoe essa grande nação”.


Lembrou, para quem tem memória, a declaração de voto do então presidente da Câmara, Eduardo Cunha – na época aliado da Lava Jato, e hoje preso –, pelo impeachment da presidente Dilma: “Que Deus tenha misericórdia dessa nação”.

O troco do “homem comum” e o limiar do fascismo

No episódio da prisão de Moreira Franco, Folha de S.Paulo deu em seu site chamada para uma matéria que, no jargão jornalístico, seria considerada “lateral”: alguma coisa curiosa, complementar à notícia principal. Mas muito significativa: tratava de dois personagens que, cada qual a seu modo – um por iniciativa própria, outro por acidente –, participaram da prisão de Moreira Franco. O personagem acidental foi o taxista surpreendido por policiais federais que lhe repetiram o clichê clássico dos filmes B de ação de outrora – “siga aquele carro!” – e ficou tão nervoso que se esqueceu de ligar o taxímetro (a matéria não informa se ele, afinal, ficou no prejuízo, ou se o eventual prejuízo foi compensado pela consciência apaziguadora da missão cumprida). O outro foi o advogado que estava ao lado de Moreira no voo que o trazia ao Rio e, “com a aeronave já no solo, tirou o celular do modo avião” – claro, porque do contrário teria cometido um delito – e leu a notícia dos mandados de prisão contra o seu vizinho de poltrona. Convencido de que o ex-ministro planejava fugir, fez o possível para lhe dificultar o caminho, a ponto de postar-se na frente do carro que o aguardava.

O tom da matéria não é nada crítico, pelo contrário: anuncia “a história de como um advogado e um taxista ajudaram a prender um dos outrora gigantes da política brasileira”. Por isso mesmo, entretanto, é tão importante: porque valoriza o homem comum imbuído de sua missão redentora e o “troco” que ele dá a um corrupto poderoso.

Logo após a decisão que frustrou os objetivos da “República de Curitiba”, estimulou-se, via redes sociais, uma manifestação contra o STF. Foi um fracasso. No entanto, em redes privadas, passou a circular um vídeo – que não será reproduzido aqui por motivos óbvios – convocando um protesto maciço para pouco antes de 10 de abril, quando o STF julgará a questão da prisão em segunda instância, que, como se sabe, afeta diretamente o ex-presidente Lula. O vídeo defende essa causa, mas principalmente conclama ao “impeachment do STF”, em defesa da Lava Jato. Com uma trilha sonora triunfalista, alterna closes de pessoas com o rosto pintado de verde e amarelo e imagens das multidões que se manifestaram pelo impeachment. E apela: “erga sua bandeira, lute por um país justo, lugar de corruptos é na cadeia, todos unidos nas ruas pelo Brasil”. Num quadro, destaca o rosto de uma jovem pintada com as cores da bandeira brasileira e estimula: “faça parte dessa história”.

O discurso contra as instituições é de grande apelo popular, porque as instituições de fato estão corroídas por dentro, como madeiras atacadas por cupins, das quais sobra apenas a casca, que se desintegra diante da menor pressão. Incutir no homem comum a sua missão de regenerar o país é algo muito fácil num contexto de tamanha degradação da política.

Teremos assim um fiscal em cada esquina, vigilante, pronto a agir, em nome da pátria, da família, talvez de Deus. Será isso que nos aguarda?

Sylvia Debossan MoretzsohnProfessora aposentada da UFF, pós-doutoranda na Universidade do Minho/Pesquisadora do ObjETHOS

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