"No livro O ano de 1993, José Saramago nos remete a um futuro hipotético, em que homens e mulheres habitam um mundo devastado por forças ocultas que disseminam a violência. "
Ilustração do livro "O ano de 1993", de Graça Morais
No livro O ano de 1993, José Saramago nos remete a um futuro hipotético, em que homens e mulheres habitam um mundo devastado por forças ocultas que disseminam a violência. Hordas humanas perambulam por campos e desertos, aterrorizadas por animais mecanicamente modificados. Em uma das passagens do livro, ele narra que o comandante das tropas de ocupação tem um feiticeiro no seu estado-maior. A ele cabe diminuir a cidade evocando seus poderes, assistir ao comandante chicotear a cidade até se cansar para depois trazê-la ao seu tamanho normal novamente. Assim, após uma noite inteira de açoite, os habitantes se perguntam sobre as marcas de chicotadas que têm no rosto, mas com a certeza de que nada lhes acontecera.
O ano de 1993 foi escrito em 1975. É uma crítica ao regime salazarista, ciclo fascista que consumiu Portugal durante 41 anos, encerrado com a Revolução dos Cravos. A cena proposta por Saramago é constituída pela mitificação religiosa, a fragmentação da organização coletiva e o uso da força do aparato de coerção. A barbárie é a consequência.
Recupero a narrativa porque ela traz elementos para alguma reflexão sobre o novo ciclo que se apresenta após as eleições de 2018, sobretudo, se tomarmos como ponto de partida a educação. No ensino básico, intenções como criar a modalidade de ensino à distância foram defendidas pelo presidente eleito. A medida já faz parte das novas Diretrizes Curriculares Nacionais, homologadas pelo atual governo, que prevê, a critério de cada estado, a opção de oferecer a modalidade no ensino médio. O caráter da proposta tem como fundo a desconstrução de uma perspectiva de coletividade, enfraquecendo a escola como espaço formador de consciência e de diálogo.
Outro aspecto que assolapa a educação brasileira segue em torno do polêmico projeto que busca implementar o Programa Escola sem Partido. Ele impõe uma série de restrições à prática profissional de professores e à livre manifestação do pensamento. A proposta carrega o espectro ideológico do totalitarismo, impedindo que visões de mundo possam ser apresentadas ao conjunto de estudantes. Diversas versões da lei tramitam em Assembleias Legislativas e Câmara Municipais brasileiras.
Recentemente, a deputada estadual eleita em Santa Catarina, Ana Caroline Campagnolo (PSL), incitou estudantes a filmar e denunciar professores, abrindo um canal informal de denúncias, após o segundo turno das eleições. A atitude gerou uma ação civil do Ministério Público do Estado de Santa Catarina, ajuizada contra a deputada eleita. O Escola sem Partido é correlato às críticas que seus entusiastas propagam sobre o que chamam de ideologia de gênero e sua exclusão do plano educacional, o que encontra sustentação em visões religiosas fundamentalistas.
Os cortes nos orçamentos das universidades federais refletem a onda contra os espaços de produção do conhecimento. De acordo com a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), o orçamento para obras, compra de equipamentos e manutenção para 2019 corresponde a 20% do que era investido em 2014, colocando a universidade pública em situação de alerta. Na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), os recursos para investimentos têm diminuído drasticamente nos últimos anos. Para 2019, a aplicação de recursos será de R$ R$ 4,5 milhões. Em 2016, quando as receitas começaram a cair, o orçamento era de R$25 milhões. Recentemente, o reitor da UFSC afirmou que haverá corte em diversas áreas.
A recente indicação de Ricardo Vélez Rodríguez para o Ministério da Educação vem completar o conjunto de incertezas que pairam sobre a educação brasileira. Vélez Rodríguez é professor emérito da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército. Entusiasta da privatização e do Programa Escola sem Partido, apresentou em texto intitulado Um roteiro para o MEC, crítica a “uma política estatizante criada por Vargas” e se comprometeu a desmontar aquilo que chama de “doutrinação de índole cientificista e enquistada na ideologia marxista, travestida de ‘revolução cultural gramsciana’, com toda a corte de invenções deletérias em matéria pedagógica como a educação de gênero”. Na posição de Vélez Rodríguez fica evidente a sua ideologia autoritária, rechaçando formas de pensar diferentes das que regem o novo governo. Fica a dúvida sobre o futuro da produção do conhecimento, diante de uma possível perda da liberdade e autonomia universitária para fazê-la.
O cenário parece regido por uma lógica composta pela desmobilização das ações coletivas, esvaziando espaços de convivência a partir do conhecimento; pelo medo diante da força de coerção, explicitada pela ampla participação dos militares no próximo governo e a mistificação religiosa fundamentalista, como no apocalíptico mundo de O ano de 1993. No entanto, Saramago inspira a resistência sobre as contradições. O autor sempre acende uma centelha de esperança sobre a barbárie. Basta lembrar que O ano de 1993 é varrido por um grande vento, e houve quem chorasse e quem cantasse naquele dia que amanheceu em uma terra livre.
Referências:
O ano de 1993, José Saramago. Companhia das Letras, 2007.
Clarissa Peixoto - Mestranda no POSJOR e pesquisadora do objETHOS
Fonte do texto: ObjETHOS
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