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sábado, 11 de novembro de 2017

No Sermão da Montanha, Jesus convoca os pobres: em marcha! Por Mauro Lopes



Do site Caminho para Casa:


Ocupação dos sem teto em São Bernardo do Campo. A eles Jesus se dirige: em marcha!
Neste domingo (6), cristãos católicos celebram a solenidade de Todos os Santos –a data original é 1 de novembro, mas há países, entre os quais o Brasil, nos quais ela é deslocada para o domingo seguinte. O Evangelho que a Igreja oferece à oração e meditação é o trecho mais famoso do Sermão da Montanha, que toma os capítulos 5 a 7 de Mateus; trata-se do conhecido discurso sobre as Bem-Aventuranças.
Sugiro uma meditação a partir de duas questões deste texto que é um dos pilares do cristianismo: 1. O que fala Jesus; 2. Para quem fala Jesus.
A tradução que ofereço do texto é tomada da área da Liturgia da Palavra do site da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). Mt 5,1-12a:
“Naquele tempo:
Vendo Jesus as multidões, subiu ao monte e sentou-se.
Os discípulos aproximaram-se,
e Jesus começou a ensiná-los:
Bem-aventurados os pobres em espírito,
porque deles é o Reino dos Céus.
Bem-aventurados os aflitos,
porque serão consolados.
Bem-aventurados os mansos,
porque possuirão a terra.
Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça,
porque serão saciados.
Bem-aventurados os misericordiosos,
porque alcançarão misericórdia.
Bem-aventurados os puros de coração,
porque verão a Deus.
Bem-aventurados os que promovem a paz,
porque serão chamados filhos de Deus.
Bem-aventurados os que são perseguidos
por causa da justiça,
porque deles é o Reino dos Céus.
Bem-aventurados sois vós, quando vos injuriarem
e perseguirem, e mentindo,
disserem todo tipo de mal contra vós, por causa de mim.
Alegrai-vos e exultai,
porque será grande a vossa recompensa nos céus.”
1.  O que fala Jesus
Uma leitura de fato colada ao texto, ao seu espírito e ao contexto indicará claramente: a interpretação açucarada que se disseminou sobre o discurso  é em todo falsa e enganadora.
Meditar esta fala de Jesus com fidelidade indicará que se trata da apresentação de seu projeto-programa àqueles com os quais desejou caminhar e caminhou efetivamente.
Há um problema relevante nas traduções que são oferecidas nas diversas traduções da Bíblia e que auxiliou na disseminação desta versão “água com açúcar”. Vamos examinar juntos este problema a seguir.
O que afirmam as traduções correntes? Que Jesus  refere-se àqueles e àquelas que são os sujeitos de seu discurso como bem-aventurados ou, na maior parte das traduções, como felizes.
A origem da expressão é a palavra Makarioi  (felizes, benditos, bem-aventurados) presente nos evangelhos, escritos em grego e que se socorrem da tradução grega da Bíblia, a Septuaginta, traduzida por rabinos do hebraico para o grego koiné, entre o século 3 a.C. e o século 1 a.C. e que se tornou a versão clássica da Bíblia hebraica para os cristãos, usada como base para a quase totalidade das traduções da Bíblia.
Mas Jesus não pronunciou seu discurso em grego, e sim em aramaico ou  em hebraico. Ele provavelmente usou a palavra ashréi, que tem um sentido muito distinto da tradução grega, e refere-se a “andar”, “caminhar”, “marchar”.[1]
O encontro com a originalidade da expressão de Jesus rompeu com uma perspectiva grega de fundo hedonista que perpassou a tradução grega pelo uso da expressão Makarioi . A palavra que emerge da escuta a mais original possível da fala de Jesus,  ashréi, aparece 43 vezes na Bíblia hebraica. É uma exclamação: “em marcha!” ou “a caminho!”. Ela “não evoca uma vaga felicidade de essência hedonista, mas implica uma retidão do homem marchando na estrada sem obstáculos que leva a IhvH e, aqui, em direção ao reino de IhvH. Todos os dicionários etimológicos do hebraico dão como primeiro sentido ao radical ashar o de marchar; ser feliz é um sentido secundário e tardio.”[2]
Ao revisitar as duas primeiras bem-aventuranças colocando lado a lado a tradução ofertada pela CNBB a partir do grego e a versão mais próxima do discurso original de Jesus, nota-se uma mudança radical no sentido:
São mesmo duas propostas distinta. Na versão grega, Jesus parece congratular-se com as pessoas. Mas soa estranho que alguém seja felicitado por estar aflito, chorar, estar enlutado ou ser perseguido.  A leitura a partir da ressonância hebraica não é uma congratulação a pessoas que Jesus designaria “felizes”, mas convocação para uma caminhada comum, um projeto comum.
Chouraqui pontua: “Iéshoua (Jesus) não tem a crueldade de declarar ‘felizes’ a multidão de deserdados, de opositores condenados pelas legiões romanas, por qualquer coisa que digam, ao suplício da cruz ou, na melhor as hipóteses, à escravidão nas galés ou nos bordéis do império. Não se chamam de ‘felizes’ os homens enviados às torturas, aos massacres ou aos genocídios deste mundo. Iéshoua  (…) convida esses homens  a se porem ‘em marcha’ na direção do reino de IhvH, do qual ele lhes traz a esperança e lhes abre a porta, introduzindo em seus corações a exigência e a dinâmica da salvação universal.”[3]
Não se tratava mesmo de congratulação. Mas de anúncio-convocação para um caminho.
Que caminhada Jesus propôs?
Ele mesmo indicou, por duas vezes, em seu discurso: o caminho é para um lugar que ele denominou de Reino dos Céus (ou Reino de Deus).  Um lugar de justiça e paz. Um lugar de subversão da lógica do mundo estabelecida pelas classes dominantes, que impõem miséria e sofrimento a quase todos. Um reino de justiça, paz, consolação, misericórdia, fartura para todos e partilha.
Jesus veio ao mundo para isso: anunciar, convocar e, mesmo, instaurar o Reino, com sua presença. No Sermão da Montanha, ele tratou de animar os seus escolhidos a colocarem-se em marcha. Como chegar a este Reino? Como presentificá-lo, como tornar a vida reinocêntrica?
É um longo caminho de enfrentamento das forças que se opõem ao Reino o mobilizaram sistemas de dominação que se sucederam ao longo da história –sistemas que mataram Jesus e buscam liquidar sua mensagem, matando seus profetas e deturpando seu sentido.
É igualmente um longo caminho pessoal de integração ao projeto de Jesus, a expressar-se nas obras do amor, em marcha para a realização plena da Lei do Amor: o Reino de Deus. Um Reino que, apesar de “não ser deste mundo”, conforme a resposta de Jesus a Pilatos (Jo 18,36), deve ser buscado neste mundo, “no nosso mundo mesmo, o nosso terreno, redimido da ruína”.[4]
Portanto, em marcha os pobres em espírito, os aflitos, os que choram, os enlutados, os mansos, os que têm fome e sede de justiça, os misericordiosos, os puros de coração, os que promovem a paz, os perseguidos!
2.  Para quem fala Jesus
Os que escutaram Jesus no Sermão da Montanha foram os mesmos interlocutores de hoje: os pobres, os lascados, os desprezados pelo sistema. Esta é uma questão decisiva para compreender a essência do cristianismo –na verdade, para compreender a essência de qualquer de qualquer projeto: A quem se dirige? Quem são os interlocutores primordiais? Para quem é a mensagem?
A quem se dirigiu Jesus, em cada uma das convocações (“bem-aventuranças) e a quem se dirigem os poderosos de todos os tempos, em especial nestes tempos de “turbocapitalismo” neoliberal? São pessoas muito diferentes:
A leitura do quadro faz saltar aos olhos como o tema da justiça é caro aos ouvintes do ensinamento e decisivo para Jesus. São destinatários da mensagem os que choram (pois são espoliados e injustiçados), os que aspiram por justiça, os que promovem a paz (que só existe quando prevalece a justiça) os que são perseguidos e os que sofrem toda sorte de insultos: nas convocações às nove bem-aventuranças, em nada menos cinco delas a amarração é o clamor por justiça.
A perseguição e a injustiça contra os pobres eram temas centrais na sociedade judaica, situação agravada pela dominação romana. A condição dos pobres só piorou ao longo dos séculos e a coluna da interlocução neoliberal no quadro acima é a explicação desta condição: os ricos tomam tudo para si, vencem as guerras, são autossuficientes, divertem-se à custa do sofrimento dos frágeis, são espertos e não têm problemas com a justiça, ao contrário, compram juízes e outros agentes da lei e contratam advogados caros para garantir que seus adversários –os pobres– sejam esmagados no sistema de justiça.
É o que se vê no Brasil de hoje. Os pobres têm sede e fome de justiça, são perseguidos, insultados, injuriados e perseguidos, como os sem teto que carregam a esperança de todo o povo em sua corajosa ocupação em São Bernardo do Campo.
Sim, é aos sem teto, aos periféricos, lascados, à ralé de todos os tempos que Jesus dirigiu-se no Sermão da Montanha. Isso contradiz uma versão pretensamente “espiritualizada” que os conservadores divulgam das bem-aventuranças de Mateus, a partir da expressão “pobres em espírito” que se oporia às de Lucas, na qual são conclamados apenas os “pobres”. Para os conservadores católicos, protestantes e neopentecostais, a expressão como que isentaria o cristianismo da questão da riqueza/pobreza, e deixaria os ricos e poderosos livres para seguirem suas vidas explorando os pobres, sentarem nas primeiras filas nos templos-e, claro, gordas doações às igrejas: bastaria declararem-se “pobres em espírito”, pretensamente humildes e benemerentes. É uma farsa.
No relato de Mateus, está dispensada a convocação aos pobres porque eles são a assembleia reunida em torno de Jesus. “Vendo Jesus as multidões” (Mt 5,1): são os despossuídos aqueles a quem Jesus viu ao subir ao topo do pequeno monte para seu ensinamento. Não estavam lá ricos, poderosos, líderes religiosos. Era a multidão dos pobres: “Portanto, é a intuição que Jesus tem de seu Deus que governa sua vida e o faz escolher aqueles aos quais vai falar de Deus (…). Pois bem, é óbvio que Jesus não se dirige a um grupo social ou religioso que teria se preparado de modo especial para receber Deus e que teria disposições religiosas requeridas para isso, a um pequeno resto de gente particularmente piedosa, escolhida dentre uma massa do mundo destinada à perdição.”[5]
É a partir desta constatação que se pode olhar para a expressão “pobres em espírito” ou “pobres no espírito”.
Em sua investigação, Chouraqui aproximou a expressão mateana “pobres em espírito” ou “pobres no espírito” de sua origem na língua hebraica: eles são os anieh rouah, os “humilhados do sopro”, conforme os manuscritos encontrados nos anos 1940 no deserto, na Judeia. São “aqueles que na consciência pacificada de sua miséria e de seu nada herdam a mais eminente das graças divinas, o sopro sagrado (em termos tradicionais, o Espírito Santo), o sopro presente na pessoa, na casa ou no templo em que mora IhvH. Estes humildes e estes  humilhados são as vítimas designadas dos impérios deste mundo –na época, o império romano. À margem da sociedade reinante, eles são os vocacionados para herdar o sopro sagrado”.[6]
Os pobres, como diz Chouraqui, são vocacionados, convocados para seguir Jesus. Mas não se trata apenas de “ser pobre”. É preciso ter espírito de pobre.  Isso vale para o pobre nascido despossuído e para aquele que, mesmo de origem mais afortunada financeiramente, tenha realizado o caminho do empobrecimento voluntário. É preciso abertura para a palavra de Jesus, o que significa rejeitar o “espírito de rico”. Não é tão fácil.
Quem é pobre ou convive em seus ambientes, nas periferias, favelas, alagados, ocupações dos sem teto, nos abrigos ou nas ruas sabe que há uma enorme sedução exercida pelas mídias de massa, pela indústria da publicidade e do entretenimento e pelas igrejas do dinheiro: “seja rico”, “seja competitivo”, “acredite em si e derrote o outro”, “compre”, “guarde tudo para si”… O capitalismo não é simplesmente um sistema de exploração econômica que cria a massa brutal de pobres ao redor do planeta; é igualmente um discurso organizado por seus agentes para manter os pobres sob controle ou iludidos quanto às chances de tornarem-se eles, igualmente, participantes do “banquete”. Uma ilusão que conduz ao fechamento e cria pobres “com espirito de rico”, como a crise política do Brasil tem mostrado à mão-cheia.
É preciso ser realista: o Reino de Deus ao qual convoca Jesus “não significa diretamente para esses pobres a libertação da pobreza, da falta de meios e da opressão. Significa que Jesus arranca os pobres do autodesprezo por serem marginalizados.”[7] Se fosse diferente, Jesus seria um mero vendedor de ilusões.
Quando Jesus convidou/convocou os pobres, no relato de Mateus (“em marcha!”) propôs a eles que assumissem sua condição plenamente e se libertassem dos critérios de valor da sociedade que os humilhava.[8] Este é o sentido exato da convocação aos pobres no espírito, aos humilhados do sopro; são palavras “dirigidas àqueles que se deixam transformar, na interioridade profunda e na ação externa, pela novidade do Reino.”[9]
Caminham com Jesus para seu Reino os pobres que se tornaram conscientes de sua condição e dela não se envergonham, pois sabem ou intuem que são excluídos pelos poderosos mas escolhidos por Deus. É esta a indicação precisa de São Paulo na Carta aos Romanos, quando apela aos homens e mulheres das primeiras comunidades cristãs não se conformarem “ao mundo” e transformarem-se. (Rm 12,2).
Um convite à mudança pessoal e comunitária na integração ao projeto de Jesus.
[Mauro Lopes]
________________________
[1] Chouraqui, André, A Bíblia – Matyah (o Evangelho segundo Mateus), Imago, Rio, 1996, p. 81 e seguintes.  Deve-se a André Chouraqui (1917-2017) um mergulho na busca das raízes hebraicas e aramaicas dos evangelhos e outros livros bíblicos, num esforço de escuta da sonoridade e literalidade originais. Ele foi um intelectual e ativista membro da Resistência contra os nazistas na França e depois importante articulador das vertentes mais libertárias na refundação do Estado de Israel, atuando sempre na busca da aproximação entre judeus, muçulmanos e católicos. É dele que tomarei as formulações a seguir sobre o espírito daquelas que ficaram conhecidas como as Bem-aventuranças.
[2] Chouraqui, idem, p. 84. O autor usa a fórmula IhvH para referir-se a Deus, a partir das fórmulas mais radicais do judaísmo que se recusa à escrita ou fala da palavra “Deus”, preferindo sempre expressões indiretas para referir-se a Ele.
[3] Chouraqui, idem, p. 85
[4] Schillibeeckx, Edward, História Humana – revelação de Deus, Paulus, São Paulo,2003, p. 177
[5] Dupont, J., Les Beátitudes. Le problème littéraire. Le message doctrinal, Bruges-Lovaina, 1954, p. 80, citado por Segundo, Juan Luis, A história perdida e recuperada de Jesus de Nazaré, Paulus, 1997, p. 155
[6] Chouraqui, idem, p. 85
[7] Schillibeeckx, idem, p. 152
[8] Schillibeeckx, idem, p. 153
[9] Barbalio, Giuseppe, O Evangelho de Mateus, in Os Evangelhos – 1, com Fabris, Rinaldo e Maggioni, Bruno, Edições Loyola, São Paulo, 2002, p. 112
[10] Gutiérrez, Gustavo, Teologia da Libertação – perspectivas, Edições Loyola, São Paulo, 2000, p. 357

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