Texto de Leonardo Boff
Observava
o grande conhecedor dos meandros da psiquê humana C.G. Jung: a viagem rumo ao
próprio Centro, ao coração, pode ser mais perigosa e longa do que a viagem à lua.
No interior humano habitam anjos e demônios, tendências que podem levar à
loucura e à morte e energias que conduzem ao êxtase e à comunhão com o
Todo.
Há uma
questão nunca resolvida entre os pensadores da condição humana: qual é a
estrutura de base do ser humano? Muitas são as escolas de intérpretes. Não é o
caso de sumariá-las.
Indo
diretamente ao assuto diria que não é a razão como comumente se afirma. Esta
não irrompe como primeira. Ela remete a dimensões mais primitivas de nossa
realidade humana das quais se alimenta e que a perpassam em todas as suas
expressões. A razão pura kantiana é uma ilusão. A razão sempre vem impregnada
de emoção, de paixão e de interesse. Conhecer é sempre um entrar em comunhão
interessada e afetiva com o objeto do conhecimento.
Mais que
idéias e visões de mundo, são paixões, sentimentos fortes, experiências
seminais que nos movem e nos põem marcha. Eles nos levantam, nos fazem arrostar
perigos e até arriscar a própria vida.
O primeiro
parece ser a inteligência cordial, sensível e emocional. Suas bases biológicas
são as mais ancestrais, ligadas ao surgimento da vida, há 3,8 bilhões de
anos, quando as primeiras bactérias irromperam no cenário da evolução e
começaram a dialogar quimicamente com o meio para poder sobreviver. Esse
processo se aprofundou a partir do momento em que, há milhões de anos, surgiu o
cérebro límbico dos mamíferos, cérebro portador de cuidado, enternecimento,
carinho e amor pela cria, gestada no seio desta espécie nova de animais, à qual
nós humanos também pertencemos. Em nós ele alcançou o patamar autoconsciente e
inteligente, Todos nós esamos vinculados a esta tradição primeva.
O
pensamento ocidental, logocêntrico e antropocêntrico, colocou o afeto sob
suspeita, com o pretexto de prejudicar a objetividade do conhecimento. Houve um
excesso, o racionalismo, que chegou a produzir em alguns setores da cultura,
uma espécie de lobotomia, quer dizer, uma completa insensibilidade face ao
sofrimento humano e dos demais seres e da própria Mãe Terra. O Papa Francisco
em Lampedusa face aos imigrados africanos criticou a globalização da
insensibilidade, incapaz de se compadeer e de chorar.
Mas,
podemos dizer que a partir do romantismo europeu (com Herder, Goethe e outros)
se começou resgatar a inteligência sensível. O romantismo é mais que uma escola
literária. É um sentimento do mundo, de pertença à natureza e da integração dos
seres humanos na grande cadeia da vida (Löwy e Sayre, Revolta e melancolia,
28-50).
Modernamente
o afeto, o sentimento e a paixão (pathos) ganharam centralidade. Esse passo é
hoje imperativo, pois somente com a razão (logos) não damos conta das graves
crises por que passa a vida, a Humanidade e a Terra. A razão
intelectual precisa integrar a inteligência emoconal sem o que não construíremos
uma realidade social integrada e de rosto humano. Não se chega ao coração do
coração sem passar pelo afeto e pelo amor.
Um dado
entretanto, cabe ressaltar entre outros importantes, por sua relevância e pela
alta tradição de que goza: é a estrutura do desejo que marca a psiqué
humana. Partindo de Aristótles,
passando por Santo Agostinho e pelos medievais como São Boaventura( chama
a São Francisco de vir desideriorum, um homem de desejos), por Schleiermacher,
Max Scheler nos tempos modernos e culminando em Sigmund Freud, Ernst Bloch e
René Girard nos tempos mais recentes, todos afirmam a centralidade da estrutura
do desejo.
O desejo não
é um impulso qualquer. É um motor que dinamiza e põe em marcha toda a vida
psíquica. Ele funciona como um princípio, traduzido tambem pelo filósofo
Ernst Bloch por princípio esperança. Por sua natureza, o desejo é
infinito e confere o caráter infinito ao projeto humano.
O
desejo torna dramática e, por vezes, trágica a existência. Mas também, quando
realizado, uma felicidade sem igual. Por outro lado, produz grave desilusão
quando o ser humano identifica uma realidade finita como sendo o objeto infinito
desejado. Pode ser a pessoa amada, uma profissão sempre ansiada, uma
propriedade, uma viagem pelo mundo ou uma nova marca de celular.
Não passa
muito tempo e aquelas realidades desejadas lhe parecem ilusórias e apenas fazem
aumentar o vazio interior, grande do tamanho de Deus. Como sair deste impasse
tentando equacionar o infinito do desejo com o finito de toda realidade? Vagar
de um objeto a outro, sem nunca encontrar repouso? O ser humano tem que se
colocar seriamente a questão: qual é o verdadeiro e obscuro objeto de seu
desejo? Ouso responder: este é o Ser e não o ente, é o Todo e não a parte, é o
Infinito e não o finito.
Depois de
muito peregrinar, o ser humano é levado a fazer a experiência do cor
inquietum de Santo Agostinho, o incansável homem do desejo e o
infatigável peregrino do Infinito. Em sua autobiografia, As
Confissões testemunha com comovido sentimento:
Tarde
te amei, ó Beleza tão antiga e tão nova.Tarde te amei. Tu me tocaste
e eu ardo de desejo de tua paz. Meu coração inquieto não descansa enquanto não
respousar em ti (livro X, n.27).
Aqui
temos descrito o percurso do desejo que busca e encontra o seu
obscuro objeto sempre desejado, no sono e na vigíla. Só o Infinito se adequa ao
desejo infinito do ser humano. Só então termina a viagem rumo ao coração e
começa o sábado do descanso humano e divino.
Leonardo
Boff é teólogo e filósofo e escreveu Tempo de Transcendência: o ser humano
como projeto infinito, Vozes 2002.
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