Carlos Antonio Fragoso Guimarães
Em
nosso século, a partir do trabalho de inúmeros pesquisadores de várias
áreas da ciência - especialmente em biologia e em neurologia, bem como
em física e em cibernética, dentre inúmeras outras ciências que estão a
contribuir enormemente para a maturação do conhecimento humano -, vemos
surgir (ou ressurgir) uma nova ( ou será antiga? ) forma de compreender o
mundo, forma que vai muito além da já antiquada (e ainda muito
presente) concepção/entendimento/idéia de mundo como sendo um sistema
mecânico morto e determinista, bem análogo às criações mecânicas humanas
- ou seja, bem concorde com o entendimento humano no seu atual estágio
cultural - e que constitui a metáfora essencial do paradigma cartesiano,
estritamente adotado pela ciência moderna nos últimos três séculos.
Hoje , porém, está cada vez mais clara a idéia de que os sistemas
complexos que formam um todo orgânico, vivo, possui características
próprias, homeostáticas e dinâmicas enquanto conjunto, apresentando
características próprias que escapam às qualidades e atributos de cada
uma de suas partes constituintes, linearmente conectadas... Ou seja, um
organismo, como um todo é algo mais diferenciado e com atributos
próprios bem acima da soma de suas partes componentes fundamentais. É
assim, num exemplo simples, que dois gases que são muito utilizados na
combustão, como o oxigênio e o hidrogênio, quando unidos possuem uma
nova característica bem própria que nos permite usa-los para o combate
ao fogo, ao formarem a água. Além do mais, nos sistemas orgânicos vivos,
a homeostase apresenta-se com características dinâmicas tais que
superam o comportamento normal das "máquinas" feitas pelo homem,
notadamente quanto ao grau de entropia, ou do crescimento do equilíbrio
térmico, que nas máquinas convencionais é percebido pelo desgasta sempre
crescente do equipamento, o que leva ao fim de sua vida útil, mas que é
mantido, ao contrário, em um nível mais ou menos constante nos seres
vivos.
Da mesma forma, sistemas vivos são estruturas complexas que exibem
características muito próprias que "emergem" do conjunto formado por
elementos possíveis de serem diferenciados. Por exemplo, pessoas e
animais são formados por órgãos que são formados por células que, por
sua vez, são formadas por vários elementos moleculares, alguns deles
extremamente complexos, e estes, por fim, formados de átomos
perfeitamente comuns e, em grande medida (senão na sua totalidade)
igualmente presentes em todas as espécies de seres vivos. Ora, embora
tenhamos a mesmíssima base atômica, ninguém vai dizer que existe uma
igualdade funcional entre, por exemplo, uma rosa e um gato, ou entre um
carvalho e um homem, muito embora, em essência, a estrutura do código da
vida seja basicamente a mesma entre todos eles (o código genético, por
exemplo, é escrito com as mesmas "letras" e com a mesma "sintaxe" em
todos os seres vivos).
Ora, embora tenhamos um modo de manifestação física bem visível, onde
os elementos estão em constante troca - nosso corpo está sempre se
renovando - é o padrão que advém ou que emerge das estruturas mais
elementares, enfim, as características do todo, mais do que seus
elementos constituintes, que nos farão reconhecer um homem de outro
homem, ou um homem de um chimpanzé, uma sinfonia ou um poema das letras
impressas numa folha de papel, etc.
As idéias-chaves que possibilitaram levar-se a sério a dinâmica da
organização em si, do padrão como estando muito além das características
das partes físicas constituintes, foi um dos maiores marcos da ciência
do século XX, similar ao que ocorreu com a idéia de campo de energia, em
Física na segunda metade do século XIX.
Dentre os vários pais desta nova visão sistêmica de mundo, citam-se
Ilya Prigogine, na Bélgica, que realizou a ligação fundamental entre
sistemas em não-equilíbrio e não-linearidade, como os que constituem as
"estruturas dissipativas"; Heinz von Foerster, nos EUA, que montou um
grupo de pesquisa multidisciplinar, o que possibilitou inúmeros insights
sobre o papel da complexidade na auto-organização dos seres vivos e não
vivos; Herman Haken, na Alemanha, com sua teoria não-linear do laser;
Ludwig von Bertallanfy, na Áustria, com o seu trabalho pioneiro e
seminal sobre a Teoria Sistêmica dos seres vivos e das sociedades, etc.;
Humberto Maturana, no Chile, que se debruçou sobre as características
fundamentais dos sistemas vivos. Tudo isso sem falarmos do grande
desenvolvimento e importância cada vez maior da ciência da Ecologia nos
últimos 50 anos e dos saltos conceituais nas ciências humanas,
especialmente na Sociologia, com Michel Maffesoli, e em Psicologia, a
partir de Jung.
Foi neste contexto, mais ou menos visível, mais ou menos presente (e em
constante atrito com a concepção linear e estritamente mecanicista do
paradigma cartesiano então - e ainda - vigente, muito útil à ideologia
do capitalismo) que o químico norte-americano James Lovelock fez uma
descoberta magnífica, talvez a mais bela do século na área das ciências
biológicas, que lhe permitiu formular um modelo surpreendente de
auto-organização não-linear, global e ecologicamente sublime, onde todo o
planeta Terra surge como sistema vivo, auto-organizador.
As orígens da moderna Teoria de Gaia (nome da antiga deusa grega
pré-helênica que simbolizava a Terra viva) se encontram nos primeiros
dias do programa espacial da NASA (Capra, 1997, p. 90).
Os vôos espaciais que começaram na década de 60 permitiram aos homens
modernos perceberem o nosso planeta, visto do espaço exterior, como um
todo integrado, um Holos extremamente belo.... Daí as primeiras palavras
dos astronautas serem de deslumbramento e emoção, muito longe do linear
e frio linguajar técnico-científico presente nas operações de pesquisa e
de lançamento dos veículos espaciais. Todos nós lembramos das poéticas
palavras de Yuri Gagarin:
"A Terra é azul"... Pois bem, esta
percepção da Terra em toda a sua poética beleza, foi uma profunda
experiência espiritual, como muitos dos primeiros astronautas não se
cansaram de dizer, mudando profundamente as suas concepções e seu modo
de relacionamento com a Terra. De certa forma, este deslumbre foi o
passo inicial do resgate da ideia muito antiga da Terra como um
organismo vivo, presente em todos as culturas e em todos os tempos
(Capra, obra cit., p. 90; Campbell, 1990; Eliade, 1997).
Posteriormente, a NASA convidaria James Lovelock para ajudá-la a
projetar instrumentos para a análise da atmosfera e, consequentemente,
para a detecção de vida em Marte, para onde seria enviada uma sonda
Viking.
A pergunta capital para Lovelock, dentro deste contexto, era: "
Como
podemos estar certos de que o tipo de vida marciano, qualquer que seja
ele, se revelará aos testes de vida baseados no tipo de vida terrestre,
que é o nosso referencial?". Este questionamento o levou a pensar
sobre a natureza da vida e como ela poderia ser reconhecida nas suas
várias possibilidades.
A conclusão mais óbvia que Lovelock poderia chegar era a de que todos os
seres vivos têm de extrair matéria e energia de seu meio e descartar
produtos residuais em troca. Assim, pensando no meio terrestre, Lovelock
supôs que a vida em qualquer planeta utilizaria a atmosfera ou, no caso
de os haver, os oceanos como o meio fluido para a movimentação de
matérias-primas e produtos residuais.
Portanto, poder-se-ia ser capaz de, em linhas gerais, detectar-se a
possibilidade da existência de vida analisando-se a composição química
da atmosfera de um planeta. Assim, se houvesse realmente vida em Marte
(por menor que fosse sua chance) a atmosfera marciana teria de revelar
algumas combinações de gases características e propícias à vida que
poderiam ser detectadas, em princípio, a partir da Terra. Ou, em outras
palavras, qualquer planeta, para possibilitar a vida, necessita de um
veículo fluido - líquido ou gasoso - para o transporte ou movimentação
de componentes orgânicos e inorgânicos necessários à troca de materiais e
resíduos resultantes da vida, pelo menos no nível e na dimensão do que
se reconhece por vida dentro de nosso atual grau de conhecimento. Este
meio fluido deve, portanto, apresentar uma somatória de características
básicas.
Estas hipóteses foram confirmadas quando Lovelock e Dian Hitchcock
começaram a realizar uma série de análises da atmosfera marciana,
utilizando-se de observações feitas na Terra, comparando os resultados
com estudos semelhantes feitos na nossa atmosfera. Eles descobriram
algumas semelhanças e uma série de diferenças capitais entre as duas
atmosferas: Há muito pouco oxigênio em Marte, uma boa parcela é
constituída de Dióxio de Carbono e praticamente não há metano na
atmosfera do planeta vermelho, ao contrário do que ocorre aqui. Lovelock
postulou que a razão para tal retrato da atmosfera de Marte é que, em
um planeta sem vida, todas as reações químicas possíveis já ocorreram há
muito tempo, seguindo a segunda lei da termodinâmica - a da entropia
que já foi exposta acima - e que estabelece que todos os sistemas
físico-químicos fechados tendem ao equilíbrio termo-químico, ou de
parada total de reações. Ou seja, ao contrário do que ocorre na Terra,
há um total equilíbrio químico na atmosfera marciana, não ocorrendo
reações químicas consideráveis hoje em dia.
Já na Terra, a situação é totalmente oposta. A atmosfera terrestre
contém gases com uma tendência muito forte de reagirem uns com os
outros, como o oxigênio e o metano, mas que, mesmo assim, existem em
altas proporções, num amálgama de gases afastados do equilíbrio químico.
Ou seja, a pesar da contínua reação entre os gases, seus compoentes
continuam presentes em proporções constantes em nossa atmosfera.Tal
estado de coisas deve ser causado pela presença de vida na Terra, já que
as plantas (terrestres e aquáticas) produzem constantemente oxigênio, e
os outros organismos formam os outros gases, de modo a sempre se repor
os gases que sofrem reações químicas. Em outras palavras, Lovelock
provou que a atmosfera da Terra é um sistema aberto, afastado do
equilíbrio químico, caracterizado por um fluxo constante de matéria e
energia, influenciando e sendo influenciada pela vida, em perfeito
biofeedback!
"Para mim, a revelação pessoal de Gaia veio subitamente - como um
flash ou lampejo de iluminação. Eu estava numa pequena sala do pavimento
superior do edifício do Jet Propulsion Labortatory, em Pasadena, na
Califórnia. Era outono de 1965, e estava conversando com Dian Hitchcock
sobre um artigo que estávamos preparando... Foi nesse momento que, num
lampejo, vislumbrei Gaia. Um pensamento assustador veio a mim. A
atmosfera da Terra era uma mistura extraordinária e instável de gases,
e, não obstante, eu sabia que sua composição se mantinha constante ao
longo de períodos de tempo muito longos. Será que a Terra não somente
criou a atmosfera, mas também a regula - mantendo-a com uma composição
constante, num nível que é favorável aos organismos vivos?"
A auto-organização típica dos sistemas vivos, que são sistemas abertos e
tão longe do equilíbrio químico postulado pela segunda lei da
termodinâmica tão cara aos físicos clássicos como uma lei universal
(que, de fato, parece ser para os sistemas físico-químicos fechados), é a
base da teoria de Lovelock.
É conhecido dos cientistas que o calor do sol aumentou em cerca de 25
por cento desde que a vida surgiu na Terra mas, mesmo assim, a
temperatura na nossa superfície tem permanecido praticamente constante,
num clima favorável à vida e ao seu desenvolvimento, durante 4 bilhões
de anos. A próxima pergunta é: e se a Terra, tal como ocorre com os
organismos vivos, fosse capaz de se auto-regular, fosse capaz de manter
sua temperatura assim como o grau de salinidade dos seus oceanos, etc?
Vejamos o que Lovelock nos diz:
"Considere a teoria de Gaia como uma alternativa viável à
'sabedoria' convencional que vê a Terra como um planeta morto, feito de
rochas, oceanos e atmosferas inanimadas, e meramente, casualmente,
habitado pela vida. Considere-a como um verdadeiro sistema, abrangendo
toda a vida e todo o seu meio ambiente, estritamente acoplados de modo a
formar uma entidade auto-reguladora".
Para Lynn Margulis:
"Em outras palavras, a hipótese de Gaia afirma que a superfície da
Terra, que sempre temos considerado o meio ambiente da vida, é na
verdade parte da vida. A manta de ar - a troposfera - deveria ser
considerada um sistema circulatório, produzido e sustentando pela
vida.... Quando os cientistas nos dizem que a vida se adapta a um meio
ambiente essencialmente passivo de química, física e rochas, eles
perpetuam uma visão mecanicista seriamente distorcida, própria de uma
visão de mundo falha. A vida, efetivamente, fabrica, modela e muda o
meio ambiente ao qual se adapta. Em seguida este 'meio ambiente'
realimenta a vida que está mudando e atuando e crescendo sobre ele. Há
interações cíclicas, portanto, não-lineares e não estritamente
determinísticas".
Bibliografia Sugerida
Lovelock, James. As Eras de Gaia, Editora Campus, São Paulo, 1994.
Capra, Fritjof. O Ponto de Mutação, Editora Cultrix, São Paulo, 1986.
Capra, Fritjof. A Teia da Vida, Editora Cultrix, São Paulo, 1997.
Jung, Carl Gustav. O Homem e Seus Símbolos, Editora Nova Fronteira, 1991.
Campbell. Joseph. O Poder do Mito, Editora Palas Athena, São Paulo, 1990.
Eliade, Mircea. História das Idéias e Crenças Religiosas, Editora Rés, Porto, Portugal,
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