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domingo, 28 de outubro de 2012

A Liberdade que Deus nos deu e as Gaiolas da Religião



Texto de

 Rubem Alves

OLHAI AS AVES DO CÉU... É um conselho de Jesus. Se ele aconselhou é porque o vôo das aves no céu é uma metáfora do sagrado. As aves voam porque são amigas do ar e dos ventos ( vejam só os urubús voando nas funduras do céu sem bater asas...). E foi o próprio Jesus que declarou que Deus é um vento que sopra sem que saibamos donde vem nem para onde vai. Nosso destino é ser aves; flutuar ao sabor do vento. Por decisão divina somos seres destinados ao vôo. Não é por acaso que os céus estrelados foram um dos primeiros objetos da curiosidade cientifica dos homens. A famosa Torre de Babel que os homens se puseram a construir e cujo topo deveria bater nos céus foi um artifício técnico bolado pelos homens para compensá-los do seu aleijume: haviam perdido suas asas. Quem não pode voar tem de subir pelos degraus... Mas vocês sabem o que aconteceu: a torre nunca foi concluida e os homens se espalharam pelo mundo na maior confusão. De fato, para se tocar as estrelas é preciso ter asas. Se duvidam releiam a estória do sapo que resolveu ir à festa nos céus dentro do buraco da viola do urubu. Terminou estatelado numa pedra. Acho que o mito da Torre de Babel e a estória do sapo são variações do mito de Ícaro.

· DEUS NOS DEU ASAS. As religiões inventaram as gaiolas. Nossas asas são a imaginação. Pela imaginação voamos longe, muito longe, pela terra do nunca mais, pela terra do impossível, pela terra do impensado. Não entenderam? Leiam Cem anos de solidão do Gabriel Garcia Márquez que vocês entenderão. Eu até que entendo a razão porque se fazem gaiolas e cercas. Vejam o caso das galinhas. Se não vivessem em cercados, como colher os seus ovos? Se os pássaros não estivessem nas gaiolas, como possuir o seu canto? Cercas e gaiolas são construidas para se possuir aquilo que, de outra forma voaria livre, para longe... Faz tempo escrevi uma estória para a minha filha, A menina e o pássaro encantado. É sobre uma menina que tinha como seu melhor amigo um pássaro. Mas o pássaro voava livre. Vinha quando tinha saudades da menina. E depois ia embora e deixava a menina a chorar.. Aí a menina comprou uma gaiola... Essa estória eu a escrevi porque iria ficar muito tempo longe, nos Estados Unidos, e ela, minha filha de 4 anos, não queria que eu fosse. Fui e voltei. Depois de publicada fui informado de que a estória estava sendo usada por terapeutas como material para tratamento homens que queriam engaiolar as mulheres e mulheres que queriam engaiolar os homens. Aí um amigo me disse. “Que linda estória você escreveu sobre Deus...” Fiquei sem entender. Ele perguntou então: “ Mas o Pássaro Encantado não é Deus que as religiões tentam prender numa gaiola?” Cada religião anuncia que o Pássaro Sagrado está na sua gaiola, só na sua gaiola. Os outras pássaros, nas gaiolas das outras religiões, não são o verdadeira Pássaro Encantado...

· CANTO OU OVOS? Há pessoas que amam o Pássaro Encantado por causa do seu canto. Outros, por causa dos seus ovos. Com ovos se fazem deliciosas omeletas. Jesus disse a mesma coisa de outra forma. Há os que amam a Deus por causa dos seus poemas. Deus é poeta. No princípio era o Verbo. Outros amam a Deus por causa dos pães. Deus é um bom padeiro. Dito por Dostoievski: O povo não quer Deus. O povo quer o milagre.

· FOGUEIRA: Um amiga me advertiu de que, se eu continuar a falar sobre os absurdos da religião eu vou acabar como Huss, Savonarola, Giordano Bruno, Servetus: amaldiçoado como herege e transformado em churrasco nas fogueiras sempre acesas da eterna inquisição. Porque a inquisição, caso não o saibam, não foi um acidente histórico enterrado no passado. A inquisição é uma eterna tentação que seduz o espírito humano. Mas herege eu não sou. Pelo contrário. Sou místico, vejo milagres nas mais absurdas insignificâncias do cotidiano. O canto de um pássaro não é um milagre? Uma teia de aranha não é um milagre? Uma concha de caramujo não é um milagre? O assombro mora no visível. Claro que há pessoas cegas que não vêem o assombroso que está diante dos seus narizes, e ficam em busca de acontecimentos sobrenaturais. Pois, para mim, é o natural que é sobrenatural. O sagrado é a tela sobre a qual a vida é tecida.

· PROMESSAS: É bom dar presentes para pessoas amadas. Para uma pessoa amada a gente pensa muito antes de comprar o presente. Porque o que se deseja é que o presente lhe dê felicidade. Quando eu dou um presente com esse presente estou dizendo: “Acho que você vai se alegrar...” Uma flor, um CD, um brinquedo, um livro... Quando se fazem promessas a Deus, para assim seduzi-lo a fazer o que queremos, usamos do mesmo artifício. Assim: “Se tu me deres o que peço eu te darei aquilo de que gostas...” O que você prometer a Deus revela o que você acha do caráter dele. Sendo assim, por favor, me expliquem, eu só quero entender: Por que é que não fazemos promessas do tipo: Vou ler poesia meia hora por dia? Vou ouvir música ao acordar? Vou brincar uma hora com o meu filho? As promessas que se fazem a Deus são sempre promessas de sofrimento: fazer caminhadas de joelhos, passar seis meses sem beber refrigerante, fazer jejum... Então é o nosso sofrimento que faz Deus feliz? Deus é sádico? Prestem atenção: não sou eu que estou dizendo. Isso não é blasfêmia minha. É blasfêmia de quem promete casca de feridas a Deus.

· RELIGIÃO É PODER: Alguns amigos me perguntaram: “Por que é que você perde tempo com esses absurdos de certos hábitos religiosos?” Respondo: Primeiro, porque tenho profundos sentimentos religiosos e creio que uma das marcas da religião deve ser a libertação da inteligência. Não posso respeitar qualquer religião que, para se impor, amordace o pensamento. Sou um educador e sinto que todos os mecanismos de educação somados não se comparam, em eficácia, aos hábitos mentais criados pelas religiões. As religiões moldam mais o pensamento e o comportamento que a educação. É frequente se ouvir, de pessoas religiosas, que o uso da razão faz mal à fé. Fala-se o nome “Deus” e as pessoas param de pensar e começam a repetir. A repetição de estereótipos é o que mais caracteriza a fala religiosa. Isso não tem nada a ver com Deus. Tem a ver com um pássaro engaiolado que não é o Pássaro Encantado, pássaro que aprendeu a falar e só fala o que os donos da gaiola lhe ensinaram. Louro. Segundo, pelo poder que têm os hábitos religiosos para engaiolar o Pássaro. Na experiência clínica uma grande parcela do sofrimento das pessoas têm a ver com as idéias religiosas que penetraram em sua carne. Terceiro, porque as ilusões religiosas são fonte de intolerância. Muitas pessoas religiosas acreditam ter acesso direto aos pensamentos de Deus. Chegam mesmo a anunciá-lo em adesivos que colam em carros: “Conversei com Jesus esta manhã...” O presidente Bush, para justificar a guerra do Iraque, declarou na televisão que conversava diariamente com Jesus. Parece que Jesus lhe deu maus conselhos... Essa pretensão de ter acesso direto as pensamentos de Deus é fonte de intolerância e fanatismo. Pessoas que acreditam ter acesso direto a Deus aos pensamentos de Deus passam a acreditar que os seus pensamentos são os pensamentos de Deus e tornam-se, inevitavelmente, fanáticas. E desse fanatismo surgiram muitas “guerras santas”. Os homens-bomba, ao realizar sua missão, o fazem num espírito de martírio religioso – são santos que se imolam pela verdade.

Rubem Alves

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