Páginas

Poesia e lirismo no filme A Invenção de Hugo Cabret, de Martin Scorsese

 


Carlos Antonio Fragoso Guimarães

   Martin Scorsese ganhou fama de competente diretor de filmes densos, quase sempre centrados em conflitos sociais urbanos. Mas sempre primou por uma fotografia de grande beleza e roteiros bem delineados recheados de ecos filosóficos, especialmente existencialistas. Contudo, seu mais recente filme, Hugo (no Brasil, A Invenção de Hugo Cabret) se apresenta como uma pedrinha preciosa em um formato aparentemete atípico na produção deste diretor.

  O filme, o primeiro feito por Scorsese no formato 3D (nos cinemas), se apresenta como uma história aparentemente infantil, mas na verdade é dirigida a todos, num desenrolar repleto de lirismo e beleza do começo ao fim. Não bastasse isso,  possui também uma mensagem filosófica muito bonita de crítica social e a um intelectualismo mecanicista que vêm desencantado a tudo e a todos, em uma sociedade em que as pessoas são canalizadas a se transformarem em especialistas "autômatos". Segue, bem de perto, a própria magia do livro em que se inspira, A Invenção de Hugo Cabert, do escritor americano Brian Selznick. 

  A principal mensagem do filme é: A técnica e a tecnologia devem e podem servir ao ser humano, a todas as pessoas, e não o contrário. Se for utilizada para servir e ajudar o homem, ela pode despertar a magia da poesia (no caso, da poesia cinematográfica). Mensagem esta muitíssimo necessária nestes tempos de crise do capitalismo mecanicista, desumano e pretensamente racional, que faz a maioria esquecer que as pessoas, todas e cada um de nós, é que fazemos a História, e não o inverso.

  O filme também critica instituições parasitas, baseadas em preconceitos de classe social, que tentam modelar e impor padrões de comportamentos fixos e frios, portanto mecânicos, representadas no filme pela perseguição do herói, um menino de seus dez anos, por um guarda com a perna ferida apoiada por uma estrutura mecânica - mais uma metáfora dos males do mecanicismo tomado como representação da realidade e não como elemento auxiliar instrumental - e altamente alienado e frustrado, personagem muito bem representado por Sacha Baron Cohen, o comediante britânico que ficou famoso no papel do jornalista ingênuo Borat.

  Outros elementos que apontam para uma crítica do paradigma mecanicista em vigor e sua característica destrutiva quando usado sem o uso do coração do homem que os produzem se vêem em quase todas as cenas do filme, desde o autômato psicógrafo que só funciona quando se acha uma chave com formato de coração, até aos dizeres de que os filmes poéticos dos primórdios do cinema deixaram de ser procurados e vistos pelos soldados que experimentaram os horrores genocidas da I Guerra Mundial e seu uso intensivo de novas máquinas destrutivas, como tanques e canhões de grosso calibre. 

   O personagem central do filme, Hugo Cabret, é um menino que se tornou órfão (representado perfeitamente pelo notável Asa Buttrerfield, que já impressionou anteriormente no filme "O Menino de Pijama Listrado") quando o carinhoso e dedicado pai (Jude Law, de "Gattaca" e "Sherlock Holmes"), um relojoeiro talentoso, morre repentinamente em um incêndio dentro de um museu. Hugo passa, então, a viver com um tio beberrão que era responsável pela manutenção dos grandes relógios da central de trem de Paris, em fins dos anos 1920. Só que o tio, irresponsável, deixa tal trabalho nas mãos do sobrinho para se dedicar integralmente ao seu vício. Hugo passa a viver entre as paredes e corredores ocultos fazendo a manutenção dos relógios de forma anônima, saindo de vez em quando para conseguir comida e algumas peças mecânicas na loja de brinquedos de um misterioso senhor, de aparência severa, na estação central. Mal sabe Hugo e este senhor (um antigo mágico e, surpreendemente, um importante personagem da história do cinema, representado pelo "Gandhi" Ben Kingsley) que o encontro entre os dois, mediados pela esperta e carinhosa garota Isabelle (Chloë Grace Moretz, de "Deixe-me entrar"), em meio a aventuras e descobertas, mudará suas percepções de mundo para sempre.... E mexerá com a percepção de muitos dos que forem assistir a este filme com o coração de criança e olhos de adultos....

   A Invençãode Hugo Cabret é um daqueles filmes mágicos para todos os que sabem que, como diz o psicanalista suíço Carl Gustav Jung (1875-1961), no coração de quase todo adulto "ainda espreita uma criança - uma criança eterna, que está sempre vindo a ser, que nunca está completa e que solicita cuidado, atenção e educação incessantes. A melhor parte da personalidade humana, que quer desenvolver-se sempre"  

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

A Destruição da pista do Aeroclube da Paraíba: Um ano de um ato arbitrário por parte de uma prefeitura comprometida




Carlos Antonio Fragoso Guimarães

  Hoje, dia 22 de fevereiro, faz um ano que um ato de aribtrariedade, calculado, ficou nacionalmente conhecido: a destruição da pista de pousa e decolagem do Aeroclube da Paraíba, entidade Civil sem fins lucrativos e de interesse da União.

  Neste mesmo dia, há um ano, pela manhã, máqunias e tratores da Prefeitura de João Pessoa, sob o comando do prefeito não eleito Luciano Agra, e sob as bênçãos e orientações do controverso governador Ricardo Coutinho, ambos do PSDB, se posicionavam ao lado do Aeroclube esperando, eles já o sabiam, uma liminar que deveria ser provisória de um juiz estadual - portanto, incompetente para julgar o caso, que já havia sido levado para o juizo federal, já que a pista e o próprio Aeroclube, com seus mais de 70 anos de história, são igualmente de interesse da União.

  Com os tratores e policias prontos, estava montada a farsa da arbitrariedade, pois Agra já sabia que receberia uma liminar, ainda que ilegal, lhe dando posse da instituição. Assim que recebeu a liminar provisória (e que não  dava poderes para a destruição do equipamento do Aeroclube e que, exatamente por se provisória, poderia ser anulada, como de fato o foi horas depois) e estando o presidente do Aeroclube em Brasília justamente para debater a obsessão do prefeito em desapropriar o Aeroclube, Agra deu sinal verde para que usassem de violência e força bruta (em uma imitação do que fazia o próprio Coutinho quando prefeito junto a camelôs e outros trabalhadores informais ) para destruir arbitrariamente a pista da citada entidade, ao cair da noite, como fazem os bandidos, prendendo em terra várias aeronaves, inclusive federais e de socorro médico, em uma ação estúpida que correu o mundo, especialmente na área da aviação civil. Foi uma verdadeira atitude de guerra, das mais traiçoeiras, o que levou a aviação nacional a dizer que o dia 22 de fevereiro foi "o dia da infâmia". Foi esta ação surreal o retrato perfeito da arrogância impositiva de um coletivo de egoístas hipócritas focados, no caso, na ação de um prefeito fantoche (hoje mais isolado de seu mentor). Como pode os interesses de uma minoria, que inclui políticos e especuladores imobiliários, passar por cima da Lei e da História???

  O Aeroclube, histórico em seus 71 anos de bons serviços, é a escola de formação de pilotos e paraquedistas, uns e outros, pelo trabalho que desempenham, de utilidade pública, tanto formando profissionais para a aviação civil como formando pessoal apto para, em caso de urgência nacional, atuarem em benefício da coletividade. Também forma jovens aeromodelistas que se interessam tanto por aviação quanto por ciências e sua pista serve de base para aviões e helicópteros tanto para as forças armadas quanto para apoio de aeronaves de utilidade pública, como UTIs aéreas e de transporte de medicamentos. Serve igualmente de alternativa para o aeroporto Castro Pinto pois, em caso de emergência, sua pista pode receber pousos de aviões de médio porte e possui um dos poucos postos de gasolina de aviação do estado.

  A absurda e incompetente liminar, de antemão conhecida e utilizada por Agra para sua ação de vandalismo, foi derrubada pelo próprio presidente do Tribunal de Justiça do Estado, na mesma noite do dia 22, com os motores dos tratores ainda quentes, interdição esta que que foi reforçada com a outorga de tutela antecipada dada novamente ao Aeroclube em ação ratificada pela Justiça Federal, na manhã seguinte, dia 23 de fevereiro de 2011. Desde então, Agra vem perdendo vergonhosamente e merecidamente na justiça todos os recursos impetrados para retomar o Aeroclube. Mas o estrago já estava feito e a Prefeitura não reconstituiu a pista. A violência praticada foi objeto de reportagens de telejornais da Rede Globo e da Rede Bandeirantes, fora as matérias impressas em jornais de todo o Brasil.

  O caso, contudo, desnudou, além das práticas selvagens, truculentas e ilegais do Coletivo RC (como é chamado a equipe do PSB que pretende dominar a capital e o estado sobre o comando soberano de Ricardo Coutinho), o leque de interesses por trás da ação: os interesses da especulação imobiliária sobre a área do Aeroclube e do super poderoso empresário, dono do, atualmente, maior Shopping Center da cidade. Ambas as partes exercem extraordinária força entre os políticos do estado, e a especulação imobiliária, em João Pessoa, tem promovido uma modelação de mentalidades e destruição tremenda do meio ambiente, erguendo edifícios sem o mínimo de preocupação com o impacto causado, em um boom imobiliário que raia ao surreal, com apartamentos no valor de milhões de reais sendo oferecidos e, pasmem, comprados em uma cidade cujo grosso da população trabalha ou no funcionalismo público ou no comércio.  A cidade, antes reconhecida por sua beleza e desenho de belas casas, se enche de espigões mecanicistas, especialmente junto à orla marítima, em um crescendo desorganizado e ambientalmente problemático. Apesar da pobreza do Estado e da cidade, esta especulação se mostra muito lucrativa, a níveis valorativos absurdos. Mas como? Haverá, então, nisso, lavagem de dinheiro? É o que muita gente acha...

  Pouco importa às poderosas construturas e especuladores imobiliários, bem como ao mega empresário do Shopping, se, neste processo,  casas são destruídas ou se o fluxo de ar e de rios são comprometidos. Na verdade, eles podem, com o poder que têm, "construir" problemas outros para desviar a tenção daqueles sociais e ambientais. Hoje existem bolsões de áreas quentes em bairros verticalizados, de até 5 graus acima do de áreas ainda não verticalizadas. Com tudo isso, que é abafado pelo poder econômico das construtoras e especuladores, eles exercem grande pressão publicitária no sentido de considerar casas como modalidades supérfluas de habitação, os corretores são treinados a seduzir compradores apenas para apartamentos e o jogo especulativo adquire contornos cada vez mais irracionais. Não é à toa que a imerecidamente famosa "Luiza, que está no Canadá" o foi não por conta de alguma realização notável, mas graças a um bordão que inicialmente se fez como sátira ao esnobismo do pai da garota que dizia a frase na propaganda de lançamento de mais um edifício, o que ganhou o espaço virtual inicialmente como gozação, mas infelizmente se transformando em outra coisa que não mais uma sátira, transformação esta modelada e capitalizada tanto pela construtura do prédio quanto pelo oportunismo exibicionista do pai da menina, um superficial colunista social. É este o poder do capitalismo em destruir e transformar tudo de acordo com seus interesses, o que o vandalismo oficioso da pista do histórico Aeroclube da Paraíba, infelizmente, muito bem demonstrou....

  Hoje, o prefeito fantoche não é mais candidato oficial do Coletivo RC, mas uma das personagens desta farsa para com o Aeroclube o é, e há grande pressão e financiamento do governo por sobre a mídia e os jornais para tentar fazer esquecer ou desvencilhar a figura desta personagem da ação estúpida da qual participou, em um dos dias de maior infâmia contra a história da Aviação do Brasil.... Agra sai da política mas recebe de herança vários processos na justiça envolvendo sua administração (embora os culpados reais, em alguns casos, possam estar localizados mais em cima na hierarquia política), processos que lhe perseguiriam enquanto homem por váriios anos. O caso da arbitrariedade sobre o Aeroclube foi só mais uma ao lado de outros escândalos nacionalmente conhecidos, como o da merenda escolar, a do gari que virou empresário, a fazenda Cuiá... Pobre Brasil em que boa parte da classe política se constitui de hipócritas e farsantes...

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Reencarnação: evidências possíveis nas recordações espontâneas de crianças

Memória Extra-Cerebral: Evidências a favor da Reencarnação

Carlos Antonio Fragoso Guimarães



Memória Extra-Cerebral.... É este o termo técnico usado por cientistas e parapsicólogos para as lembranças espontâneas de crianças que, geralmente a partir do começo da fala ao redor dos dois anos, parecem demonstrar recordações referentes a pessoas e fatos existentes ou ocorridas antes de seu nascimento (STEVENSON, 1995; ANDRADE, 1993; SHRONDER, 2001). As crianças não dizem lembrar-se que vêem tais pessoas ou fatos, mas que são estas pessoas e que vivenciaram pessoalmente estes fatos.

A memória extra-cerebral traz o incômodo paradoxo de que as lembranças narradas (e, em vários casos, posteriormente confirmadas através de documentos, etc.) não foram registradas através da aparelhagem neuropsicomotora do sujeito que as detêm, mas, a principio, pelo "cérebro" e demais órgãos sensoriais de uma outra pessoa, impreterivelmente morta à época em que a criança espontaneamente narra suas lembranças, muitas vezes referentes a outras famílias e em outros locais que não estão em relação com a família da criança hoje (STEVENSON, 1995; ANDRADE, 1993; SHRODER, 2001). Este fenômeno faz questionar se o modelo mecanicista da mente dominante na ciência não será limitado demais... Pois o fenômeno parece ter um substrato psíquico não necessariamente associado ao sistema nervoso da criança que recorda.

Hoje, a pesquisa da Memória Extra-Cerebral adentra os corredores das universidades. Entre estas, temos de destacar as pesquisas iniciadas pelo Dr. Ian Stevenson na Universidade de Virgínia, Estados Unidos, onde foi professor de Psiquiatria e Psicologia e, mas recentemente, chefe da Divisão de Estudos da Personalidade. A Psychical Research Foundation, da mesma universidade, possui uma revista própria, científica, dedicada a todos os aspectos metodológicos da pesquisa que sugiram a sobrevivência após a morte do corpo físico, incluindo todos os fenômenos parapsicológicos, além dos estudos de casos de Memória Extra-Cerebral. A revista chama-se THETA, não sem razão o nome dado aos prováveis agentes não-físicos causadores de vários dos fenômenos paranormais ligados à teoria da sobrevivência (Poltergeists, Memória Extra-Cerebral, Aparições, etc.). As pesquisas neste sentido realizadas por pesquisadores da Universidade de Virgínia ganhou o nome de "Projeto THETA".

Diversos fatores diferenciais são utilizados como métodos e técnicas de indícios de Reencarnação. Citemos:

1) Experiências de Regressão de Memória Artificialmente Provocadas quer seja através de hipnose ou de relaxamento profundo. Tem o incoveniente de que a sugestão da regressão possa provocar lembranças fictícias para atender a expectativa do hipnólogo, mas, ao mesmo tempo, pode atingir realmente instâncias profundas do inconsciente (PINCHERLE, 1990);

2) Regressão de Memória Espontânea. Caso raro em que certas pessoas entram em transe espontâneo e recordam de eventos prováveis de vidas passadas;

3) Memórias Espontâneas. Geralmente ocorrem em crianças e adolescentes que, em dado momento, começam a recordar nitidamente reminiscências ligadas a uma personalidade que elas dizem ser em outro tempo e lugar. Em algumas destas lembranças existem marcas de nascença que, de alguma forma, estão ligados a traumas físicos que elas dizem ter causado a morte na sua vida anterior.

Entre os primeiros investigadores europeus a realizar estudos sobre memórias espontâneas ligadas a marcas de nascença, está o Dr. Resart Bayer, psiquiatra e presidente da Sociedade Turca de Parapsicologia. Fala o Dr. Bayer que "Certos sinais ou marcas congênitas, muito evidentes, como cicatrizes, etc., que não têm explicações dentro das leis biológicas mas que obrigatoriamente têm de ter uma causa" geralmente associadas às lembranças espontâneas em sua quase totalidade ligadas a ferimentos e traumas que causaram a morte em outra vida, e obrigam a ciência a ocupar-se com seriedade destes fenômenos.

O Dr. Stevenson publicou um livro, em dois volumes, com mais de mil páginas, com casos documentados de memórias espontâneas ligadas a marcas de nascença (STEVENSON, 1997). Estes casos são muito raros, mas o conjunto de casos levantados por Stevenson e colaboradores não podem ser negligenciados como as melhores evidências a favor da hipótese da Reencarnação.

Bibliografia

  • Andrade, Hernani Guimarães. Reencarnação no Brasil. Matão, 1993, Casa Editora O Clarim.
  • Shroder, Tom. Almas Antigas - A busca de evidências científicas da reencarnação. Rio de Janeiro, Sextante, 2001.
  • Pincherle, Livio et al. Terapia de Vida Passada. São Paulo, Summus Editorial, 1990.
  • Stevenson, Ian. Twenty Cases Suggestive of Reincarnation. Charlotteville, University Press of Virginia, 1995.
  • ______________ Reincarnation and Biology, vol. 1: BirthmarksVol. 2: Birth Defects and Other Anomalies. Esport, Connecticut. Prager, 1997
(Publicado no Boletim GEAE Número 456 de 27 de maio de 2003)

sábado, 18 de fevereiro de 2012

A decadência dos clubes sociais, como o Astrea e a ASSUFEP, a morte dos bailes e o fim do Carnaval tradicional sadio

 
logotipo do Clube Astrea, fundado em 1886


Carlos Antonio Fragoso Guimarães

  É interessante como poucos parecem perceber que mudanças de comportamento social podem ser inferidas pelo fim de instituições antes tão ligadas ao modo sadio da sociedade se entreter, praticar atividades físicas e interagir, vieram a definhar e desaparecer. De certa forma, a decadência dos clubes sociais parecem representar a própria decadência da qualidade de vida e da interação social nas cidades. A época da pujança destes, até fins dos anos 1980 coincide com a época em que ainda era possível ver as pessoas podendo caminhar com poucos cuidados pelas ruas da cidade sem medo de serem assaltadas ou coisa pior.  Tempo em que se podia visitar vizinhos sem que estes estivessem tão presos à TV ou isolados em seus quartos diante de um pc. Tempo onde a prática de esportes e de convívio era incentivada pelos mesmos clubes hoje abandonados, em grande parte das cidades. 

 Os Clubes eram o espaço favorito da juventude, junto com o cinema, após as aulas diurnas. Lá os amigos podiam se encontrar e praticar esportes ou mesmo jogar recreativamente. Clubes eram o espaço protegido onde os bailes de Carnaval eram mais românticos, em que as pessoas faziam a sua própria fantasia de forma espontânea sem se ater ao consumismo midiático e padrões impostos de festividades modeladas e fabricadas - algumas financiadas pelo jogo do bicho ou coisa pior - como as do Rio (o Carnaval, que deveria ser do povo, se reduz a desfiles de escolas de samba "rede globalizadas"?) e da Bahia (a diversidade de estilos e costumes se reduzem ao trio elétrico?)... Sumiram com as marchinhas, o forró e o frevo e impuseram o axé e o samba de desfile controlado, pronto para "estrelas" de tv... Desaparecem a criatividade das fantasias improvisadas e assumem as peças industrializadas, abadás, mortalhas e fantasias padronizadas, massificadas.... Morre a alegria da brincadeira entre amigos e se fortalece a falsa alegria da disputa midiática banhada em bebidas (aliás, a mídia recebe uma boa fatia de dinheiro ao mostrar os "estrelados" e calculados camarotes de cervejeiras).

  O contexto seguro dos bailes de salão foi substituído, por pura falta de opção, pelos blocos de rua, alguns ainda advindos do povo, outros criados para lucrar pela venda de "fardas" para desfiles que já não são mais de todos, existindo um cordão de isolamento entre os que compram e seguem os carros de som, e os de fora, os da "pipoca", nova forma de distinção e separação social. Sociologicamente, tal mudança de costumes é reflexo da mudança de mentalidades, de expressão da alegria espontânea para a de padrões de aparência, normalmente ditadas pela mídia atreladas ao mercado, associadas a novas, lucrativas e espúrias formas de segregação e sintoma da decadência dos hábitos influenciadas pelo poder econômico, que se fortalece por falta de uma consciência reflexiva maior por parte dos políticos e da população.

  É pena ver como grandes clubes antigos, como o saudoso Clube Astréa, de João Pessoa, fundado ainda na época do Império, em 1886, e que tanta história tinha como foco aglutinador e sedimentador do convívio social, na importância que desempenhou no fomento ao esporte estudantil, com os brilhantes Jogos da Primavera - e que funcionou socialmente até 1989 - ser hoje um prédio quase esquecido, servindo de estacionamento para duas emissoras de TV e alugado apenas para um evento ou outro, a ser talvez melancolicamente comprado por uma seita evangélica, em um destino semelhante ao que atingiu a Associação dos Servidores da Universidade Federal da Paraíba, ASUFEP, construído em um espaço privilegiado e cobiçado pela poderosa e anti-ecológica especulação imobiliária no Altiplano Cabo Branco e que, infelizmente, hoje pertence a uma minoria cheia de dinheiro, a Igreja Batista da Cristandade.... Ou seja, o espaço para a recreação e práticas esportivas dos funcionários da importante instituição de ensino para a maioria foi dado para o bem de uma minoria que inferniza a vida dos que não pertencem à sua doutrina fundamentalista.

  O também outrora grande Clube Cabo Branco ainda existe, mas está tão envolvido em dívidas que causa espanto ainda não ter findado, embora há muito tenha perdido a pujança e exuberância que antes possuía. E a A.A.B.B seguiu o mesmo caminho do Banco do Brasil, destroçado na sanha neoliberal entreguista de Serra-FHC: apagou-se. Bela metáfora da mediocridade em que caiu o Brasil a partir no mergulho nos ideais midiáticos neoliberais.... A que pontos chegamos? Onde está a intervenção dos "representantes do povo" para reverter tal calamidade cujas consequências para a saúde coletiva começamos a ver? Não fazem nada, nem farão, por incompetência e descaso puro à nossa história, aos espaços sadios de confraternização. A mentalidade dos políticos é, antes de tudo, individualista e oportunista, não propriamente dedicada ao bem comum.

  Esse declínio dos clubes sociais não é algo natural, é algo imposto por invasão cultural de um outro modelo de convívio social, e este é a expressão de um individualismo forçado, criado pelo neoliberalismo, que desmancha as oportunidades de interação, o que é bem próprio desta fase do capitalismo de concorrência e consumismo desenfreado. Some a alegria da espontaneidade e oportunidade de interação lúdica entre todos e sedimenta-se o consumismo e vulgarização midiatizadas em prol de destaques banais de individualidades.
 
   Nossos pais, tios, avós souberam bem aproveitar os clubes, locais privilegiados, ao lado das praças e igrejas, para a convivência sadia, para a diversão positiva (saudades do Azul e Branco). Os bailes de comuns Carnaval, de debutantes, de confraternização, de práticas esportivas, de eventos artísticos estão sendo trocados por espaços consumistas de shoppings, academias e condomínios homogenizados, construídos para sedimentar e distanciar as pessoas "de dentro e as de fora" dos mesmos, com o interesse mais no bolso que na recreação... 

  A geração mais nova, por falta desta vivência, desta familiaridade de convívio sadio, não tem como comparar o que é um Carnaval ou uma festa de São João fraternal com as aberrações de hoje. Desconhecem também o que seja um espaço neutro onde as equipes esportivas das escolas públicas e privadas possam brilhar, apresentando promissores atletas... Estes espaços foram tomados agora por religiosos fundamentalistas exclusivistas com pretensões políticas. É esse o progresso ou, ao contrário, a imersão total na alienação? É pena.... a alegria morreu para dar lugar à eficiência econômica, ligadas a uma série de representações aparentes de sucesso atreladas midiaticamente à expansão de um modelo de modernidade neoliberal alienante e à imbecilidade religiosa...

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Quem é mais cristão, o pastor ou o ateu?

Há quem seja arrogante e não dialogue, apenas grite discursos,  imponha comportamentos e se julgue superior aos demais e com, isso, acredite-se mais perto de Deus. E há quem faça a diferença, compartilhando o que tem, fazendo o bem sem olhar a quem, mesmo que não tendo crença... Quem é mais humano e está mais perto do exemplo de Cristo entre estes dois?

Para pensar sobre Deus...



"Faz tempo que, para pensar sobre Deus, já não leio os teólogos e suas elucubrações tantas vezes vazias, mas leio poetas"

Rubem Alves

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Religião, ou tão só a Crença em Deus sem desenvolvimento íntimo e coerência, define um bom caráter?



Carlos Antonio Fragoso Guimarães

  Há certo tempo, uma tentativa de superação do preconceito contra os ateus  causou polêmica no Brasil e, antes deste, na Europa. Um conjunto de outdoors e cartazes traziam fotos de crentes e ateus famosos, normalmente um crente reconhecido por suas maldades (como Adolf Hitler, que  era teísta) e um ateu amado por milhões (como Charlie Chaplin). Ao lado destas fotos, haviam os dizeres: "Religião não define caráter" ou, comparando-se a tragédia sangrenta que foi a imposição dos valores e religiões da Europa aos nativos da América, África e Ásia, os dizeres-denúncia "Somos todos ateus com os deuses dos outros".  Inevitavelmente, a campanha causou uma violenta polêmica nos meios religiosos, com uma reação realmente barulhenta por parte de correntes mais fundamentalistas.

   A maior parte, contudo, das reações negativas à campanha promovida contra o preconceito aos ateus pecou pela falta de uma reflexão racional ao que foi dito e primou pela mera negativa sem levar em conta uma discussão mais aprofundada da questão. O fato é que em momento algum se falou que todos os que tem fé são maus ou que todos os ateus, bons. O que se questionou foi a idéia - muito aceita e divulgada por certas vertentes religiosas, especialmente as mais fundamentalistas, como as evangélicas neopentecostais - de que bastaria oficiar-se publicamente a crença em Deus para que a pessoa crente, por si só, independente de seus atos públicos, más intenções e obras, se tornasse superior, diferenciada positivamente ou, de algum modo, acima e além das demais. É a tal justificação pela fé.

  Este pensamento um tanto infantil de que a crença, por si, determinasse privilégios especiais ou mesmo fosse um endosso divino à certeza de salvação cai por si diante da lógica e do exemplo citado, junto com o da perversidade de outras pessoas como Torquemada, Savonarola, Jim Jones, George W. Bush, Pastor Robert Patson, Pastor Fausto  e tantos outros, que diziam ou ainda dizem ter Deus no coração e que, por isso, já estariam "inscritas no livro da vida" ou "salvas" penas por aceitar Jesus Cristo e sua morte e ressurreção - idéia extraída um tanto levianamente dos escritos de Paulo de Tarso, cristão tardio que não conviveu com Jesus - enquanto suas obras demonstravam egoísmo, maldade e hipocrisia. Tal pensamento infantil é questionado pelo próprio Jesus, se levarmos em consideração o que está escrito no evangelho de Mateus, 25: 31-45, que destroça o infantil argumento teológico de que a mera fé Nele e em sua história implica aceitação ou salvação divinas, automaticamente:

«Quando o Filho do Homem vier na sua glória, acompanhado por todos os seus anjos, há-de sentar-se no seu trono de glória. 32Perante Ele, vão reunir-se todos os povos e Ele separará as pessoas umas das outras, como o pastor separa as ovelhas dos bodes. 33À sua direita porá as ovelhas e à sua esquerda, os bodes.
34O Rei dirá, então, aos da sua direita: ‘Vinde, benditos de meu Pai! Recebei em herança o Reino que vos está preparado desde a criação do mundo. 35Porque tive fome e destes-me de comer, tive sede e destes-me de beber, era peregrino e recolhestes-me, 36estava nu e destes-me que vestir, adoeci e visitastes-me, estive na prisão e fostes ter comigo.’
37Então, os justos vão responder-lhe: ‘Senhor, quando foi que te vimos com fome e te demos de comer, ou com sede e te demos de beber?38Quando te vimos peregrino e te recolhemos, ou nu e te vestimos? 39E quando te vimos doente ou na prisão, e fomos visitar-te?’ 40E o Rei vai dizer-lhes, em resposta: ‘Em verdade vos digo: Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes.’
41Em seguida dirá aos da esquerda: ‘Afastai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, que está preparado para o mal e para os seus anjos!42Porque tive fome e não me destes de comer, tive sede e não me destes de beber, 43era peregrino e não me recolhestes, estava nu e não me vestistes, doente e na prisão e não fostes visitar-me.’ 44Por sua vez, eles perguntarão: ‘Quando foi que te vimos com fome, ou com sede, ou peregrino, ou nu, ou doente, ou na prisão, e não te socorremos?’ 45Ele responderá, então: ‘Em verdade vos digo: Sempre que deixastes de fazer isto a um destes pequeninos, foi a mim que o deixastes de fazer.’”
Ou seja,  também o argumento dos evangélico de que "Não é a Religião que define Caráter, mas Deus" também não se sustenta diante dos próprios textos bíblicos, por eles considerados verdade acabada vinda diretamente do céu, pois Jesus, no texto acima, deixa claro que são os atos e ações pessoais, de livre arbítrio, que definem o caráter, e não a crença ou a justificação pela fé. Jesus usa a lógica e destaca que vale mais a responsabilidade e ação sobre o mundo, melhorando-o, que uma atitude de mera adoração à seu nome ou à sua personalidade.
O conhecido especialista em Novo Testamento Bart D. Ehrman reflete que esta passagem de Mateus “sugere que a salvação não é apenas uma questão de crença, mas também de ação, uma idéia absolutamente ausente do raciocínio de Paulo”. Poderíamos dizer ausente não apenas de Paulo, mas de toda a tradição que se moldou a partir das igrejas “paulinas”, especialmente as atuais igrejas televangélicas, de cunho paulino-fundamentalista.  Na passagem de Mateus acima transcrita se percebe mesmo que os escolhidos (as “ovelhas”) podem sequer ter tomado conhecimento da vida de Jesus (“Senhor, quando foi que te vimos?”). Nos dizeres de Bart D. Ehrman,

As ‘ovelhas’ ficam perplexas (de terem sido escolhidas como herdeiras do Reino). Elas não se lembram sequer de ter encontrado Jesus, o Filho do Homem, quanto mais de fazer essas coisas por ele. Mas ele diz a elas: ‘Cada vez que fizeste a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes’. Em outras palavras, é cuidando dos que têm fome, sede, estão nus, doentes e encarcerados que é possível herdar o Reino de Deus.
“Como essas palavras se coadunam com Paulo? Não muito bem. Paulo acreditava que a Cida eterna era dada àqueles que acreditavam na morte e ressurreição de Jesus. No relato de Mateus sobre as ovelhas e os bodes, a salvação é dada a quem nunca havia falar de Jesus. É dada a quem trata os outros de forma humana e carinhosa no momento de maior necessidade. É uma visão  da salvação inteiramente diferente” (Bart D. Ehrman, “Quem foi Jesus? Quem Jesus não foi”, Ed. Ediouro, 2010).

Portanto, todos podem desenvolver um bom caráter independentemente de suas vinculaões religiosas. O que se deve evitar é o ranço elitista e hipócrita de certos religiosos intolerantes (e de certos agnósticos igualmente intolerantes. O ateísmo pode também se transforma em fundamentalismo religioso por oposição, muda o sentido mas permanece a mesma carga, como ocorre com Richard Dawkins).
O que outrora podia até ser um bem, ou seja, a adoção fervorosa de um paradigma ou doutrina formalizada para dar suporte e conforto a uma personalidade em formação, frequentemente se transforma em mal porque se torna um obstáculo à espiritualização e abertura do ser que deve perceber que cada pessoa tem seu próprio modo de perceber a realidade. É tolice tentar impor "verdades"  como é tolice impor o remédio que me fez bem para todos ou vestir as mesmas roupas de crianças quando adulto, porque estas lhe foram úteis um dia.
O caráter é, pois, associado ao desenvolvimento da maturidade e da responsabilidade reflexiva, bem como da percepção de que toda a verdade passível de entendimento é relativa, não a adoção cega de doutrinas ou paradigmas.


quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Calvin e a dependência midiática


É.... Antes o perigo era a escravidão.... Hoje, o "normal" é sermos teleguiados....

Cecília Meireles: Canção de Outono



Perdoa-me, folha seca,
não posso cuidar de ti.
Vim para amar neste mundo, 
e até do amor me perdi.

De que serviu tecer flores
pelas areias do chão, 

se havia gente dormindo 

sobre o próprio coração?


E não pude levantá-la!

Choro pelo que não fiz.

E pela minha fraqueza
é que sou triste e infeliz.

Perdoa-me, folha seca!


Meus olhos sem força estão

velando e rogando àqueles 

que não se levantarão...



Tu és a folha de outono 

voante pelo jardim.

Deixo-te a minha saudade

- a melhor parte de mim.


Certa de que tudo é vão.

Que tudo é menos que o vento,

menos que as folhas do chão...

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

O espiritual Adagio do compositor italiano Alessandro Marcello

Uma linda peça clássica de Alessandro Marcello (1669-1747) para, nos momentos conturbados destes dias globalizados, nos fazer refletir na beleza da vida e da natureza sempre desrespeitada e destruída pela mesquinharia dos interesses neoliberais...

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Lúcidas refexões do presidente Barack Obama sobre o fundamentalismo cristão



Carlos Antonio Fragoso Guimarães 

  Segue abaixo, para a reflexão dos leitores, um video muito interessante onde Barack Obama demonstra, logo após ter sido eleito pela primeira vez, sensibilidade e inteligência ao criticar os exageros dos que pretendem acreditar nos dizeres literais de textos escritos há muito tempo em um contexto bem diferente do atual (especialmente o Antigo Testamento, voltados para uma comunidade eminentemente belicosa), o que, claro, não impede que fundamentalistas queiram tomá-los ao pé da letra e imponham seus pontos de vista aos demais e ao mundo inteiro. 
    Este vídeo, portanto, é um raio de lucidez em uma época de retorno do obscurantismo e da ignorância pelo fanatismo fundamentalista violento, literalista e insano, que vem se espalhando como cancro pelo mundo globalizado...


Rubem Alves: "Deus existe?"


Deus Existe?

Texto de Rubem Alves

   De vez em quando alguém me pergunta se eu acredito em Deus. E eu fico mudo, sem dar resposta, porque qualquer resposta que desse seria mal entendida. 

   O problema está nesse verbo simples, cujo sentido todo mundo pensa entender: acreditar. Mesmo sem estar vendo, eu acredito que existe uma montanha chamada Himalaia, e acredito na estrela Alfa Centauro, e acredito que dentro do armário há uma réstia de cebolas... Se eu respondesse à pergunta dizendo que acredito em Deus, eu O estaria colocando no mesmo rol em que estão a montanha, a estrela, a cebola, uma coisa entre outras, não importando que seja a maior de todas.

   Era assim que Casemiro de Abreu acreditava em Deus, e todo mundo decorou e recitou o seu poema teológico:
“Eu me lembro... Era pequeno... O mar bramia, e erguendo o dorso altivo sacudia a branca espuma para o céu sereno. E eu disse à minha mãe naquele instante: ‘Que dura orquestra/ Que furor insano/ Que pode haver maior que o oceano ou mais forte que o vento?‘ Minha mãe a sorrir olhou para os céus e respondeu: ‘Um Ser que nós não vemos/ É maior que o mar que nós tememos, é mais forte que o tufão, meu filho: é Deus!'"

  Ritmos e rimas são perigosos porque, com freqüência, nos levam a misturar razões ruins com música ruim.  
Deixados de lado o ritmo e as rimas, o argumento do poeta se reduz a isso: Deus é uma “coisona" que sopra qual enorme ventania, e um marzão que dá muito mais medo que esse mar que está aí. Ora, admito até que coisona tal possa existir. Mas não há argumento que me faça amá-la. Pelo contrário, o que realmente desejo é vê-la bem longe de mim. Quem é que gostaria de viver no meio da ventania navegando num mar terrível? Eu não...

  É preciso, de uma vez por todas, compreender que acreditar em Deus não vale um tostão furado. Não, não fiquem bravos comigo. Fiquem bravos com o apóstolo Tiago, que deixou escrito em sua epístola sagrada: “Tu acreditas que há um Deus. Fazes muito bem. Os demônios também acreditam. E estremecem ao ouvir o Seu nome...“ (Tiago 2,19). Em resumo, o apóstolo está dizendo que os demônios estão melhor do que nós porque, além de acreditar, estremecem... Você estremece ao ouvir o nome de Deus? Duvido. Se estremecesse, não o repetiria tanto, por medo de contrair malária...

 Enquanto escrevo, estou ouvindo a sonata Appassionata, de Beethoven, a mesma que Lenin poderia ouvir o dia inteiro, sem se cansar, e o seu efeito era tal que ele tinha medo de ser magicamente transformado em alegria e amor, sentimentos incompatíveis com as necessidades revolucionárias (o que explica as razões por que ativistas políticos geralmente não se dão bem com música clássica). Se eu pudesse conversar com o meu cachorro e lhe perguntasse: Você acredita na Appassionata? - ele me responderia: Pois é claro. Acha que eu sou surdo? Estou ouvindo. E, por sinal, esse barulho está perturbando o meu sono.

 Mas eu, ao contrário do meu cachorro, tive vontade de chorar por causa da beleza. A beleza tomou conta do meu corpo, que ficou arrepiado: a beleza se fez carne.

 Mas eu sei que a sonata tem uma existência efêmera. Dentro de poucos minutos só haverá o silêncio. Ela viverá em mim como memória. Assim é a forma de existência dos objetos de amor: não como a montanha, a estrela, a cebola, mas como saudade. E eu, então, pensarei que é preciso tomar providências para que a sonata ressuscite de sua morte...

 Leio e releio os poemas de Cecília Meireles. Por que releio, se já os li? Por que releio, se sei, de cor, as palavras que vou ler? Porque a alma não se cansa da beleza. Beleza é aquilo que faz o corpo tremer. Há cenas que ela descreve que, eu sei, existirão eternamente. Ou, inversamente, porque existiam eternamente, ela as escreveu. “O crepúsculo é este sossego do céu/ com suas nuvens paralelas/ e uma última cor penetrando nas árvores/ até os pássaros./ E esta curva de pombos, rente aos telhados,/ e este cantar de galos e rolas, muito longe;/ e, mais longe, o abrolhar de estrelas brancas,/ ainda sem luz.“

 Que existência frágil tem um poema, mais frágil que a montanha, a estrela, a cebola. Poemas são meras palavras, que dependem de que alguém as escreva, leia, recite. No entanto, as palavras fazem com o meu corpo aquilo que universo inteiro não pode fazer.

 Fui jantar com um rico empresário, que acredita em Deus, mas me disse não compreender as razões por que puseram o retrato da Cecília Meireles, uma mulher velha e feia, numa cédula do nosso dinheiro. Melhor teria sido o retrato da Xuxa. Do ponto de vista da existência concreta e imediata, ele estava certo. A Xuxa tem mais realidade que a Cecília. Ela tem uma densidade imagética e monetária que a Cecília não tem e nunca quis ter. A Cecília poeta é um ser etéreo, semelhante às nuvens do crepúsculo, à espuma do mar, ao vôo dos pássaros. E, no entanto, eu sei que os seus poemas viverão eternamente. Porque são belos.
 A Beleza é entidade volátil - troca a pele e rápido se vai.

 Pois isso a que nos referimos pelo nome de Deus é assim mesmo: um grande, enorme Vazio, que contém toda a Beleza do universo. Se o vaso não fosse vazio, nele não se plantariam as flores. Se o copo não fosse vazio, com ele não se beberia água. Se a boca não fosse vazia, com ela não se comeria o fruto. Se o útero não fosse vazio, nele não cresceria a vida. Se o céu não fosse vazio, nele não voariam os pássaros, nem as nuvens, nem as pipas...

 E assim, me atrevendo a usar a ontologia de Riobaldo, eu posso dizer que Deus tem de existir. Tem Beleza demais no universo, e Beleza não pode ser perdida. E Deus é esse Vazio sem fim, gamela infinita, que pelo universo vai colhendo e ajuntando toda a Beleza que há, garantindo que nada se perderá, dizendo que tudo o que se amou e se perdeu haverá de voltar, se repetirá de novo. Deus existe para tranqüilizar a saudade.

 Posso então responder à pergunta que me fizeram. É claro que acredito em Deus, do jeito como acredito nas cores do crepúsculo, do jeito como acredito no perfume da murta, do jeito como acredito na beleza da sonata, do jeito como acredito na alegria da criança que brinca, do jeito como acredito na beleza do olhar que me contempla em silêncio. Tudo tão frágil, tão inexistente, mas me faz chorar. E se me faz chorar, é sagrado. É um pedaço de Deus... Dizia o poeta Valéry: Que seria de nós sem o socorro daquilo que não existe?

(publicado no Correio Popular em 13/04/1997)

Bart D. Ehrman e o fanatismo evangélico



Carlos Antonio Fragoso Guimarães

“Há muitos erros na Bíblia e, mais importante que isso, há diferentes pontos de vista teológicos e isso precisa ser reconhecido”.
Bart D. Ehrman
Todas as palavras tomadas literalmente são falsas. A verdade mora no silêncio que existe em volta das palavras. Prestar atenção ao que não foi dito, ler as entrelinhas. A atenção flutua: toca as palavras sem ser por elas enfeitiçada. Cuidado com a sedução da clareza! Cuidado com o engano do óbvio!
Rubem Alves

 O teólogo pesquisador americano Bart D. Ehrman nasceu e cresceu em meio a uma família e comunidade religiosa do chamado "Cinturão bíblico" ao sul dos Estados Unidos, a região mais religiosa, fundamentalista e conservadora daquele país. As características da igrejas desta região se resumem ao fato de tomar literalmente a Bíblia como sendo, tal como traduzida e escrita, como de fat, uma obra divina, inquestionável, a ser "aceita" ao pé da letra. Quando adolescente, por conta deste meio e formação, Ehrman havia se tornado um evangélico radical fervoroso. Isso o levou a querer se aprofundar no estudo da Bíblia e foram estes estudos aprofundados que, não sem dores, o levariam a romper com o fundamentalismo. Diz ele, no prefácio de seu livro "Quem Jesus foi? Quem Jesus não foi?":


  "Cheguei ao Seminário Teológico de Princenton em agosto de 1978, saído da faculdade (de Teologia no Moody Bible Institute, em Chicago) e recém-casado. (...).

  "Como um convicto cristão confiante na Bíblia, eu tinha certeza de que ela, em todas as suas palavras, tinha sido inspirada por Deus (...). Assim, eu fui para o Seminário Teológico de Princenton jovem e pobre, mas apaixonado, preparado para enfrentar todos aqueles liberais com sua visão aguada da Bíblia. Como bom 'cristão' evangélico, estava pronto para demolir quaisquer ataques à minha fé bíblica. Eu pensava que podia responder a qualquer aparente contradição e solucionar qualquer potencial discrepância da Palavra de Deus (...). Eu sabia que tinha muito a aprender, mas não iria aprender que meu texto sagrado tinha algum equívoco.
  "Algumas coisas não aconteceram como planejado.  O que realmente aprendi em Princenton me fez mudar de idéia sobre a Bíblia. Não mudei a minha maneira de pensar de boa vontade - fui derrotado gritando e esperneando (...) mas ao mesmo tempo pensei que, se tinha um verdadeiro compromisso com Deus, também precisava ter um compromisso real com a verdade. E após um bom tempo ficou claro para mim que minha antiga visão da Bíblia como a revelação inequívoca de Deus era absolutamente equivocada. Minha escolha era me agarrar a uma visão que eu tinha descoberto estar errada ou seguir em frente até onde acreditava que a verdade estava me levando (...)".

  De fato, Ehrman nada mais fez do que mergulhar seriamente nos estudos de competentes experts acadêmicos que, há quase duzentos anos, vêm efetuando um estudo histórico-crítico, baseado em documentação e análise de discurso, bem como em elementos históricos e arqueológicos de campo, sobre o que sabemos sobre os relatos bíblicos.

  "Em todos os principais seminários protestates e católicos (dos EUA e Europa), a Bíblia é abordada segundo o método chamado de "histórico-crítico". É algo completamente diferente da interpretação 'devocional' da Bíblia aprendida na Igreja", diz Ehrman no primeiro capítulo de seu citado livro, e ele se pergunta por que tais estudos dificilmente são transmitidos pelos líderes das igrejas ao povo, em geral. Autores conhecidos, como Marvin Meyer, James H. Charlesworth, John Dominic Crossan, Elaine Pagels e outros são pesquisadores que seguem um caminho de divulgação desta área de pesquisas de forma semelhante à de Ehrman.

  Atualmente professor de estudos religiosos na Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill e conferencista disputado em várias universidades, sendo figura constante em documentários do History Channel, do National Geographic e do Discovery Channel, Ehrman já escreveu 21 artigos e livros sobre religião, incluindo O que Jesus Disse? O que Jesus Não Disse? – Quem mudou a Bíblia e por quê, que esteve meses entre mais vendidos na lista do jornal The New York Times. Agora, em Jesus, Interrupted (no Brasil,Quem foi Jesus? Quem Jesus não foi?, Ed. Ediouro), Ehrman tenta revelar as contradições da Bíblia, que provam que o Novo Testamento (que, para o ocidente, é compreensivelmente mais importante que o Antigo, e este ainda mais cheio de erros. Para a ciência de algumas das contradições escritas na Bíblia, que tantos pensam ser a real palavra de Deus enlivrada, clique aqui) foi escrito a partir de material oral originado em  pessoas que conheceram um Jesus histórico extraordinário, mas esse material foi repassado e recolhido por outras pessoas gerações depois e com suas limitações e interpretações próprias do carisma do gênio galileu e que, portanto, escreveram conforme uma imagem tradicional e por vezes política e teologicamente elaborada, bem depois dos acontecimentos.

  Assim, os textos que compõe a seleção oficial dos evangelhos formam um livro não foi enviado à humanidade por Deus, mas foi fruto de tradições orais postas no papel décadas apos os eventos ocorridos com o Jesus histórico, escritos em países diferentes (Síria, Egito, Grécia e Roma) e com diferentes perspectivas teológicas (veja-se que o evangelho de João é bem diferente dos demais), que encobrem muito das idéias do genial Jesus real, cujo núcleo ainda visível é composto de um pacifismo fraternal universal e não exclusivista e uma apelo por uma mudança de percepção da realidade e de atitudes que levassem a uma sociedade de igualdade, proto-socialista (o Reino de Deus na Terra), mas cujos traços essenciais foram retocados, encobertos ou distorcidos por seguidores posteriores, por vezes por escribas (todos os textos eram copiados à mão até a invenção da imprensa),  tradutores e revisores, o que piorou ao longo dos séculos, por cópias manipuladas, em contextos históricos diversos, dos evangelhos e outros escritos constituintes do cânone que formaram o Novo Testamento, e que, assim, acabaram por perder muito de sua historicidade.

  As divulgações destas pesquisas por Ehrman e outros autores, como os acima citados, têm atraído a reação esperada - e por vezes violenta - de evangélicos ultra-conservadores. Logicamente, eles repetem um comportamento que existe desde os primeiros séculos do cristianismo: tentam diminuir o incômodo da dissonância cognitiva de terem seus pontos de vista, por eles considerados os únicos verdadeiros, questionado pelas evidências, acusando essas demonstrações de serem obra do demônio - no final, o curinga irreal e de pouco valor que eles usam para tudo que não conseguem argumentativamente ou por meios de provas, refutar ou explicar.

Mesmo na internet é possível ver a reação de fundamentalistas brasileiros que esperneiam contra livros como "Quem Jesus foi? Quem Jesus não foi?", ou contra revistas, como no caso da revista Galeleu, que touxe uma reportagem de capa sobre as informações do livro "O que Jesus disse? O que Jesus não disse", de Ehrman junto com uma entrevista com ele, em 2006. Ainda assim, a caravana passa enquanto os cães ladram, trazendo informações úteis que, em muitos casos, mais aumentam o fascínio sobre o Jesus de Nazaré histórico e reduzem a nocividade de certas seitas conservadoras atuais, muitas delas verdadeiros comércios da fé mediante promessas de ganhos bem pouco espirituais e espetáculos midiáticos de gosto duvidoso, apresentados pelos novos "fariseus" burgueses que se julgam superiores e mais perfeitos que os demais.

 Vejamos trechos de uma entrevista dada por Bart D. Ehrman e publicadas na revista Época:

De um tempo para cá temos visto um crescimento do número de títulos com críticas às religiões. O que está motivando os leitores?

Bart Ehrman – Há uma reação contra a direita conservadora do mundo religioso. Aqui nos Estados Unidos há vários líderes desse tipo (tele-evangélicos poderosos) que tiveram muita atenção da mídia por muito tempo, e as pessoas que estão do lado esquerdo deste espectro começaram a se incomodar. Muitos desses livros escritos por essas pessoas chamadas de “neo-ateístas” são uma representação deste movimento.

Alguns dos principais representantes do “neo-ateísmo” são Sam Harris e Richard Dawkins. Em um artigo recente da revista Time, o senhor reconheceu que compartilha leitores com eles. Mas o senhor se considera parte deste movimento?

Bart Ehrman – Não me considero um ateu e não acho que estou fazendo a mesma coisa que esses autores. Eles têm feito coisas boas, mas estão atacando a religião sem conhecer muito. Quando eu escrevo, faço isso como alguém que já esteve profundamente envolvido com a Cristandade, mas que agora a rejeitou tal como se apresenta. Por isso, a minha perspectiva é completamente diferente.

O que fez o senhor passar de um fiel cristão a um “agnóstico feliz”?

Bart Ehrman – Fui criado na Igreja Protestante e fui um cristão muito ativo por vários anos. Mas eu deixei a cristandade não por conta dos meus estudos históricos sobre a Bíblia, mas por não conseguir mais acreditar que poderia haver um deus no comando deste mundo cheio de dor e sofrimento.

Qual é o motivo de o livro se chamar Jesus, Interrupted [em tradução livre: Jesus, interrompido. Na versão brasileira: "Quem Jesus foi? quem Jesus não foi?"] ? Quando e como ele foi interrompido?

Bart Ehrman – O título significa que há inúmeras vozes diferentes falando no Novo Testamento. São autores diferentes, que possuem pontos de vista diferentes e que, muitas vezes, são conflitantes. Com tantas vozes assim falando no mesmo livro, muitas vezes é impossível escutar a voz do Jesus histórico, porque ele foi interrompido por outras pessoas.

E é possível definir qual é a maior contradição da Bíblia?

Bart Ehrman – São muitas discrepâncias, mas é possível destacar duas. O apóstolo Paulo, por exemplo, acha que a pessoa chega a Deus apenas pela fé, e não pelo que faz. No capítulo 24 de Mateus, no entanto, nós lemos que boas ações levam ao reino dos céus. Essas duas visões são excludentes em um assunto determinante, que é a salvação. Também há visões diferentes sobre quem era Jesus. No evangelho de João, Jesus é Deus, mas nos textos atribuídos a Marcos, Mateus e Lucas não há nada sobre isso. No evangelho de Mateus fica claro que ele acredita que Jesus é um ser humano, e que é o Messias. A Igreja acabou juntando essas duas visões, de que ele é humano e divino, e criou um conceito que não está escrito nem em João e nem em Mateus.

O senhor acha que essas discrepâncias fazem da Bíblia uma história falsa?

Bart Ehrman – Eu diria que os diferentes autores da Bíblia tem versões diferentes da história e por isso é errado tentar fazer com que eles digam a mesma coisa. Há muitos erros na Bíblia e, mais importante que isso, há diferentes pontos de vista teológicos e isso precisa ser reconhecido.

Desde quando a Bíblia começou a ser questionada? De que maneira isso enfraquece a Cristandade?

Bart Ehrman – As pessoas só começaram a notar essas diferenças na época do Iluminismo, no século XVIII. Antes disso, os estudioso da Bíblia eram teologicamente comprometidos com ela e não imaginavam que poderia haver erros. Essas descobertas são problemáticas especialmente para quem acredita que a Bíblia foi entregue a nós diretamente por Deus. Se isso ocorreu, por que não temos a Bíblia original? Por que temos apenas manuscritos escritos mais tarde e que não são iguais? Essas diferenças mostram que não existe um livro com inspiração divina que foi entregue a nós.

E como isso afeta especificamente a Igreja Católica?

Bart Ehrman – Existem estudiosos na Igreja Católica que concordam com quase tudo o que está escrito em "Quem Jesus foi? Quem Jesus não foi?". Mas na tradição católica a fé nunca foi sobre a Bíblia, mas sobre os ensinamentos da Igreja e sobre acreditar que Jesus é o filho de Deus. E isso não muda se a pessoa perceber ou não os erros da Bíblia. É bem diferente do fundamentalismo cristão que é tão poderoso onde eu vivo, no sul dos Estados Unidos. Aqui as pessoas acham que você só poder ser cristão se acreditar totalmente na Bíblia.

Alguns críticos do seu trabalho, especialmente o líder evangélico James White, dizem que você quer destruir a fé cristã. O que você acha disso?

Bart Ehrman – Estou tentando destruir o tipo de fé cristã de James White! (risos). Mas na verdade nada que eu faça pode destruir o Cristianismo. O problema é que há um certo tipo de fé cristã que diz que a Bíblia não tem erros e é infalível, e eu não concordo com isso. Eu não sou o único que pensa assim. As opiniões que estão descritas no meu livro são as mesmas da maioria dos estudiosos da Bíblia há muitas e muitas décadas, mas eles não costumam falar disso em público. Meu livro apenas pega o que os estudiosos dizem há muito tempo e torna disponível para os leitores normais.

Você recebeu muitas críticas de leitores por conta do livro?

Bart Ehrman – Recebi e-mails de pessoas bravas e sei que na internet há muita gente contrariada. Dizem que quero destruir sua fé, que sou o anti-Cristo. Mas a maior parte dos que escrevem ficou grata pelo livro e feliz por eu ter dito essas coisas, já que suspeitavam desses erros, mas não tinham base teológica para questionar a Bíblia.

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Giordano Bruno: a metafísica do Infinito

Texto de 

Carlos Antonio Fragoso Guimarães

  


Giordano Bruno, 1548-1600




O sacrifício pelo livre pensar


  Filipe Bruno nasceu em Nola, Itália, em 1548. O nome com que ficou conhecido, Giordano, lhe foi dado quando, ainda muito jovem, ingressou no convento de São Domingos, onde foi ordenado sacerdote, em 1572.

  Mente inquieta e muito independente, Bruno teve sérios problemas com seus superiores ainda quando estudante no convento. Sabemos que já em 1567 um processo foi instaurado contra ele, por insurbordinação, mas Bruno já granjeara admiração por seus dotes intelectuais, o que possibilitou a suspensão do processo. Era tão séria a largueza de visão de Bruno quanto aos defeitos do pensamento intelectual de sua época, que em 1576 teve de fugir de Nápoles para Roma devido à peseguições de toda espécie e, depois, para a Suíça, onde frequentou ambientes calvinistas, que logo abandonaria julgando o pensamento teológico destes protestantes tão ou mais restrito quanto o dos católicos.

  A partir de 1579, Bruno passa a viver na França, onde atraiu as simpatias de Henrique III. Em meados da década seguinte, Bruno vai para a Inglaterra. Mas logo ele entra em atrito com os docentes de Oxford. Vai, então, depois de um curto período de retorno à França, para a Alemanha luterana. Após um período de vivência no meio dos seguidores de Lutero (de onde seria expulso posteriormente), Bruno parte para Frankfurt, onde publica sua trilogia de poemas latinos. Recebe um convite (que lhe seria fatal) para ensinar a arte da memória ao nobre (na verdade, um interesseiro) veneziano chamado João Mocenigno. Assim, selando seu destino, Bruno parte para a Itália em 1591. No mesmo ano, Mocenigno (que esperava aprender as artes da magia com Bruno) denuncia o mestre ao Santo Ofício.


  No ano seguinte, começa o dramático processo contra Bruno, que se conclui com sua retratação. Em 1593, é transferido para Roma, onde é submetido a novo processo. Depois de extenuantes e desumanas tentativas de convencê-lo a retratar-se de algumas de suas teses mais básicas e revolucionárias pelo método inquisitorial, Bruno é, por fim, condenado à morte na fogueira, em 16 fevereiro de 1600.

  Giordano Bruno morreu sem renegar seus pontos de vista filosófico-religiosos. Sua morte acabou por causar um forte impacto pela liberdade de pensamento em toda a Europa culta. Como diz A. Guzzo: "Assim, morto, ele se apresenta pedindo que sua filosofia viva. E, desse modo, seu pedido foi atendido: o seu julgamento se reabriu, a consciência italiana recorreu do processo e, antes de mais nada, acabou por incriminar aqueles qua o haviam matado".







A Filosofia de Bruno


  A característica básica da filosofia de Giordano Bruno é a sua volta aos princípios do neoplatonismo de Plotino e ao hemetismo orgânico da Europa pré-crstã, notadamente nos trabalhos sobreviventes que conhecemos como "O Corpus Hermeticum".

     Nos primeiros séculos da era imperial romana durante o desenvolvimento do movimento cristão, veio à tona uma surpreendente literatura de caráter filosófico-religioso, cujo traço de união era, segundo seus autores, as revelações trazidas po Thot, o deus escriba dos egípcios, que os gregos identificaram com Hermes Trismegisto, de onde o nome de literatura hermética. Parece que o Thot egípcio foi, realmente, baseado em uma figura religiosa histórica real que o tempo se incubiu de envolver nos véus da lenda. Seja como for, temos conhecimento desses escritos filosófico-religiosos que remontam à tradição inicada pelo movimento de Thot-Hermes, e que nos chegaram, em parte.  

   O suporte doutrinário dessa literatura, segundo Reale e Antiseri (1990), é uma forma de metafísica inspirada em fontes do medioplatonismo, do neopitagorismo, da tradição de Apolônio de Tiana, e do nascente neoplatonismo. A iluminação pessoal, com a conseguinte salvação da alma, segunda esta doutrina, depende do grau de conhecimento (gnosi) e maturidade a que chega o homem em sua luta por compreender o porquê da existência terrena, que é a ante-sala do mundo supra-sensível, além do plano físico. Em virtude da profundidade destes escritos, alguns pais da Igreja (Tertuliano, Lactâncio e outros), consideraram Hermes Trismegsito um tipo de profeta pagão anterior e preparador dos ensinos de Cristo, embora esta história tenha sido abafada pelo fanatismo católico posterior da Idade Média. 

  Resgatando parte desta tradição, Bruno se coloca na trilha dos magos-filósofos que ressurgiram na renascença, que, embora procurando manter-se dentro dos limites da ortodoxia cristã, leva-o às últimas consequências. O pensamento de Bruno é gnóstico em essência, profundamente mesclado ao pensamento hermético e neoplatônico que o sustenta. Ele conduz a magia renascentista às suas fontes pré-cristãs e as demonstra serem tão válidas e ricas quanto a cristã, tendo, inclusive, o mérito de se enriquecerem mutamente. É necessário aceitar o diferente, segundo Bruno, com suas riquezes e pontos de vista complementares ao modo de ver do mundo cristão. 

  Bruno, tal como antes fizera o filósofo Plotino, considerava a religiosidade pré-Cristã uma forma de exercício para uma vivência plena, mística e direta com o Uno, o que parecia estar também presente no pensamento de Cristo, mas que foi encoberto pelos dogmas da Igreja. Isso foi fatal para Bruno, que surgiu uma época de extrema intolerância religiosa ( e que - sejamos honestos - ainda perdura de forma sutil e ainda mais cruel na Igreja Católica, como no exemplo da condenação da Teologia da Libertação e de seus formuladores, como Leonardo Boff, e no falso discurso ecumênico que esconde interesses políticos, em que é cegamente seguida por sua filha pródiga: o universo das igrejas e seitas evangélicas), e que buscava no hermetismo um refúgio à cegueira fanática da inquisição. E Bruno vem à tona pregando um reconhecimento da herança pagã antiga e da liberdade de pensamento filosófico-relgioso, o que, por si, era uma ameaça e uma atitude por demais revolucionárias para serem suportadas pelo poder de Roma.

  O pensamento de Bruno era holista, naturalista, sistêmico e espiritualista. Dentre suas idéias especulativas, destacamos a percepção de uma sabedoria que se exprime na ordem natural, onde todas as coisas, quer tenhamos idéia ou não, estão interligadas e se inter-relacionam de maneira mais ou menos sutil (holismo); a pluralidade dos mundos habitados, sendo a Terra apenas mais um de vários planetas que giram em volta de outros sistemas, etc. Por tudo isso, por essa ousadia em pensar, Bruno - que estava séculos adiante de seu tempo - pagou um alto preço. Mas sua coragem serviu de estopim e incentivo ao progresso científico e filosófico posterior.

Bibliografia:

Reale, G. & Antiseri, D. - História da Filosofia, Volume II, Ed.Paulis, São Paulo, 1990.
Yates, F. A. - Giordano Bruno e a Tradição Hermética, Ed. Cultrix, São Paulo, 1988.

A coragem de Eliana Calmon vence o corporativismo dos juízes



Quinta-feira, dia 02 de fevereiro de 2012, um dia para adentrar a história do Brasil como o dia da consolidação da democracia e da cristalização do princípio de que todos são iguais perante a Lei. Sim, porque antes, alguns se julgavam mais iguais do que outros e bem acima de todos. Dentre estes, alguns juízes e desembargadores (e alguns membros do Ministério Público de certos estados, que possuem tendência autoritária e corporativista, senão mafiosa para usufruto de besses entre os pares, quando estão no poder), que se achavam intocáveis e com o direito de bem dispor de bens e dinheiro público, esquecendo-se que são funcionários do povo e não o inverso.

Parabéns a Eliane Calmon que soube ser forte frente às pressões da AMB e outros órgãos pró-juízes, parabéns à coragem da OAB e, finalmente, parabéns aos corajosos ministros do STF que enfrentaram o conservadorismo e o elitismo de certos poderosos de toga que agora podem ser investigados legalmente pelo CNJ, especialmente os ladõres da escola do Lalau e os insanos do TJ de São Paulo que, agredindo pessoas e mesmo a Justiça Federal, promovem um tragédias como a de Pinheirinho...

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Frei Betto, a lógica insana do capitalismo e a busca do renascer da Solidariedade


 Como resultado da incompetência de um sistema que prioriza a acumulação privada da riqueza em detrimento dos direitos humanos, sociais e ambientais, o capitalismo conhece, agora, nova crise. Diante dela, a reação do lado dos donos do poder é o surrado samba de uma nota só: austeridade, cortes, aumento de impostos e desemprego, flexibilização das leis trabalhistas, congelamento de salários.
 Salvam-se os bancos e dane-se a população. Mais miséria à vista; jovens sem perspectiva de futuro, condenados à droga e ao crime; fluxos migratórios desordenados. 
 Já do lado da esperança, em homens, mulheres, estudantes e idosos, após três décadas de globocolonização neoliberal, as manifestações e reações pelo mundo sinalizam valores positivos como a crítica a este sistema, a empatia pelo sofrimento alheio, a solidariedade, a defesa da igualdade, a busca de justiça, o reconhecimento da diversidade e a preservação ambiental. Sem esse universo ético coletivo não há esperança de se construir um novo futuro de igualdade, paz e fraternidade. 
 Frei Betto, techo do artigo "Forum Social Mundial 2012"

Deus dá asas, já a religião, gaiolas



"Deus nos deu asas do pensamento para voar, os homens nos deram as gaiolas da religião"

Rubem Alves

A psicologia holística ou sistêmica


Carlos Antonio Fragoso Guimarães

Desde que René Descartes estabeleceu seu método de análise como um instrumento cientificamente eficaz no estudo dos fenômenos físicos e humanos, exaltando o reducionismo e as relações causais entre as partes que constituem um todo complexo, no século XVII, e postulou uma divisão estrita entre corpo e mente - ou entre a res extensa e a res cogitans -, que as diversas disciplinas acadêmicas tentam se adaptar a um esquema cartesiano de explicação dos diversos fenômenos a que se dedicam. 


Assim sendo, na esteira da tradição biomédica, a Psicologia foi, desde Wundt, moldada como uma disciplina voltada para a análise do comportamento humano de acordo com preceitos acdemicamente aceitos de reducionismo e mecanicismo. Tal bagagem referencial vem dificultando o entendimento das relações complementares e a maneira como a mente e o corpo interagem. Wundt, que é considerado o pai da Psicologia experimental moderna, seguindo a tradição empírica tão cara ao século XIX - tradição esta que advém dos enormes sucessos da Física Clássica de Issac Newton, que, por seu turno, foi precedida pela preparação de uma filosofia racionalista apropriada e em grande parte desenvolvida por René Descartes - estabeleceu uma orientação atômica ou elementarista dos processos mentais, a qual sustentava que todo o funcionamento do nosso psiquismo poderia ser analisado em elementos básicos, elementares e indivisíveis ( como os átomos elementares e indivisíveis que constituiriam o universo mecânico imaginado por Newton), e que seriam os tijolos constituintes das nossas sensações, sentimentos, memória, etc. Esta abordagem reducionista e mecanicista, muito simplória para dar conta de toda a imensa e complexa riqueza do psiquismo humano, logo suscitaram uma forte oposição entre muitos psicólogos e filósofos europeus, que não aceitavam a natureza extremamente fragmentária da psicologia de Wundt. Estes críticos europeus enfatizavam uma compreensão unitária entre a cônsciência e a percepção, e, em parte, de sua interelação com o organismo como um todo.


 Esta pioneira abordagem holística em Psicologia deu origem a uma importante escola na Alemanha: a Gestalt. A Psicologia da Gestalt Formulada entre fins do século passado e início do nosso século, a Psicologia dos Padrões de Totalidade ou de Totalidades Significativas(Gestalten, em alemão) surgiu como um protesto contra a tentativa de se compreender a experiência psíquico-emocional através de uma análise atomística-mecanicista tal como era proposto por Wundt - análise esta no qual os elementos de uma experiência são reduzidos aos seus componentes mais simples, sendo que cada um destes componentes são peças estudadas sioladamente dos outros, ou seja, a experiência é entendida como a soma das propriedades das partes que a constituiriam, assim como um relógio é constituído de peças isoladas. A principal caraterística da abordagem mecanicista é, pois, a de que a totalidade pode ser entendida a partir das características de suas partes constituivas. Porém, para os psicólogos da Gestalt, a totalidade possui características muito particulares que vão muito além da mera soma de suas partes constitutivas. Como exemplo, poderíamos tomar uma fotografia de jornal é que constituída por inúmeros pontinhos negros espalhados numa área da folha de jornal. Nenhum desses pontinhos, isoladamente, pode nos dizer coisa alguma sobre a fotografia. Apenas quando tomamos a totalidade da figura, é que percebemos a sua significação. 


A própria palavra Gestalt significa uma disposição ou configuração de partes que, juntas, constituem um novo sistema, um todo significativo. Sendo assim, o princípio fundamental da abordagem gestáltica é a de que as partes nunca podem proporcionar uma real compreensão do todo, que emerge desta configuração de interações e interdependências de partes constituintes. O todo se fragmenta em meras partes e/ou deixa de ter um significado quando é analisado ou dissecado, ou seja, deixa de ser um todo. Esta escola teve como principais expoentes Max Wertheimer, Wolfgang Kohler e Kurt Koffka. Posteriormente, Kurt Lewin elaboraria uma teoria da personalidade com base na compreensão gestáltica da totalidade significativa, onde se estipula que o comportamento do indivíduo é a resultante da configuração de elementos internos num "espaço vital", que é a totalidade da experiência vivencial do indivíduo num dado momento ( ou seja, todo o conjunto de experiências que se faz sentir num dado momento, de acordo com a percepção/interpretação do indivíduo ). Estas idéias foram, em parte, adotadas por Carl Rogers em sua teoria da personalidade, conhecida como Abordagem Centrada na Pessoa já que é o cliente que dirige o andamento do processo psicoterapêutico, trazendo e vivenciando o material pessoal exposto nas sessões. Já o psicoterapeuta Frederick S. Perls desenvolveria uma corrente de psicoterapia baseada nos fundamentos da escola da gestalt, pondo em prática uma ação terapêutica voltada aos padrões vivenciais significativos do indivíduo. Esta corrente é conhecida como Gestalt-Terapia. A Psicologia Organísmica de Kurt Goldstein Jan Smuts, militar e estadista inglês, que se tornou uma figura importante na história da África do Sul, é frequentemente reconhecido e citado como o grande pioneiro e precursor filosófico da moderna teoria organísmica ou holística do século XX. Seu livro seminal intitulado Holism and Evolution, de 1926, exerceu uma grande influência sobre vários cientistas e pensadores, muito embora, na época de seu lançamento, tenha passado quase despercebido da elite intelectual da primeira metade do século, tendo só aos poucos ganhando seu merecido espaço nos meios acadêmicos e filosóficos, principalmente graças ao impacto que exerceu em pensadores e teóricos do porte de um Alfred Adler, famoso teórico da personalidade e discípulo dissidente de Sigmundo Freud; ou de um Adolf Meyer, psicobiólogo; ou na recente e menos mecanicista linha médica, dentro da alopatia, chamada de psicossomática, etc. Smuts cunhou o termo holismo da raiz grega holos, que significa todo, inteiro, completo. Mas as verdadeiras bases da concepção holística, ou do pensamento holístico, vêm verdadeiramente de muito antes, desde Heráclito, Pitágoras, Aristóteles e Plotino até Spinoza, Goethe, Schelling, Flammarion e Willian James (Hall e Lindzey, 1978; Crema, 1988; Guimarães, 1996). 


Um dos maiores expoentes do pensamento holístico em psicologia e em psiquiatria é Kurt Goldstein. Ele formulou a sua teoria holística da psique a partir de seus estudos e observações clínicas realizados em soldados lesionados no cérebro durante a I Guerra Mundial, e de estudos sobre distúrbios de linguagem. Deste leque de observações, Goldstein chegou à conclusão (hoje mais ou menos óbvia) de que um determinado sintoma patológico não pode ser compreendido ou reduzido a uma mera lesão orgânica localizada, mas como tendo características e/ou fortes reforços ou abrandamentos do organismo como um todo, como um conjunto integrado, como um holos e não como um conjunto de partes mais ou menos independentes. Segundo Goldstein, o corpo e a mente não podem ser vistos como entidades separadas, tais como separamos o software do hardware, pois ambos só se expressam na conjunção, na união e íntima conexão de ambos. O organismo é uma só unidade e o que ocorre em uma parte afeta o todo, como já era reconhecido pela da medicina Homeopática e pelas artes da cura não ocidentais, como na medicina chinesa, e na sabedoria das tradições populares e xamanísticas de povos ditos "primitvos" (Capra, 1986; Eliade, 1997; Guimarães, 1996). Qualquer fenômeno, quer seja positivo ou não, se passa tanto ao nível fisiológico quanto psicológico, ou seja, se passa sempre no contexto do organismo como um todo, a menos que se tenha isolado artificialmente este contexto, como se fez nas ciências e nos meios acadêmicos desde Descartes, com as esferas da Res Cogitans, que é a esfera do mental, e da Res Extensa ou a esfera do físico, da Coisa extensa, e a ramificação entre ciências naturais e ciências humanas. Ora, não existe real diferenciação (no sentido de mensuração) entre estes dois ramos. Assim, qualquer redução ou caracterização em um ou outro destes critérios (físico e mental) é um isolamento artificial e, conseqüentemente, parcial. As leis do organismo são as leis de uma totalidade dinâmica, que harmoniza as "diferentes" partes que constituem esta totalidade. Portanto, é necessário descobrir as leis pelas quais o organimso inteiro funciona, para que se possa compreender a função de qualquer de seus componentes, e não o inverso, como se tem feito até hoje (Hall e Lindzey, 1978). É este o princípio básico da teoria organísmica ou holística em saúde, principalmente em Psicologia. 


Goldstein acreditava que os sintomas patológicos eram uma interferência do meio sobre a organização do todo, ou eram, em menor grau, consequencias de anomalias internas. Mas, de qualquer forma, a tendência intrínseca ao equilibrio dinâmico poderia levar o indivíduo a se adpatar à nova realidade, desde existam os meios que sejam apropriados para isso. Assim, Goldstein via em todo o ser vivo uma tendência de auto-realização que significaria uma esforço constante para a realização das potencialidades inerentes dos seres vivos, mesmo que haja um meio ostil. É assim que, mesmo em abientes não propícios, vemos nascerem plantas que, mal grado, não consigam se desenvolver totalmente, mesmo assim teimam em nascer, mesmo que venhma a morrer ou a se atrofiarem em breve, mas a ânsia de viver é mais forte. 


Esta idéia de auto-realização ou de auto-atualização foi, posteriomente, adotada por teóricos vários, desde Carl Rogers até biólogos, como Maturana. Andras Angyal e o conceito de Biosfera Assim como Goldstein, Andras Angyal, húngaro naturalizado americano, não poderia conceber uma ciência que não fosse holística, alcançando a pessoa e a vida como um todo. 


Mas, ao contrário de Goldstein, Andras Angyal não podia admitir numa distinção entre o organismo e o meio-ambiente, assim como um físico relativista não pode acreditar numa sepação rígida entre matéria e energia. Angyal afirma que organismo e meio ambiente se interpenetam de uma forma tão complexa que qualquer tentativa para separá-lo expressa uma visão mecanicista do mundo que destrói a unidade natural de todas as coisas (unidade sutil, é verdade, mas bem visível na interdependência bio-ecológica e social de todos os seres vivos), o que cria uma diferenciação artificial e patológica entre o organismo e o meio (Hall e Lindzey, 1978; Capra, 1986), o que estimula todo o tipo de crime social e ecológico que vemos em nosso século. Se, na história da humanidade, houve grandes catrofes naturais e grandes genocídios através da mão humana em nome da religião, por exempo, mesmo assim nunca se matou tanto como em nossos dias, em nome de uma concepção de mundo mecanicista- racionalista e capitalista, onde tudo foi separado de tudo, e os seres vivos são vistos como máquinas e nada mais. 


Angyal criou o termo biosfera para traduzir uma concepção holística ou ecológica que compreenda o indvíduo e o meio "não como partes em interação, não como constituintes que tenham uma existência independente dos demais, como peças de um relógio, mas como aspectos de uma mesma realidade, que só podem ser separados realizando-se uma abstração" (Angyal, cit. em Hall e Lindzey, 1978, p. 43). A biosfera, portanto, em seu sentido mais amplo seria mais ou menos como a atual conceção de Gaia, ou da Terra viva. A biosfera pode ser vista em vários níveis, inclusive no nível humano, onde um indíviduo constitui uma biosfera particular em relação ao seu conjunto orgânico e psíquico, assim como uma sociedade, etc. Assim, a Biosfera inclui tanto os processos somáticos quanto os psicológicos (individuais e coletivos) e os sociais, que podem ser estudados assim, separadamente, mas só até certo ponto. 


Segundo Hall e Lindzey (1978), embora seja a Biosfera um todo indivisível, ela é composta e organizada por sistemas estruturalmente articulados. A tarefa do cientista seria, assim, de identificar as linhas de demarcação determinadas na biosfera pela estutura antural do todo em si mesmo. Assim, um homem se diferencia de outro homem, mas ambos possuem características que nos permitem classificá-los como homens e não como peixes, etc. O organismo individual, um sujeito, portanto, constitui um pólo da biosfera, e o meio ambiente, natural e social, o outro polo. Toda a dinâmica essencial da vida está fundanda na interação entre estes dois pólos. Angyal postula que não são os processos de um ou de outo que determinam ou refletem a realidade, mas a interação contínua de ambos. Assim, a vida como um todo unitário nos daria uma nova visão e a possiblidade de percebermos fenômenos e detalhes que nos escapam no estudo polar de ambos os níveis da realidade.

Escrito em 22 de fevereiro de 1998