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quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Paulo de Tarso modificou a mensagem de tolerância de Jesus




Carlos Antonio Fragoso Guimarães

                Embora quase sempre desconhecido do grande público – em parte devido à resistência dos chamados “líderes religiosos”, especialmente os mais conservadores, que buscam fundamentar sua autoridade em uma aura de verdade absoluta em cima dos chamados textos sagrados -, o estudo crítico, histórico e acadêmico da Bíblia e, em especial, do Novo Testamento, desde o século XIX vêm trazendo à luz novas perspectivas de entendimento das chamadas escrituras sagradas. Entre as mais importantes descobertas existe a crescente percepção da contradição entre as mensagens de Jesus, ética e de cunho fraterno tal como encontrada nos evangelhos, especialmente em Mateus e Lucas, e o cristianismo de mera adesão proposto por Paulo de Tarso, o real fundador do cristianismo como sendo uma religião independente e um seguidor posterior que não conviveu com Jesus.
                Pela análise do estilo literário e das colocações sociais de cada texto -  que é uma das formas de se estudar o material que dispomos, já que não existem originais do século I, sendo as mais antigas cópias disponíveis, já datadas, do século II -, percebe-se que as chamadas “cartas paulinas” constituem o conjunto de textos cristãos mais antigos, as atribuídas como autênticas, redigidas provavelmente cerca dos anos 50 da era comum. Os evangelhos propriamente ditos são, contudo, historicamente, em determinados pontos, mais precisos que as observações de Paulo. Constituem eles  compilações de fontes orais e de, possivelmente, registros escritos perdidos (como, por exemplo, a fonte Q, tão citada pelos estudiosos acadêmcios e que pode ser, em parte, reconstituída, pelo material dos chamados evangelhos sinóticos: Marcos, Mateus e Lucas), compostas  entre os anos 65-70 (data provável da composição do evangelho de Marcos) a até aproximadamente 95 ou 100 da era cristã (quando provavelmente foi escrito o evangelho atribuído a João, mas que de fato é uma compilação de interpretações posteriores de uma comunidade de cristãos tardios, provavelmente baseadas muito levemente em tradições orais que remontam a algum discípulo de João).

Apesar de serem 13 o número de epistolas atribuídas a Paulo na maioria das Bíblias ocidentais, hoje a maior parte dos pesquisadores considera que apenas seis destas epístloas tenham sido formuladas pelo próprio, pois apresentam o mesmo estilo e pontos de semelhança, sendo as demais meras composições posteriores de discípulos que queriam validar sua importância como documentos atribuindo-os a Paulo. O pesquisador Pedro Vasconcelos, da PUC, afirma que "Elas (as cartas não-paulinas) são muito diferentes em estilo literário e conteúdo". Para o conservadorismo das igrejas mais ligadas a uma concepção tradicional da Bíblia, no entanto, toas as cartas encontradas nas edições correntes da mesma são consideradas autênticas. As epístolas consideradas realmente originais pela maior parte dos experts são: aos Romanos, 1 e 2 aos Coríntios, aos Gálatas, aos Filipenses, a primeira à Tessalônica e a endereçada a Filêmon.
Por sua ação missionária em meios não judeus, a figura de Paulo de Tarso teve uma importância indiscutível na constituição do cristianismo (especialmente do cristianismo “paulino”) em sua ansiedade em construir uma teologia sobre a figura Cristo (e não da mensagem de Cristo), o que causou impacto na formulação da teologia ortodoxa posterior - inicialmente no Império mas, bem depois, mais especialmente na teologia protestante. O problema, contudo, surge quando comparamos os dizeres e visões teológicas de Paulo com os que são atribuídos ao próprio Jesus, pelos evangelhos, especialmente o de Mateus.
          Igualmente digno de nota é de que certamente Paulo não pensava que suas cartas acabariam por ir parar na Bíblia (ao menos naquilo que se transformaria Bíblia cristã). Elas eram produtos do interesse de Paulo em esclarecer problemas e situações das comunidades que ele tinha ajudado a criar, e não súmulas teológicas indiscutíveis a serem tomadas como regra. Só muito mais tarde alguém com alguma influência política as julgariam apropriadas para formarem parte do cânone do Novo Testamento.

Paulo, como todos sabem, foi um aspirante a doutor da Lei (sacerdote graduado). Um judeu do século I, contemporâneo de Cristo, mas que nunca o vira pessoalmente durante seu ministério, e que, profundamente zeloso da ortodoxia judaica, de início foi perseguidor implacável dos primeiros cristãos. Contudo, esta atitude agressiva iria mudar radicalmente após Paulo (na época, Saulo) ter uma visão do Cristo pós-morte. Isso o abalou o suficiente para que passasse por uma crise religiosa, se convertendo ao cristianismo e se transformando de perseguidor a divulgador. Contudo, apesar do que diz supostamente Lucas nos Atos dos Apóstolos (escrito muitos anos após a morte de Paulo, provavelmente em torno do ano 75), Paulo não procurou nas fontes apropriadas, ou seja, nos discípulos diretos de Jesus, a base da sua própria mensagem. Ao invés disto, após um contato muito superficial com alguns discípulos menores – e não com os apóstolos, o que só se daria após três anos -, Paulo se afastou para pensar sobre sua experiência da visão que teve do ente que antes perseguira. Com estas reflexões ele também questionou sua herança formal judaica, para voltar três anos depois com toda uma visão pessoal já sedimentado do seria ou deveria ser o cristianismo, moldada com elementos judaicos e gregos (Paulo era cosmopolita). Só então, depois, teve contato com alguns dos apóstolos diretos de Jesus e, nas suas palavras, destes mais precisamente apenas Pedro e Tiago, “irmão do Senhor”, sem que este contato tivesse qualquer  grande impacto na sua já cristalizada visão do cristianismo. Assim, lemos pela pena do próprio Paulo em Gálatas 1:16-20:

“Não consultei carne nem sangue, nem subi a Jerusalém aos que eram apóstolos antes de mim, mas fui à Arábia e voltei novamente a Damasco. Em seguida, após três anos, é que subi a Jerusalém para avistar-me com Pedro e fiquei com ele por 15 dias. Não vi nenhum apóstolo, mas somente Tiago, o irmão do Senhor. Isso vos escrevo e asseguro diante de Deus que não minto.”

O estudo crítico das epístolas junto com os novos textos descobertos no século XX, daquela época, mostra que ante o que pareciam ser elementos próprios de Paulo em muitas de suas cartas, as descobertas de textos antigos, como os famosos Manuscritos do Mar Morto (que, ao contrário do que muitos pensam, nada têm de cristãos) mostrou serem elementos de discussão comum entre a classe judaica mais instruída na época, especialmente as interpretações apocalípticas dadas ao que se esperava do “messias” e que foi adaptada à singularidade da vida e obra de Jesus (o apocalipsismo era uma mentalidade constante entre os judeus oprimidos da época). Porém, muito mais sério do que isso, uma parte da visão “cristã” de Paulo parece chocar de frente com os próprios ensinamentos de Jesus. Isso fica mais grandemente visível no núcleo do pensamento paulino de que a simples justificação pela fé em Jesus, especialmente nos fatos de seu sacrifício e ressurreição, serem os únicos elementos que justificariam a salvação de um crente, doutrina arduamente abraçada pela maioria das igrejas e seitas evangélicas, mas que bate frontalmente com o que Jesus diz em Mateus em 25:31-45:
«Quando o Filho do Homem vier na sua glória, acompanhado por todos os seus anjos, há-de sentar-se no seu trono de glória. 32Perante Ele, vão reunir-se todos os povos e Ele separará as pessoas umas das outras, como o pastor separa as ovelhas dos bodes. 33À sua direita porá as ovelhas e à sua esquerda, os bodes.
34O Rei dirá, então, aos da sua direita: ‘Vinde, benditos de meu Pai! Recebei em herança o Reino que vos está preparado desde a criação do mundo. 35Porque tive fome e destes-me de comer, tive sede e destes-me de beber, era peregrino e recolhestes-me, 36estava nu e destes-me que vestir, adoeci e visitastes-me, estive na prisão e fostes ter comigo.’
37Então, os justos vão responder-lhe: ‘Senhor, quando foi que te vimos com fome e te demos de comer, ou com sede e te demos de beber?38Quando te vimos peregrino e te recolhemos, ou nu e te vestimos? 39E quando te vimos doente ou na prisão, e fomos visitar-te?’ 40E o Rei vai dizer-lhes, em resposta: ‘Em verdade vos digo: Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes.’
41Em seguida dirá aos da esquerda: ‘Afastai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, que está preparado para o mal e para os seus anjos!42Porque tive fome e não me destes de comer, tive sede e não me destes de beber, 43era peregrino e não me recolhestes, estava nu e não me vestistes, doente e na prisão e não fostes visitar-me.’ 44Por sua vez, eles perguntarão: ‘Quando foi que te vimos com fome, ou com sede, ou peregrino, ou nu, ou doente, ou na prisão, e não te socorremos?’ 45Ele responderá, então: ‘Em verdade vos digo: Sempre que deixastes de fazer isto a um destes pequeninos, foi a mim que o deixastes de fazer.’”

O conhecido especialista em Novo Testamento Bart D. Ehrman reflete que esta passagem de Mateus “sugere que a salvação não é apenas uma questão de crença, mas também de ação, uma idéia absolutamente ausente do raciocínio de Paulo”. Poderíamos dizer ausente não apenas de Paulo, mas de toda a tradição que se moldou a partir das igrejas “paulinas”, especialmente as atuais igrejas televangélicas, de cunho paulino-fundamentalista.  Na passagem de Mateus acima transcrita se percebe mesmo que os escolhidos (as “ovelhas”) podem sequer ter tomado conhecimento da vida de Jesus (“Senhor, quando foi que te vimos...”). Nos dizeres de Bart D. Ehrman,

As ‘ovelhas’ ficam perplexas (de terem sido escolhidas como herdeiras do Reino). Elas não se lembram sequer de ter encontrado Jesus, o Filho do Homem, quanto mais de fazer essas coisas por ele. Mas ele diz a elas: ‘Cada vez que fizeste a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes’. Em outras palavras, é cuidando dos que têm fome, sede, estão nus, doentes e encarcerados que é possível herdar o Reino de Deus.
“Como essas palavras se coadunam com Paulo? Não muito bem. Paulo acreditava que a Cida eterna era dada àqueles que acreditavam na morte e ressurreição de Jesus. No relato de Mateus sobre as ovelhas e os bodes, a salvação é dada a quem nunca havia falar de Jesus. É dada a quem trata os outros de forma humana e carinhosa no momento de maior necessidade. É uma visão  da salvação inteiramente diferente” (Bart D. Ehrman, “Quem foi Jesus? Quem Jesus não foi”, Ed. Ediouro, 2010).

Portanto, segundo alguns pesquisadores – e até mesmo alguns teólogos mais esclarecidos – ,existe material suficiente para suspeitar que Paulo  divulgou uma doutrina “paulina” em franco contraste com a mensagem de Jesus. Paulo ajudou a cristalizar uma religião sobre Cristo e não de Cristo. Edgar Jones, autor do livro Paulo: O Estranho, diz que "Jesus de Nazaré deve ser cuidadosamente diferenciado do Jesus de Paulo. Gerações e séculos passaram até que a corrente paulina com seu forte apelo em favor do Império Romano ganhasse ascendência sobre a corrente apostólica". O fato é que, até o século 4, existiam várias correntes de cristianismo, cada uma com uma forma de interpretar a mensagem original de Jesus e, em linhas gerais. eram divididas entre as que eram lideradas pelos discípulos de Paulo e outras atreladas, pelos seguidores, à tradição mais ligada aos apóstolos de Cristo. Uma que dava ênfase à transformação pessoal calcada na preocupação ética com o próximo a partir das mensagens éticas do evangelho e outra mais voltada para a conversão ideológica à própria figura de Jesus. Sobre essa divisão veja-se, por exemplo, a ênfase que está na epístola atribuída ao apóstolo Tiago, o irmão do Senhor – e que portanto, se for dele mesmo conheceu e conviveu com Jesus. Ainda que provavelmente a epístola não seja do Tiago apóstolo, parece ser de alguém que conhecia melhor os ensinos de Jesus que Paulo. Esta epístola dá a grande ênfase à caridade e às obras humanistas, criticando quem acha que apenas a fé o ajudará a purificar a alma e atingir o nível do Reino dos Céus, o que está concorde com o trecho de Mateus que já vimos. Na epístola a Tiago atribuída, que não se encontra em algumas bíblias protestantes, lê-se o seguinte:

“14 Que aproveitará, irmãos meus, a alguém que tem fé, se não tiver obras? Acaso podê-lo-á salvá-lo a fé? 15 Se um irmão, porém, ou uma irmã estiverem nus e lhes faltar o alimento diário, 16 e lhes disser algum de vós: Vá em paz, aquentai-vos e farte-se, e não lhes deres o que é preciso para o corpo, de que lhes aproveitará estas palavras? 17 Assim também a fé, se não tiver obras, é morta em si mesma”.
“18 Poderá logo alguém dizer: Tu tens a fé e eu tenho as obras. Mostrai-me tu a tua fé sem obras e eu te mostrarei a minha fé pelas minhas obras. 19 Tu crês que há um só Deus, fazes muito bem, mas também os demônios o crêem e tremem. 20 Queres tu, pois, saber, oh homem vão, que a fé sem obras é morta? (...) 24 Não vedes como é que é pelas obras que um homem é justificado e não somente pela fé? (...) 26 Porque bem como um corpo sem espírito é morto, assim também a fé sem obras é morta.”

Este é igualmente o diferencial que muitos dos acadêmicos têm sobre o diferencial da corrente paulina e da corrente apostólica (veja-se que nos Atos dos Apóstolos Paulo não é chamado de Apóstolo, embora ele mesmo o faça em suas epístolas). O professor Bart Ehrman, resumindo o pensamento da maioria dos pesquisadores e do que é mesmo ensina na maior parte dos centros de formação teológica de grandes universidades, chega mesmo a enfatizar que, de acordo com os indícios das palavras ou, ao menos do pensamento, do Jesus histórico:

“ As ‘ovelhas’ recebem sua recompensa celestial e eterna por todas as coisas boas que fizeram: alimentar os que tinha fome, vestir os despidos, cuidar dos doentes; os ‘bodes’ são punidos por não terem feitos boas ações. Um cristão posterior inventaria tal tradição? Após a morte de Jesus, seus seguidores alegaram que a pessoa se tornava justa perante Deus e receberia sua recompensa eterna ao [simplesmente] acreditar na morte e na ressurreição de Jesus, não fazendo boas ações. Portanto, essa hsitória (encontrada em Mateus 25) rema contra a corrente desse ensinamento, ao indicar que a pessoa será recompensada por suas boas ações. Logo: isso tem de remontar a Jesus.
“Em síntese, Jesus ensinou (...) que as pessoas (...) deveriam mudar seu comportamento e viverem como Deus esperava que vivessem. Isso envolvia o amor desinteressado pelos outros. Assim, Jesus teria cidade as Escrituras: ‘Amarás a teu próximo como a ti mesmo’ (Mateus 22:39, citando Levítico 19:118). Sua formulação da idéia é a Regra de Ouro: Tudo aquilo, portanto, que querei que os homens vos façam, fazei-o vós a eles” (Mateus 7:12). É difícil afirmar, de forma mais concisa, as exigências éticas da lei de Deus” (EHRMAN, 2010, “Quem foi Jesus, Quem Jesus não foi?”, PP. 177-178).

Quando o cristianismo tornou-se a religião oficial do Império Romano, especialmente com Teodósio, a corrente paulina saiu-se vitoriosa, especialmente porque uma das cartas (Romanos) de Paulo diz textualmente que os cristãos deveriam se submeter às autoridades constituidas, no caso, Roma.  "As idéias de Paulo, afáveis aos dominadores, foram definitivamente incorporadas à doutrina cristã", diz Fernando Travi, teólogo evangélico. Ora, essa submissão passiva ás autoridades políticas soa estranha a um seguidor de um revolucionário morto por estas mesmas autoridades, com o aval das autoridades religiosos locais, por seu potencial perigo político. O teólogo franciscano Jacir de Freitas Faria, mestre em exegese bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico (PIB), de Roma, comunga da mesma opinião: "Paulo é uma figura basilar do cristianismo, mas não podemos deixar de ser críticos a ele nessa relação com o Império Romano".

Outro ponto de controvérsia clássico sobre Paulo é a sua clara (ou a ele associada) e nem sempre sutil opinião sobre as mulheres. Na carta, provavelmente espúria, endereçada à comunidade cristã de Colosso, encontramos a seguinte passagem machista: "Quanto às mulheres, que elas tenham roupas decentes, se enfeitem com pudor e modéstia. (...) Durante a instrução, a mulher conserve o silêncio, com toda submissão. Não permito que a mulher ensine, ou domine o homem".

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