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sábado, 12 de fevereiro de 2011
Fundamentalismo Evangélico - Reflexões
Antonio Márcio
(texto escrito em 2001)
Trabalhando como professor da rede pública do Rio de Janeiro, com uma clientela de classe popular, portanto interagindo trabalhadores e filhos de trabalhadores, e estando comprometido com esse segmento de alunos, no seu direito básico a uma educação de qualidade, e entendendo a escola como espaço para reflexão em todos os aspectos da vida, tenho observado questões referentes à religiosidade desses alunos e de suas famílias, trazidas por eles com comentários que me fizeram refletir sobre aspectos relacionados à visão das religiões, mais especificamente no caso, às igrejas evangélicas, sobre o mundo e a realidade tal qual ela se apresenta e como esses alunos a interpretam.
O motivo para tal reflexão não se deu de uma hora para outra. Ela tem se feito em mim a partir de, como já foi citado acima, questões trazidas pelos alunos para dentro de sala de aula e que diante dos últimos acontecimentos terroristas me inspiraram a esse texto que disserto no momento.
Pessoas desprovidas da assistência que deveria ser dada pelo poder público, tais como: moradia digna, saúde, educação, emprego, acabam buscando essas igrejas que, como parte da sua tática de recrutamento de fiéis, dão certo conforto psicológico, fazendo-as sentirem-se importantes, tendo uma identidade própria, além de fazerem promessas de melhoras a partir do adesismo à fé mediada por estas igrejas. Lá elas são o irmão , a irmã , o obreiro, o diácono, o pastor. Não estão sós, não são mais uns na multidão, mas agora parte de um "rebanho".
Essa aquisição de uma identidade, de promessas de uma vida melhor, solução de todo tipo de problema de qualquer natureza (materiais, financeiros, sentimentais, saúde e etc), fazem com que o indivíduo se una ao grupo e passe a ver e pautar sua conduta diante da realidade de acordo com essa filosofia de prosperidade condicionada à adesão incondicional à doutrina dos pastores. Uma filosofia maniqueísta, dual, onde a realidade está dividida entre dois pólos antagônicos em todos os aspectos: O mundo e a igreja, o crente e o ímpio, o bem e o mal, Deus e o diabo. É simplesmente o Preto e o Branco, sem gradações de cinza e sem cores. É nessa perspectiva que tudo deve ser visto e colocado. Viver nela é que torna tal visão pouco prática e em desarmonia com a realidade. Daí visões distorcidas pelo fanatismo pessoal, a intolerância dos exaltados e as aberrações dos Estados fundamentalistas.
Um acontecimento que bem ilustra essa visão dualística é o que um aluno de 13 anos de uma dessas escolas públicas em regiões carentes me trouxe um dia. O aluno narrou uma história que torna bem claro o quanto essas posturas radicais - onde não exista uma terceira alternativa - mexe com o cotidiano das pessoas, colocando suas atitudes até em um nível, digamos assim, paranóico, por fugir ao bom senso e ir por uma lógica incompreensível, mas que para eles existe, em nome de uma fé, de um Deus, de uma escritura entendida superficialmente ao pé da letra.
O garoto contou que sua mãe, adepta de uma dessas igrejas, foi orientada em um dos cultos sobre um brinquedo infantil chamado tamagochi, uma espécie de vídeo-game portátil em formato debichinho que deveria ser "alimentado", cuidado pela criança que o possuísse através de seus botões que indicavam o que está sendo feito e como o tal bichinho reagia. A orientação dada pelo pastor eraque esses tais bichinhos-brinquedos eram coisas do demônio edeveriam ser destruídos, caso os filhos de um dos adeptos o
possuíssem. Todos obedeceram cegamente à ordem do líder e recolheram emsuas casas o tal brinquedo, levando-os à igreja, onde foi quebradodiante de orações e exorcismo.
Pensando nesse fato, me veio a imagem daqueles aviões sechocando contra as torres do World Trade Center. O que há de semelhante entre os dois ocorridos já que as proporções de tais atos não se comparam e por desencadearem acontecimentos de proporções infinitamente distintos e sem quase nenhum parâmetro decomparação?
O ato de uma dona de casa quebrar um brinquedo e terroristas jogarem aviões em prédios matando milhares de pessoas não podemde forma alguma ser comparados. Os atos se distinguem no próprio ato. Mas existe algo em ambos que são semelhantes e que os tornam idênticos e perigosos. O que assim os torna é a leitura do mundo idêntica que faz uma dona de casa evangélica e um terrorista fundamentalista.
Refletindo mais vemos que a forma como ambos vêem a realidade é a mesma, não importando a dimensão do ato. Ambos enxergam o mal da mesma forma e o destroem do mesmo jeito. Aquilo que, supostamente, não é de Deus é do seu opositor, o diabo, e tem de ser eliminado, violentamente eliminado.
Visões como essa aproximam muito essas nossas igrejas evangélicas com o que estamos assistindo no Afeganistão governado por um grupo de fanáticos denominados Talibãs, e que, em nome de sua fé, destroem imagens de Budas milenares, não considerando o patrimônio histórico. Proíbem qualquer música ocidental, todas as expressões culturais de um povo, por considerá-las errôneas e contra os princípios de uma religião que vê o pecado em tudo que está em desacordo com suas escrituras, ou com o que eles pensam que dizem as escrituras, já que todo texto (especialmente os antigos) possuem um contexto que precisa ser entendido.
Nada diferente da visão dessas igrejas evangélicas revelada nas falas de seus pastores e adeptos. "Dançar é pecado", "música do mundo não pode", "carnaval é festa do diabo", "procissões são sinal de ignorância e idolatria", e por aí vai.
Uma evidência desse radicalismo maniqueísta simplório e dessa visão demoníaca em tudo está numa reportagem de um jornal de uma dessas igrejas evangélicas sobre o filme HARRY POTTER. O artigo diz claramente que esse filme ensina às crianças práticas de bruxaria e está a serviço do diabo. É, dizem eles, mais uma artimanha dele para desviar as pessoas do caminho de Deus, conclui o artigo.
Isso é apenas um exemplo de como essa visão maniqueísta vê um filme de entretenimento como algo ameaçador. Eles vêem o demônio em músicas populares, que tocadas de trás pra frente, suas letras, segundo eles, tornam-se palavras de louvor a satanás. Quando uma igreja compra um cinema, teatro ou casa de espetáculo e transforma-os em ponto de evangelização há um regozijo dos pastores e membros por ter se fechado mais uma porta do pecado e aberto mais uma sala de doutrinação.
E o que dizer da intolerância dessas pessoas com todo o credo que não for o deles? Será que são vistas como pessoas? Quantos ataques ao sentimento religioso das pessoas praticantes ou simpatizantes dos cultos afros e da igreja romana. Os candomblecistas, umbandistas, kardecistas, católicos, e todos que pratiquem uma outra religião que não a evangélica, que, aliás, eles não consideram como religião (alguns deles dizem que evangélicos não têm religião, têm Jesus), são vistos não como filhos de Deus, mas como criaturas, porque filhos Deus só são eles.
Todos esses aspectos e questões devem nos fazer pensar de como seria nosso futuro nas mãos destes fundamentalistas, e, ainda que pareça algo improvável, segundo alguns estudiosos de religião, em 2045 metade da população brasileira será evangélica, uma nação governada por pessoas como essas!
Ainda que tenhamos países em sua maioria protestante, vale ressaltar que são países dentro de outra conjuntura histórica, social e econômica. Uma coisa é ser evangélico Batista, Presbiteriano, Luterano ou Metodista nos Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha ou qualquer outro de lº mundo com igrejas históricas que remontam à época da reforma e ser evangélico pentecostal ou neopentecostal da Igreja Universal, da Graça, da Assembléia ou milhares outras pequenas Igrejas, Grandes Negócios num país de terceiro mundo.
Certamente teríamos algo parecido com o que vemos no Afeganistão e que nos parece tão absurdo, mas que, se pensarmos novamente na forma de leitura do mundo que evangélicos daqui e Talibãs islâmicos de lá fazem, veremos que, guardadas as devidas proporções históricas e culturais de nosso povo, veríamos atitudes bem semelhantes.
Ou alguém pensa que um evangélico, apoiado por uma maioria da população igualmente evangélica e que anseia por um presidenteque como eles mesmos definem, "temente a Deus", não traria danos à nossa cultura, nossas expressões populares, nossa produção deconhecimento e de entretenimento?
Paremos para pensar um pouco: Num caso como esse, como ficaria nosso Carnaval? Permitiriam essa festa da carne, expressão do demônio? E os filmes, os cinemas? Permitiram qualquer que um, segundo eles, fizessem apologia à bruxaria, satanismo ou contrariasse algo considerado verdade por eles ou seria expressamente proibido. E iriam querer eles cinemas abertos? Como? Se eles são os preferidos para virarem igrejas? Com certeza as únicas instituições não criticadas seriam os bancos para o depósito dos dízimos dos fiéis.
E nossas danças, a sensualidade que elas trazem? Seria permitida? Festas, alegrias, tudo isso seria condenado por tratar-se decoisas mundanas. Não que sejam contra a alegria, como eles mesmos dizem, mas toda alegria deve ser em Deus. Portanto, dançar, somente músicas evangélicas. Peças de teatro ou filme, somente aqueles quetivessem como temática assuntos bíblicos ou com mensagens evangélicas num claro proselitismo.
Como ficaria o reveillon nas praias com oferendas a Iemanjá? Para eles, ela é o próprio demônio disfarçado para iludir e trazer desgraçaàs pessoas. Seriam proibidas, pois muitas igrejas na passagem deano vão à praia fazer seus cultos num claro confronto com as práticas religiosas afros. Claro que a praia é para todos em todos os momentose ocasiões, mas fica claro na fala dos pastores que o objetivo é o confronto em nome de uma "verdade absoluta" que não permite outra possibilidade.
Penso na imagem do Cristo Redentor no alto do Corcovado. Com certeza mandariam derrubar, como os Budas de lá do Afeganistão. Adorar imagem, afinal, é pecado. Destruiriam, mas para manter o ponto turístico construiriam uma Bílbia gigante e aberta com algum versículo bíblico que pareça justificar a violência cometida por eles.
As universidades e escolas, lugares de produção deconhecimento, como iriam conduzir essa produção quando ela esbarrasse em algo que contrariasse uma "verdade" bíblica?
Uma coisa é certa: Darwin com suas teorias evolucionistas seria proibido de ser ensinado. Ensinariam a criação literal do Gênis bíblico: Adão e Eva. Aliás, toda produção de conhecimento estaria altamente comprometida já que, é um pensamento comum entre esses evangélicos que muito conhecimento torna o indivíduo soberbo, auto-suficiente e o afasta de Deus
Tais fatos, embora hipotéticos - e esperamos pouco prováveis que um dia se tornem reais - deve, no mínimo, servir-nos de reflexão para algo que nos é bem real e está aí. Presente de forma aguerrida junto às classes populares, às regiões pobres, bolsões de miséria, essas igrejas trazem alento, esperança a essas pessoas, o que não é de forma alguma condenável, pois a priori a religião tem essa função, mas o que se torna preocupante é a capacidade que elas têm de tirar a possibilidade de reflexão, de encerrar as pessoas num mundo deculpa, onde o simples ato de sambar, de mexer o corpo ao ritmo damaior expressão da nossa cultura é considerado atitude condenatória,demoníaca, fator capaz de fazer seu Deus virar-lhe as costas.
Visões distorcidas da realidade, formas pouco evoluídas de ver o mundo e que vão minando a base de uma sociedade, escravizandoos indivíduos num mundo mágico, da intolerância, onde o que não é igual a mim, é menos do que eu, está do outro lado, faz a vontade domal.
Visões como essa significam retrocessos e precisamos estar atentos, conscientes para denunciá-los enquanto é tempo, para queeles nunca calem a nossa voz.
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