Ao falar sobre Educação, Paulo Freire partia de um pressuposto segundo o qual “não há docência sem discência”, pois “quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender.”
O centenário de Paulo Freire, o Patrono da educação brasileira
por Rômulo de Andrade Moreira[1]
Hoje, dia 19 de setembro, Paulo Freire, o Patrono da Educação Brasileira, se estivesse vivo, completaria 100 anos. No último dia 16, a 27ª. Vara Federal do Rio de Janeiro proibiu o governo federal de praticar qualquer ato institucional atentatório à dignidade do professor Paulo Freire, deferindo liminarmente um pedido do Movimento Nacional de Direitos Humanos.
Na ação judicial, argumentou-se “que o contexto que envolve a presente ação apoia-se em movimentos desqualificadores dos agentes do Governo Federal contra Paulo Freire, com falas ofensivas e em contraposição ao pedagogo ser Patrono da Educação brasileira, desde 2012, por meio da Lei Federal nº 12.612, mas que recebe ofensivas e injustificadas críticas do governo federal e que tais manifestações não só se opõe à figura de Paulo Freire enquanto educador e patrono da educação, como aos projetos e programações a ele vinculados.”
No pedido inicial, lembra-se “que em 2019, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Nível Superior (Capes) alterou a plataforma criada para os professores buscarem cursos de aperfeiçoamento profissional e retirou a homenagem ao educador Paulo Freire do nome – a Plataforma Freire passou a se chamar Plataforma da Educação Básica.”
Também faz-se referência ao fato de que “o Presidente da República também já defendeu, em seu plano de governo, expurgar a filosofia freiriana das escolas e o mentor intelectual do presidente, o ideólogo de direita Olavo de Carvalho, também ataca o legado de Freire.”
Relata, ainda, “que a metodologia de Paulo Freire vem sendo criticada por integrantes do governo federal, que atribuem a ela o baixo desempenho escolar do país em detrimento a maiores investimentos no setor e na formação continuada de professores, afirmando arbitrária e publicamente que irá mudar o patrono da Educação brasileira, título conferido por lei, sancionada pela então Presidente Dilma Rousseff e vigente até os dias atuais.”
Por fim, acrescenta “que as manifestações são dadas por pessoas que desconhecem por completo a obra e o legado de Paulo Freire e se articulam para retirar-lhe o título de Patrono da Educação Brasileira, por meio de medida revogatória no Congresso Nacional, apesar da proximidade do centenário de Paulo Freire e todo seu legado deixado”, sustentando “que negar direitos como memória, cultura e educação é nocivo para o desenvolvimento do princípio democrático e da igualdade, além de negar as figuras e símbolos que esses o representam, e, para tal, não há exemplo ou paradigma melhor que Paulo Freire.”
Em sua decisão liminar, a Juíza Federal Geraldine Vital afirmou que “Paulo Freire esteve à frente de políticas como o Programa Nacional de Alfabetização e a Educação de Jovens e Adultos e influenciou no movimento denominado pedagogia critica. No ano de 2021, comemora-se o centenário de nascimento de Paulo Freire para o qual seguem-se eventos de naturezas diversas. Põe-se em evidência e em debate a atualidade das ideias de Paulo Freire para a educação, movimentos populares, movimentos culturais, além dos saberes políticos e pedagógicos que fundamentam suas obras e as práxis por ele produzidas. Dentre os direitos expressos na Constituição Federal, a liberdade de expressão constitui direito fundamental, pois sua garantia é essencial para a dignidade do indivíduo e para a estrutura democrática do Estado Brasileiro.”
Segundo ela, “as liberdades comunicativas viabilizam a participação política da população e tornam possível a interação social no que concerne à cultura, à economia, à religião e à educação. Assim, tem-se pela relevância do direito fundamental de liberdade de expressão na busca pela concretização dos princípios da dignidade da pessoa humana e do Estado Democrático de Direito, sendo livre a expressão de atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença, como garantido no art. 5º, IX, da Constituição Federal.”
No entanto, conforme outro trecho da decisão monocrática, “da liberdade de manifestação do pensamento e de informação, decorre responsabilidade de cada um pelos abusos que cometera formação da opinião pública deve ser caracterizada pela pluralidade de expressão de diferentes setores da sociedade, inclusive das minorias, donde resultar a proteção ao direito da personalidade. São garantidas liberdades, mas não sem limites, notadamente as advindas do poder público que venham a distorcer os princípio e garantias insculpidos na Constituição Federal. Quando há abuso de direito pela expressão que ameace a dignidade, tem-se violação capaz de liquidar a finalidade da garantia constitucional, desfigurando-a. No caso concreto, reconheço que há perigo de dano em não se observar o reconhecido por meio da Lei nº 12.612/12 em torno da figura do Patrono da Educação Brasileira, minimamente enquanto estiver em vigor.”
Por fim, “por evidenciada a urgência contemporânea à propositura da ação, aliado ao perigo de dano e risco ao resultado útil do processo”, a magistrada determinou “que a União Federal, e quem a represente a qualquer título, abstenha-se de praticar qualquer ato institucional atentatório a dignidade do Professor Paulo Freire na condição de Patrono da Educação Brasileira.”[2]
A decisão da Justiça Federal foi corretíssima, e muito oportuna, pois Paulo Freire é, sem quaisquer dúvidas (e o mundo sabe disso e o reverencia há décadas), uma das três maiores referências no estudo e no desenvolvimento da Educação no Brasil, ao lado de Anísio Teixeira e Darci Ribeiro.
Aliás, “a influência de Paulo Freire na Alemanha é muito grande. Ele é visto como um dos grandes nomes da pedagogia, ao lado de Immanuel Kant, Jean-Jacques Rousseau, Rudolf Steiner e Maria Montessori. Ainda hoje os livros dele são muito usados em universidades, há inúmeros trabalhos universitários que utilizam as obras dele“, segundo afirma o Professor Heinz-Peter Gerhardt, Doutor em Educação pela Universidade de Frankfurt e Professor visitante da Universidade Católica de Macao, na China.[3]
Dentre as suas inúmeras obras, destaco as minhas preferidas: “Pedagogia da Autonomia”, “Pedagogia do Oprimido” e “À sombra desta Mangueira”, além de um “livro falado” – “O Caminho se faz Caminhando: Conversas sobre Educação e Mudança Social”, transcrição de um longo e proveitoso diálogo entre Paulo Freire e Myles Horton, educador americano, co-fundador, em 1932, da Highlander Folk School e militante no Movimento de Direitos Civis, figura que influenciou, dentre outros, Martin Luther King.
O segundo referido, a “Pedagogia do Oprimido”, é o único livro brasileiro a aparecer na lista dos 100 títulos mais pedidos pelas universidades de língua inglesa, consideradas pelo projeto Open Syllabus.[4]
Ao falar sobre Educação, Paulo Freire partia de um pressuposto segundo o qual “não há docência sem discência”, pois “quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender.” Para ele, ensinar não poderia ser uma mera transferência de conhecimento, mas, muito mais, uma criação de “possibilidades para a sua produção ou a sua construção.”
Freire não via o aluno/educando/aluna/educanda como um mero objeto do conhecimento do educador/educadora, sendo este apenas o sujeito do processo: um que é formado (e tomado por objeto), outro que forma (o sujeito). Ao contrário, esta relação não era de subordinação, mas de coordenação, devendo ficar claro “que, embora diferentes entre si, quem forma se forma e re-forma ao formar e quem é formado forma-se e forma ao ser formado.”
Logo, docente e discente são, ambos, sujeitos do mesmo processo de conhecimento, não sendo um objeto do outro: “ensinar inexiste sem aprender e vice-versa e foi aprendendo socialmente que, historicamente, homens e mulheres descobriram que era possível ensinar.” Paulo condenava o que ele chamava de “ensino bancário” em que “o saber é uma doação dos que se julgam sábios aos que julgam nada saber.”
O ensino bancário, burocratizado, autoritário, insensível, acrítico, é típico de uma “ideologia da opressão”, em que o (a) educador (a) “será sempre o que sabe, enquanto os educandos serão sempre os que não sabem”, negando, por conseguinte, “a educação e o conhecimento como processos de busca.” Algo muito parecido com a tal ideia da “escola sem partido”, inconcebível com o fato de que “ninguém pode estar no mundo, com o mundo e com os outros de forma neutra.”
Portanto, trata-se de uma estupidez!, pensar em um espaço pedagógico neutro, “como se a maneira humana de estar no mundo fosse ou pudesse ser uma maneira neutra.” A concepção da chamada escola sem partido, desde um ponto de vista “dos interesses dominantes”, exige “uma prática imobilizadora e ocultadora de verdades.” Freire falava na “politicidade da educação, ou seja, a qualidade de ser política, inerente à sua natureza.”
Freire pregava a educação “problematizadora e libertadora”, na qual o (a) educador (a) é, antes de tudo, um “humanista, revolucionário”, crente não em seu saber absoluto e onipotente, mas, ao contrário, crente nos homens e “no seu poder criador”, sendo um verdadeiro “companheiro dos educandos, em suas relações com estes.” Na Educação bancária revela-se a natureza opressora do ensino e do ensinar, obstaculizando “a atuação dos homens como sujeitos de sua ação, como seres de opção, frustrando-os.”
Já na Educação problematizadora, respeita-se, sobretudo, a autonomia e a dignidade do (a) educando (a), privilegiando a crítica e o diálogo. Este respeito erige-se como um “verdadeiro imperativo ético e não um favor que podemos ou não conceder uns aos outros.” O espaço da escola, portanto, é, especialmente, um espaço de crítica e de diálogo permanente e dinâmico, “prática fundamental à natureza humana e à democracia”, uma verdadeira “exigência epistemológica.”
Aqui, e não lá, incentiva-se durante todo o processo educador a criatividade, a rebeldia, a insubmissão e a curiosidade (não a “curiosidade ingênua – que caracteriza o senso comum”, mas a “epistemológica”). A (o) educanda (o) deve ser estimulada (o) constantemente a exercer a “sua capacidade de arriscar-se, de aventurar-se”, imunizando-a (o), assim, “contra o poder apassivador do ´bancarismo`.”
O aprender e o ensinar são tarefas que exigem este dinamismo decorrente do aprender e do ensinar com uma visão crítica e sempre reflexiva. Não há espaço para meros “depositantes” de conhecimentos e, consequentemente, de “depositários” de saberes. O espaço onde alguém ensina (aprendendo) e outro aprende (ensinando) deve ser libertador, não alienante, mas uma libertação autêntica: “não é uma palavra a mais, oca, mitificante. É práxis, que implica a ação e a reflexão dos homens sobre o mundo para transformá-lo.” Não se trata de uma liberdade sem limite, óbvio que não!, pois “não é possível autoridade sem liberdade e esta sem aquela.”
Na Educação problematizadora educadores e educandos devem, todos!, ser “instigadores, inquietos, rigorosamente curiosos, humildes e persistentes.” “Um aventureiro responsável”! Aqui, a professora ou o professor não confunde autoridade com autoritarismo, liberdade com licenciosidade. A autoridade mostra-se na “segurança que se expressa na firmeza com que atua, com que decide, com que respeita as liberdades, com que discute suas próprias posições, com que aceita rever-se.”
No diálogo com Myles, transcrito para o livro acima referido, o educador americano afirma que usava as “perguntas mais do que qualquer outra coisa”, pois “a razão pela qual você fez a pergunta é porque você sabe algo.” Assim, o ativista americano “redescobriu o que sabia há muito tempo, ou seja, que uma das melhores maneiras de educar é fazer perguntas”, o que “não é praticado muito extensivamente na vida acadêmica.”
Uma outra grande e valiosa lição de Freire é a que afirma tratar-se o ser humano de um sujeito inacabado e inconcluso. Aliás, “o inacabamento do ser ou sua inconclusão é próprio da experiência vital. Onde há vida há inacabamento.” O ser humano, enquanto ser inacabado, rejeita a “inexorabilidade do futuro” e o determinismo fatalista típico do discurso neoliberal: “pragmático e reacionário.”
Também a esperança não foi omitida dos textos de Paulo Freire, para quem aquela “faz parte da natureza humana”, razão pela qual devemos sempre lutar para “diminuir as razões objetivas para a desesperança que nos imobiliza.” Ele não concebia, e achava mesmo uma contradição, “que uma pessoa progressista, que não teme a novidade, que se sente mal com as injustiças, que se ofende com as discriminações, que se bate pela decência, que luta contra a impunidade, que recusa o fatalismo cínico e imobilizante, não seja criticamente esperançosa.”
Paulo Freire era um democrata, na acepção mais clara da palavra. Um homem que pregava o diálogo, inclusive, e principalmente, na sala de aula. Um sujeito que se indignava com a miséria e com a pobreza; era solidário, empático e afável, e detestava o autoritarismo, razão pela qual foi perseguido e preso pela ditadura militar. Abominava a tortura e os torturadores. Enfim…, muita coisa ainda haveria para se dizer sobre a genialidade de Paulo Freire, um educador que se negava, tal como Simone de Beauvoir, a “arrastar consigo, para a morte, a humanidade inteira.” Não se tratava de um educador burguês que profetizava “o naufrágio universal.” Seu pensamento não era, portanto, como se referia Beauvoir, “catastrófico e vazio.”[5]
[1] Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia e Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador – UNIFACS.
[2] Leia aqui o inteiro teor da decisão: https://pt.scribd.com/document/525758631/510006087236-eproc#download&from_embed. Acesso em 19 de setembro de 2021.
[3]https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/deutschewelle/2019/04/26/metodo-paulo-freire-e-utilizado-para-integracao-de-refugiados-na-alemanha.htm, acessado em 06 de agosto de 2019.
[4]http://g1.globo.com/educacao/noticia/2016/02/so-um-livro-brasileiro-entra-no-top-100-de-universidades-de-lingua-inglesa.html, acessado em 17 de fevereiro de 2016.
[5] BEAUVOIR, Simone. O Pensamento de Direita, Hoje. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1972, p. 112.
Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN
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