Raimundo Faoro observou bem que os políticos brasileiros formavam um estamento político. Mas falhou ao não perceber que a burocracia e os profissionais também tinham um caráter estamental.
Os Donos do Poder: Coesão Estamental e Dominação de Elites no Brasil
por Jorge Alexandre Neves
Entre tapas e beijos, as diferentes frações da elite brasileira costumam convergir para a manutenção de um sistema longevo e eficiente de dominação política e reprodução intergeracional das desigualdades socioeconômicas. Sempre em busca do seu mundo dos sonhos, qual seja, uma democracia sem povo, como brilhantemente pontuou o saudoso Raimundo Faoro. O mesmo Faoro que errou ao afirmar no final do seu famoso livro “Os Donos do Poder”: “(No Brasil)… Não impera a burocracia, a camada profissional que assegura o funcionamento do governo e da administração, mas o estamento político. A burocracia, como burocracia, é um aparelhamento neutro, em qualquer tipo de Estado, ou sob qualquer forma de poder” (grifo meu). Nem o próprio Max Weber acreditava na neutralidade política da burocracia, o que vai explicitar em seu extraordinário ensaio “Parlamentarismo e Governo numa Alemanha Reconstruída”, no qual identifica no conflito entre o poder burocrático e o poder democrático a raiz da fragilidade da República de Weimar. O equívoco (uma grande ingenuidade, na verdade) de Faoro torna-se ainda mais impressionante quando observamos o caráter claramente estamental da burocracia e dos profissionais brasileiros.
Embora tenha rejeitado o uso do conceito de “estamento”, José Murilo de Carvalho, no seu igualmente famoso livro “A Construção da Ordem”, faz o que me parece uma descrição bastante adequada de um estamento burocrático, ao afirmar:
“Os juristas e magistrados exerciam um papel de maior importância na política e na administração portuguesa e posteriormente na brasileira”. (…) Quanto mais homogênea uma elite, maiores suas condições de agir politicamente com eficácia. (…) A homogeneidade ideológica e o treinamento seriam características marcantes da elite política portuguesa, criatura e criadora do Estado absolutista. Uma das políticas dessa elite seria reproduzir na colônia uma outra elite feita à sua imagem e semelhança. A elite brasileira, particularmente da primeira metade do século XIX, teria treinamento em Coimbra, concentrado na formação jurídica, e seria, em sua grande maioria, parte do funcionalismo público, especialmente da magistratura e do Exército. Essa transposição de um grupo dirigente teria talvez maior importância que a transposição da própria Corte portuguesa e foi fenômeno único na América”.
Edmundo Campos Coelho, em seu livro “As Profissões Imperiais”, também sem fazer uso do conceito de estamento, vai dizer sobre as elites profissionais brasileiras que: “É difícil não se deixar impressionar pela permanente disposição de nossos profissionais para o despotismo. (…) São histórias de elites saturadas de valores excludentes, antidemocráticos, antipovo”.
No mesmo ensaio referido acima, Max Weber vai dizer que em qualquer sociedade moderna quem governa é a burocracia, civil e militar (1). Esta era, para ele, uma classe social, com interesses comuns e forte capacidade de ação coletiva. Como tal, seria uma classe que faria parte da elite nas sociedades modernas. No Brasil, contudo, a burocracia e os profissionais em geral não formam uma classe, mas um estamento. Elementos socioculturais de status são mais relevantes para o estamento do que os fundamentos econômicos que definem as classes sociais. Da mesma forma, como ressalta Francis Fukuyama, em seu livro “A Origem da Ordem Política”, conflitos de status são sempre jogos de soma zero e, assim, tendem a ser muito mais rígidos e de difícil solução do que conflitos de classe, pois o status – ao contrário da renda ou da riqueza – é uma variável totalmente inelástica. O crescimento econômico acelerado, por exemplo, torna possível a redução dos custos do enfrentamento de conflitos de classe, mas não tem qualquer relevância para a superação dos conflitos de status. Afinal, não há como alguém ganhar status sem que outro perca.
Raimundo Faoro observou bem que os políticos brasileiros formavam um estamento político. Mas falhou ao não perceber que a burocracia e os profissionais também tinham um caráter estamental. Assim, pode-se dizer que o Brasil tem quatro grupos estamentais que convivem (com conflitos frequentes, sem dúvida) encrustados no Estado: o militar, o jurídico, o profissional (2) e o político. Os três primeiros são formados pela burocracia e o último pelos políticos propriamente ditos.
Os conflitos entre esses grupos estamentais são constantes, no Brasil. Em particular entre os três primeiros segmentos, que têm poder burocrático, e o último, detentor do poder democrático. Quando o poder burocrático se impõe sobre o poder democrático, o autoritarismo se estabelece. Em 1964, esse fenômeno foi observado a partir da liderança do estamento militar. Todavia, não demorou muito para os demais segmentos estamentais aderirem ao golpe de Estado. Mais recentemente, o estamento jurídico conseguiu dar início a um novo golpe de Estado, a partir da gravação ilegal e divulgação da conversa entre a então presidenta Dilma Rousseff e o ex-presidente Lula, no dia 13 de março de 2016. Entre conflitos e aproximações, os demais segmentos estamentais têm colaborado com a continuidade do golpe. O estamento militar aderiu formalmente ao golpe no dia 03 de abril de 2018, através da mensagem de Twitter do Gal. Villas Boas. O núcleo do estamento político, que já havia aderido ao golpe ao perpetrar o impeachment da presidenta Dilma, foi jogado para a periferia do poder com a eleição de Jair Bolsonaro, na qual não tinha apostado suas fichas. O que estamos assistindo neste momento, com a ida do senador Ciro Nogueira para a chefia da Casa Civil da Presidência da República, é a unificação dos diferentes segmentos do estamento para formar uma coalização de poder como não se via desde a ditadura militar. Os donos do poder político se acertaram como não faziam há muito tempo. E como o Plano A – a reeleição do presidente Bolsonaro – tem grande probabilidade de não dar certo e o Plano B (que é o preferido de uma parte da elite) – a chamada terceira via – não consegue sequer iniciar uma decolagem, já vislumbram um Plano C, com a proposição do chamado semipresidencialismo (3). Vale tudo na busca pelo Nirvana da elite brasileira, mais uma vez, “uma democracia sem povo”. Lula não pode vencer! De uma forma ou de outra, quase toda a elite brasileira hoje está pensando em uma forma de impedir que Lula volte a governar o país.
Portanto, não passa de uma interpretação ingênua acreditar que o chamado “centrão” está desalojando o estamento militar do poder. O que estamos assistindo é mais do que nunca o “centrão” fazendo o papel de “arenão”, como bem apelidado pelo Jornalista José Roberto de Toledo (embora este pareça acreditar na balela de que o estamento militar está sendo alijado do poder). É a história se repetindo como farsa, lembrando o velho barbudo. Assim como a ARENA ajudou a ditadura militar a dar seus vários golpes dentro do golpe, como o AI-5 e o Pacote de Abril, o “centrão” ajuda Jair Bolsonaro a ficar no poder e, assim, ter tempo de preparar seu golpe miliciano/militar. Dará certo? Provavelmente, não. Mas terá um custo extremamente alto para o Brasil, que demorará muito tempo pra ser superado (4).
Para complementar a coalizão de elites que mantém uma forte coesão política na busca do objetivo de uma “democracia sem povo”, tem-se os donos do dinheiro. Para mostrar evidências de sua adesão, basta que olhemos os resultados das inúmeras pesquisas de opinião que têm sido realizadas e mostram que: a) quanto mais elevada a renda, maior a intensão de voto em Bolsonaro e menor a intensão de voto em Lula e; b) a categoria ocupacional que mais apresenta preferência por Bolsonaro é a dos “empresários”.
Ninguém é capaz realmente de dizer o que vai acontecer com o Brasil até o final de 2022. Só uma coisa é certa, não faltarão motivos para angústias e aperreios. A postura assumida pelo presidente Bolsonaro em uma nova motociata neste sábado 31 de julho, em Presidente Prudente (SP), mostra, mais uma vez, sua total determinação para o golpismo. Por seu turno, a adesão maciça de todas as frações mais poderosas da elite brasileira ao seu governo mostra que não há, hoje, obstáculos relevantes ao golpismo presidencial. Mantido este cenário, sem obstáculos, é certo que o presidente irá promover um novo golpe, só falta marcar a data. Quem viver verá!
- 1. Porém, diz Weber, em uma democracia, esta burocracia governa a partir de ditames estabelecidos pelos políticos eleitos pelo sufrágio universal.
- 2. Lembrando que, no Brasil, mesmo os profissionais que não são servidores públicos estão, em sua esmagadora maioria, vinculados ao Estado, vide que os Conselhos profissionais são autarquias federais. Talvez por isso, João Cabral de Melo Neto tenha decretado, em seu poema “Morte e Vida Severina”, sobre os chamados profissionais liberais, que estes “não se libertaram jamais”.
- 3. Como bem notou o Min. Lewandowski (https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2021/07/adocao-do-semipresidencialismo-poderia-reeditar-passado-que-muitos-prefeririam-esquecer.shtml), nada pode ser mais próximo da famosa frase de Marx no “18 de Brumário…” sobre a repetição dos fatos na história. Tem um importante jornalista político que disse recentemente que em um regime parlamentarista ou no semipresidencialismo uma figura como Jair Bolsonaro jamais chegaria ao poder. Acho que este jornalista nunca ouviu falar em Viktor Orbán ou em Adolph Hitler.
- 4. Muitos analistas têm ressaltado esses pontos, quais sejam, que o golpe bolsonarista deverá ocorrer, muito provavelmente fracassará, mas terá um custo absurdo para o país. Recomendo a entrevista de Fernando Limongi à Folha de São Paulo (https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/07/acordo-com-centrao-nao-garante-contencao-de-bolsonaro-diz-cientista-politico.shtml?pwgt=l4vbkrc1ae4e8hm71277wk8iwzhqwwi3j43c8lu5srpupzia&utm_source=whatsapp&utm_medium=social&utm_campaign=compwagift).
Jorge Alexandre Barbosa Neves – Ph.D, University of Wisconsin – Madison, 1997. Pesquisador PQ do CNPq. Pesquisador Visitante University of Texas – Austin. Professor Titular do Departamento de Sociologia – UFMG – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN
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