Novela Gênesis, inspirada no Antigo Testamento, provavelmente não mostrará a história de Tamar, mulher que ousou se insurgir contra a cultura patriarcal. Mas suas engenhosas estratégias podem, ainda hoje, inspirar lutas contra a opressão
Publicado 12/03/2021 às 18:17 - Atualizado 12/03/2021 às 19:02
A novela Gênesis, da Rede Record, é assistida por milhões de pessoas todas as noites. Não apenas ela, como as suas antecessoras com temática bíblica conseguiram uma grande audiência ao mesclarem as histórias do livro seminal para judeus e cristãos com um toque ficcional. É importante lembrar que a Bíblia foi utilizada para manter os invasores europeus no poder por séculos e justificar os genocídios indígena e negro. Apenas com a Teologia da Libertação e a interpretação da sua narrativa pelo viés histórico foi possível ver as razões políticas e econômicas sem as manipulações argumentativas do passado. Infelizmente, esta corrente teológica vem sendo bombardeada pelas forças conservadoras religiosas e seus aliados há décadas e o resultado todos estamos testemunhando neste momento político do Brasil. Não imagino a novela Gênesis, ou qualquer outra desta mesma linha, se valendo da Teologia da Libertação para mostrar nas telas como algumas personagens bíblicas a exemplo de mulheres como Tamar, Rute, Ester ou Débora, utilizaram estratégias para vencer o opressor e ajudar um povo oprimido a vencer os inimigos. Veja-se o caso da primeira mulher que citei e a sua luta para ter os seus direitos garantidos.
É possível que você saiba que existe uma figura bíblica no Antigo Testamento chamada Tamar, mas não exatamente o que aconteceu com ela. É bem provável que a leitura sobre Tamar não tenha sido feita nas celebrações religiosas que você frequentou, ou tenha sido feita de forma fragmentada e isso teria uma razão: a subversão moral e econômica exemplificada pela sua coragem para se livrar da condição de oprimida imposta pelo pela sociedade patriarcal em que vivia. Para os que querem conhecer a história de Tamar, recomendo a leitura do capítulo 38 do livro de Gênesis, o que não levará muito tempo. De qualquer forma, segue abaixo um resumo da história desta mulher que, com a sua estratégia de luta, evitou viver oprimida por toda a vida, algo tão comum às mulheres de então e de muitas ainda hoje.
Judá escolheu a canaanita Tamar como esposa para o seu filho Her (casamentos arranjados eram parte da cultura da época por motivos religiosos ou econômicos). Her morreu antes que Tamar engravidasse, o que era problemático em uma sociedade rural que necessitava de mão de obra para o pastoreio e a agricultura e uma mulher viúva e sem filhos estava condenada à própria sorte. Judá, seguindo a Lei do Levirato1, força o seu outro filho Onã a casar com Tamar para gerar descendentes, mas este decide ejacular fora do corpo da esposa para impedir a gravidez do que seria considerado, naquela tradição, um rebento do irmão falecido e daria direito à herança para Tamar e seus filhos. Para piorar, Onã também morre. Sobra então o outro filho de Judá, o jovem Sela. Já tendo perdido dois filhos, Judá decide enganar Tamar dizendo-lhe que ela devia voltar para a casa dos pais e esperar que Sela chegasse a idade ideal para juntar-se a ela2. Na verdade, a sua intenção era não realizar o casamento por acreditar que a culpa pelas mortes dos outros dois filhos era dela e para não lhe dar direito à herança no futuro. Tamar o obedece, como era de se esperar para uma mulher em uma sociedade patriarcal. Passam-se os anos e nada de Judá providenciar o casamento de Tamar com Sela. Isso equivalia a condená-la a uma espécie de prisão domiciliar e à pobreza, já que por não ter um homem ao lado, ela teria que esconder-se em casa, pedir esmolas ou vender o corpo. Eis que Judá enviúva e algum tempo depois decide ir até as montanhas para tosquiar as ovelhas. Alguém (atentem para este fato) avisa a Tamar que o sogro passará por sua região. Ela então veste uma roupa típica para as prostitutas do seu tempo (rosto totalmente coberto), vai para a beira do caminho onde passará Judá com uma comitiva e assim consegue ver que Sela já está pronto para as bodas, percebendo que foi enganada pelo sogro. Judá vendo aquela mulher, enxerga uma oportunidade para o seu prazer sexual e a convida para um “programa”. Tamar o questiona sobre o pagamento. Sem ter como pagar pelo serviço oferecido pela falsa prostitua naquele momento, ele promete enviar um cabrito nos próximos dias, mas Tamar de forma esperta exige uma garantia de que será paga (atentem para este outro fato) e pede que ele lhe dê o anel, o cordão e o cajado e assim ele o faz. Dias depois Judá envia o cabrito para o pagamento da dívida e ela não é mais encontrada pelo seu enviado no lugar onde ele a viu. O que Judá não sabia é que aquela única relação sexual a engravidou. Três meses depois chega aos ouvidos de Judá que a nora havia se prostituído e estava grávida. Enraivecido pela desonra que julgava ter sofrido, Judá ordena que a tragam para que seja queimada viva. Ao chegar ela confirma a gravidez e diz que pode dizer a todos quem é o pai da criança que carregava no ventre. Mostra então a todos os presentes o cajado, o cordão e o anel que ganhou de Judá. Desnorteado pela esperteza da nora, Judá percebe que na verdade ele é quem tinha sido o desonesto por não casar Tamar com o seu filho, Sela, como lhe havia prometido e era parte da tradição. A narrativa não conta se Judá assumiu para a sua comunidade que ele era o pai da criança e se Tamar se casou com Sela, apenas que ela deu à lua a gêmeos tornando-se uma ancestral de Davi e de Jesus.
Eu quero chamar a atenção para algumas questões na história de Tamar, principalmente para as suas estratégias de luta como uma mulher oprimida. É bem possível que ela tenha sido taxada de amaldiçoada perante a comunidade por Judá por ter enviuvado dos seus dois filhos. Tornar a pessoa oprimida vulnerável emocionalmente é uma das primeiras estratégias do opressor. Por não pertencer ao povo hebreu e sendo uma canaanita, o que a enfraquecia ainda mais, sua situação de vulnerabilidade era maior. Esta foi a primeira estratégia de Tamar: ela não protagonizou um confronto direto, exigindo ficar morando com a família do sogro até que Sela estivesse pronto para o casamento. Em momentos em que a oprimida tem pouca força para a briga, é preciso se preservar e as vezes fingir submissão. Muitas vezes isso é necessário não porque signifique uma derrota, mas para ganhar tempo e se fortalecer para as futuras táticas de embate. Assim como a pessoa oprimida tem as suas estratégias para a libertação, o opressor também tem as dele para perpetuar o seu poder. Ao mandar Tamar de volta para a casa dos pais, a sua intenção era se desfazer da responsabilidade da partilha da herança com ela, como já mencionei. Voltar para a sua terra foi a única possibilidade para ela naquele momento, mas isso não se traduziu em ficar esperando pelo cumprimento da promessa do opressor, como veremos mais adiante.
Lembram que eu pedi para ficassem atentos ao fato de que alguém foi avisar a Tamar que o sogro passaria por suas terras? Isso mostra que Tamar não confiou na promessa do sogro e tinha aliadas observando os acontecimentos no lado do opressor. Em ocasiões de desespero é muito comum esquecer a busca por pessoas/organizações aliadas. Não dá para confiar nas promessas dos poderosos. A segunda estratégia de Tamar foi ter aliadas, pois ela sabia que isso era essencial para a luta pelos seus direitos. Se a Bíblia diz que ela viu que Sela já era um homem pronto para o casamento enquanto ele subia a montanha com o pai, é possível que alguma aliada já tivesse passado esta informação anteriormente ou então ela não teria arriscado a vida indo para a beira daquele caminho para se passar por prostituta.
Ao ser avisada sobre a ida do sogro para a montanha, ela percebeu que era o momento ideal para agir. Em um artigo sobre Tamar, Altamir C. de Andrade (2011, p. 2) comenta que saber que foi traída era o que ela precisava como alavanca para a sua ação e “É diante dessa situação que Tamar arquiteta um plano para obter um filho de Judá, seu sogro, e, desse modo, garantir a sua genealogia. Isso torna o relato bastante singular na Bíblia, inaugurando uma das mais surpreendentes estratégias de sobrevivência elaborada por uma mulher”. A terceira estratégia utilizada por Tamar foi a ação ousada de seduzir o sogro se passando por prostituta. Esta tática não foi fruto de um impulso, mas exigiu planejamento e disciplina. Ousadia não significa agir de forma despreparada e alimentada pelo ódio com a situação opressiva. Tamar provavelmente procurou vestir a roupa adequada, calculou o momento certo que Judá passaria caminhando para a montanha e, quem sabe, teve que mudar a voz para não ser reconhecida pelo sogro no momento da negociação para o pagamento do sexo. Também deve ter refletido como garantiria a derrota do sogro perante a comunidade por ele liderada com uma decisão que, embora pareça tomada de forma instantânea, foi bem calculada. Pedir aqueles objetos como garantia do pagamento com o cabrito não foi por acaso, pois eram objetos que simbolizavam poder. Segundo Andrade (2011, p. 5) “Ao invés de ser trocada por um cabrito, vem a ser possuidora de um selo (hotam), de um cinto (patîl) e de um cajado (mateh), símbolos do poder masculino.”
Tamar também faz algo que muitas vezes não é lembrado pelas pessoas oprimidas: buscar as fraquezas do opressor. Esta foi a sua quarta estratégia. Todo opressor tem um ponto fraco. É preciso analisar e esperar a ocasião apropriada para atingi-lo. Isso exige reflexão, estudo e paciência ativa (não confundir com passividade). Mesmo não pertencendo ao povo hebreu, Tamar conhecia a cultura do sogro e ela sabia que atingir a honra de Judá seria o ponto de fraqueza do seu opressor. Conhecer o inimigo requer estudo meticuloso que muitas vezes está ausente nas lutas, mas é essencial para a vitória.
Sobre Tamar, bem nos lembra o rabino Nilton Bonder (1998, p. 92) “A transgressão, imposta mais uma vez pela mulher, restabelece a possibilidade de continuidade. A lei é cumprida pela desobediência e traição.” Que a ação transgressora e vitoriosa de Tamar em busca dos seus direitos inspire as pessoas oprimidas com estratégias de luta criativas em uma sociedade patriarcal, neoliberal e, cada vez, mais desigual. Que o seu exemplo fortaleça todas as pessoas em situação de opressão, especialmente as mulheres.
Bibliografia
ANDRADE, Altamir Celio de. Exílio, deslocamento e estratégias de sobrevivência: questões literárias e culturais na narrativa bíblica de Tamar. XII Congresso Internacional da ABRALIC. UFPR – Curitiba. 18 a 22 de julho de 2011. Acessível em https://abralic.org.br/eventos/cong2011/AnaisOnline/resumos/TC0797-1.pdf
BONDER, Nilton. A alma imoral. Rio de Janeiro: Rocco. 1998.
1 “De acordo com esta antiga lei, se um homem casado viesse a morrer sem deixar filhos, seu irmão (ou parente mais próximo) deveria tomar a viúva como esposa e fazer dar à luz a descendência do primeiro marido falecido.” (BONDER, 1998, p. 91-92).
2 “Sua condição de mulher lhe confere traços de moeda de troca, sendo passada de mão em mão.” (ANDRADE, 2011, p. 2)
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