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domingo, 13 de dezembro de 2020

Sexo e Religião institucionalizada, conturbado (e violento) casamento, por Ladislau Dowbor

 

Livro de Dag Endsjo é um contundente estudo sobre o controle de nossa intimidade ao longo da história — e de como as regras sexuais tornaram-se cruciais para demonizar e perseguir grupos sociais, estratégia política central da ultradireita de hoje

Sexo e Religião: do baile de virgens ao sexo sagrado homossexual, de Dag Oistein Endsjo. Ed. Geração, São Paulo, 2014, 373 p. – ISBN 978-85-8130-229-4

Fazia muita falta uma pesquisa que tratasse de maneira sistemática e isenta a relação entre o sexo, a religião e a política. Na vida religiosa há uma dimensão individual e íntima, mas também uma dimensão social de “pertencimento” ao grupo, de identidade relativamente aos “outros” – os que não partilham da mesma crença – e um amplo espaço de uso político da sexualidade, outra dimensão íntima profundamente enraizada. Através dos sentimentos religiosos e das profundas pulsões sexuais, a política encontra instrumentos poderosos de manipulação. “Tanto os mórmons do século XIX como os fundamentalistas de hoje sentiram e sentem na pele, de diversas maneiras, a necessidade que o ser humano tem de regular a vida sexual alheia segundo a sua própria convicção religiosa”, escreve o autor. Não se trata aqui de um ataque às religiões ou de divagações sobre a sexualidade, mas sim de uma análise científica dos usos deformados dessas duas dimensões tão importantes da nossa vida.

O norueguês Dag Endso é pesquisador da Universidade de Bergen, especialista na relação entre religião e sexualidade. O livro já foi traduzido em 11 idiomas. Pesquisa muito exaustiva, bem documentada, e escrita de forma clara, sem pedantismo e sem evitar questões escabrosas. Levanta uma dimensão em grande parte irracional dos nossos comportamentos, inclusive evidenciando o seu peso na política e nas relações sociais. A mensagem, claramente, é de tolerância, mas também de denúncia. E o resultado é preencher um espaço de conhecimento muito insuficientemente trabalhado. Alguém tem dúvidas sobre o uso político desses sentimentos pelas religiões eletrônicas modernas? Em nenhum momento se trata de um ataque à espiritualidade ou aos sentimentos amorosos, mas sim de uma explicitação de como ambos têm sido apropriados nas lutas pelo controle social e o poder político. 

A questão vai muito além do cristianismo. Diz a Bíblia no Deuteronômio: “Se se encontrar um homem dormindo com uma mulher casada, todos os dois deverão morrer: o homem que dormiu com a mulher, e esta da mesma forma. ” Mas muito anterior à Bíblia, o Código de Hamurabi, igualmente escrito por inspiração divina, cerca de 1.700 anos antes de Cristo, explicita como uma mulher infiel deve sucumbir com seu amante. A busca do controle da nossa intimidade sexual se encontra nas mais variadas religiões, abrindo espaço para a discriminação. “Não devemos subestimar a segurança e a autoconfiança que resultam da possibilidade de inferiorizar outros seres humanos com base no que são e com quem fazem sexo.”

Hoje em Israel ainda se proíbe o casamento de judeus com pessoas não judias, e o hinduísmo proíbe a sexualidade entre pessoas de castas diferentes, mas com diferenças: “Homens não podem fazer sexo com mulheres de castas superiores, mas homens de castas mais altas podem fazer sexo com mulheres de castas inferiores, contanto que não se casem com elas. ” (251) O peso da sexualidade no controle interno das comunidades evangélicas, e o seu aproveitamento político são igualmente fortes, em plena era da sociedade do conhecimento. Vários países ainda condenam homossexuais à morte. É papel dos políticos interferir na intimidade dos sentimentos místicos e amorosos das pessoas e das famílias? Sem dúvida que não, mas são instrumentos políticos poderosos, como vemos no Brasil de hoje, na Turquia de Erdogan, na Polônia de Kaczynski, nos Estados Unidos e tantos outros países. É um uso oportunista tanto da sexualidade como dos sentimentos religiosos.

“Regras religiosas que definem quem pode fazer sexo com quem, sejam elas baseadas em gênero, cor, etnia, casta ou religião, têm um ponto em comum: reforçam o princípio, vital para tantas religiões, de que existem diferenças essenciais entre pessoas; reforçam a percepção de que essas diferenças são necessárias, e de que os seres humanos têm um valor vinculado à identidade que têm, ou aparentam ter. Gênero, cor da pele, etnia, casta ou religião são atributos que determinam o valor de alguém com base em uma perspectiva religiosa; regras sexuais contribuem para a manutenção desses atributos e valores. Quem quer que ouse desafiá-las não apenas causará uma ruptura dessas diferenças sagradas, mas também se excluirá desse sistema, extrapolando os limites de uma identidade que lhe é atribuída de antemão.”

A mulher costuma ser a principal vítima. “Uma pesquisa da ONU realizada no Afeganistão em 2006 mostrou, por exemplo, que cerca de metade das mulheres que estavam na prisão era sob a acusação de fazer sexo pré ou extraconjugal – mas a causa real para muitas dessas mulheres era ter sido vítima de estupro”. O Islã é a religião de quase um quarto da população mundial (1,8 bilhão de crentes). Endsjo mostra através de numerosos exemplos que a interpretação religiosa do comportamento sexual varia muito segundo os países islâmicos e suas tradições culturais, e faz-se uso dos textos religiosos de maneira diferenciada. Ou seja, a religião não é necessariamente a causa das deformações, mas sim um dos caminhos poderosos de controle da intimidade e do comportamento social e político.

A realidade evolui no mundo, e o autor mostra as mudanças em diversas religiões. “A hipótese do divórcio se tornou tão auto evidente na vida de tantos cristãos que a maioria deles nem vê problemas na condenação irrestrita que Jesus fazia a ele. A postura cristã em relação ao divórcio é, portanto, um excelente exemplo de como as proibições religiosas podem ser ignoradas por completo assim que deixam de ser relevantes para os fiéis.” (143) A distância entre o que recomendam ou proíbem as religiões e as práticas são profundas, mas a política continua a fazer amplo uso das proibições. “Somente em 2003 a Suprema Corte dos EUA invalidou as leis estaduais que proibiam o sexo oral e anal entre homens e mulheres”. (149) Obviamente os políticos fariam melhor se dedicando a construir escolas e estradas do que discutir quais posições sexuais devem ser autorizadas ou proibidas. Mas em política, apropriar-se da intimidade das pessoas funciona.  

Endsjo traz com força o argumento de que as regras religiosas constituem um vetor importante da construção de identidades, gerando o sentimento de pertencimento de que tanto precisamos, e que tanto pode excluir: “Uma regra religiosa para definir quem pode fazer sexo com quem é uma das formas mais poderosas de reforçar identidades diferentes” (248). O autor se refere a racismo sexual: “Não há dúvida de que a defesa do racismo sexual, baseada em princípios bíblicos, está viva e é extremamente resistente. ” (249) “A tendência de certos grupos de pessoas a construir e reforçar sua identidade ao perseguir e demonizar outros grupos é um conhecido fenômeno histórico e sociológico. É aqui que poderemos encontrar a rationale fundamental por trás do racismo e das perseguições religiosas, étnicas e de minorias sociais que de alguma forma discrepam da maioria… Há pessoas que se destacam e estabelecem seus objetivos somente ao demonizar e perseguir outros grupos.”

A hipocrisia que existe na aplicação das regras é impressionante, o que ajuda a entender, por exemplo, o peso histórico do racismo nos Estados Unidos. Sob pretexto de que Deus criou as raças separadas (desde Babel), proibiu-se os contatos sexuais entre elas. Mas “na prática, a proibição era voltada primeiramente ao sexo entre homens negros e mulheres brancas, e contra o reconhecimento legal de qualquer relação entre pessoas de etnias diferentes. Da mesma maneira como senhores de escravos tinham livre acesso ao corpo de suas escravas negras, homens brancos continuavam a ter assegurada a possibilidade de fazer sexo com suas empregadas domésticas. Dessa forma, a convicção religiosa e racista mostrava que não era assim tão consistente. ”

Vale a pena lembrar aqui o livro de Neil Postman, Amusing Ourselves to Death, que parte da análise dos meios de comunicação de massa para apontar a expansão da manipulação política da religião, e cita uma declaração de Billy Graham, personagem importante do showbusiness religioso: “A televisão é a ferramenta mais poderosa de comunicação já criada pelo homem. Cada um dos meus programas ‘especiais’ em horário nobre é divulgado por quase 300 estações através dos Estados Unidos e do Canadá, de forma que num único programa minha pregação atinge milhões mais do que Cristo na sua vida inteira. ” (Postman, 118). Isto era em 1983. Hoje temos muito mais TV, e temos as mídias sociais, a comunicação direcionada, a invasão da privacidade e tantas formas mais sofisticadas de manipulação.

A manipulação dos sentimentos pode ser muito lucrativa. A Forbes americana, que estuda a formação de fortunas no mundo, apresenta na sua lista de bilionários brasileiros o Edir Macedo, que ostentava em 2019 uma fortuna de 1,41 bilhão de reais. Se parasse de ganhar dinheiro e gastasse um milhão de reais por ano, levaria 1400 anos para gastar esta fortuna. E essa indústria já elege os seus políticos. (Forbes, 2020, p. 110) Na era da comunicação total e individualizada, as deformações podem atingir um patamar muito mais elevado.

E há o reverso da medalha. Em plena pandemia, em novembro de 2020, a iniciativa Economia de Francisco permitiu que milhares de jovens de mais de uma centena de países passassem três dias debatendo novos rumos para o planeta, uma outra economia, questões ambientais e de desigualdade, num processo de construção do bem comum, criando pontes entre diversas religiões, buscando novos rumos de tolerância e convívio. A igreja da libertação teve imensos impactos positivos de conscientização. Nas mais variadas religiões vemos emergir com força o resgate da espiritualidade como caminho para um mundo mais civilizado.

De toda forma, termos acesso a um estudo em profundidade de como o uso político e comercial da nossa intimidade espiritual e amorosa se manifesta nas diversas religiões e em diversas épocas, nos ajuda a entender as dinâmicas sociais e políticas no sentido mais amplo. O tema tem sido muito subestimado, inclusive ridicularizado, ou evitado pela dimensão polêmica. Endso enfrenta o desafio de maneira séria e competente, apresentando os dados, evitando as simplificações ideológicas. E o livro é muito bem escrito e traduzido, leitura que flui. Sobretudo, ajuda a entender que a política e a luta pelo poder constituem processos que vão muito além da racionalidade.



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