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quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

Crônica de um Natal que ainda vai voltar, por Luis Nassif

 

Passada a grande noite do pesadelo, em um ponto qualquer do futuro haverá um reencontro no Natal brasileiro. Há de cair a ficha do país

Publicado originalmente em 25.12.2019

Minha família, pelo menos o círculo mais próximo, não pratica o discurso de ódio. Temos algumas diferenças, nenhuma no plano moral. Antes, julgava ser um padrão normal de família classe média brasileira. Hoje em dia, agradeço a Deus pelo presente. Tias, irmãs, filhos, netos, primos próximos, todos preservam os princípios morais dentro dos quais fomos educados.

Há dissidências em algumas tias e primos mais afastados, mas educação suficiente para não externar as divergências em reuniões familiares.

O que me aflige, no contato com os bolsominions, é justamente o plano moral. Apoiar uma pessoa intrinsicamente imoral, como Jair Bolsonaro, é prova de falha de caráter.  É compactuar com a imoralidade.

E, olhe, jamais dividi as pessoas em bons e maus, de acordo com suas inclinações políticas. Mais que tolerância, sempre tive profundo interesse pela divergência. É a divergência que traz novas informações, permite reavaliar posições, de tal maneira que, no final da polêmica, os dois lados saem mais sábios.

Aliás, foi isso que me ensinou minha caçula Dodó quando, com 16 anos, saiu de um grupo de feministas maduras, que a utilizavam para desconstruir artigos contrários. Deixou de lado um fã clube de amigas adultas, que a cobriam de likes, por discordar da polêmica como instrumento de guerra contra o inimigo.

Da neta Cacá, com pouco mais de 10 anos, ouvi a seguinte indagação:

– Vovô, você fala para não termos preconceito contra ninguém. Mas posso ter preconceito contra o preconceituoso?

Foi autorizada.

Neste Natal, nos dividiremos entre as várias famílias, os Nassif propriamente ditos, os Sarraf, do lado de minha mãe, os Mesquitas, do lado das tias Nassif, que encontrarei em Poços de Caldas, os Aguirre, de sobrinhos do primeiro casamento, vários grupos familiares que se encontraram ao longo da minha vida, se juntaram e se tornaram uma comunidade única, porque compartilhando os mesmos valores da tolerância e da celebração da alma brasileira. Enfim, uma autêntica família brasileira, de descendentes de libaneses, sírios, italianos, portugueses, brasileiros, caipiras brasileiros, mas, acima de tudo, brasileiros.

Ao meu lado, a companheira Eugênia, que me ganhou no primeiro encontro, ao ver o plástico na traseira de seu automóvel: “Guaranésia, orgulho de sua gente”.

Mas o que fizeram com o interior, o que fizeram com a classe média, o que fizeram com o Brasil? Depois do Natal, sigo para Poços de Caldas e não sei o que irei encontrar. Não perdôo Sérgio Peru de ter se tornado um bolsonarista e espero nem vê-lo por perto quando chegar em Poços.

E não é pelas posições políticas, é pela imoralidade de apoiar um imoral.

Em outros tempos, meu avô Issa, udenista dos carrancudos, era amigo do Sebastião Trindade, comunista e eletricista, que tinha uma rotina semanal de visitar minha avó Marta, igrejeira convicta, para conversar sobre santos.

Havia momentos de raiva, sim. Pelo que me contou a vó Marta, meu avô comandou uma campanha inclemente contra o Dr. Martinho, candidato a prefeito, que além de santo era o melhor amigo do meu pai, e padrinho da minha irmã Inês. Ninguém se torna amigo de Carlos Lacerda sem sequelas.

A reação veio das amigas de Igreja da vó Marta, que fizeram uma vaquinha para colocar um anuncio no Diário de Poços, com críticas ao meu avô e defesa do dr. Martinho.

– E a senhora, como ficou nessa, vó?, indaguei dela.

– Ah, meu neto, eu tinha um dinheirinho guardado e ajudei na vaquinha.

Eram tempos em que as mulheres comandavam silenciosas revoluções familiares contra a agressividade dos maridos. E hoje, quando as próprias esposas, donas de casa, estão impregnadas do ódio secular, que emergiu das cavernas do bolsonarismo e invadiu os mais recônditos recantos familiares, todas as revanches contra a vida forjadas no exercício diuturno do ódio?

A companheira se desiludiu com Guaranésia quando uma sobrinha querida, frequentadora de missas dominicais, afirmou que queria ver Lula morto. Como pode alguém desejar a morte de outro, com essa facilidade? Como pode alguém que se pretende religioso defender a morte de alguém?

Um dos capítulos que mais me chocou, nesses tempos de ódio, foi certa vez, no Rio de Janeiro, passando em frente ao apartamento de Sérgio Cabral Filho. A esposa conseguira uma prisão domiciliar, para cuidar do filho, que tinha menos de 10 anos. Em frente da casa, urubus e gralhas berrando com violência imprecações para que a criança ouvisse. Algumas das gralhas certamente eram mães de família. Mas incapazes de se condoer, nem digo com a esposa de Cabral, mas com o filho.

O país emergiu das profundezas das senzalas, dos porões, das salas de tortura e passou a celebrar publicamente o pau-de-arara, a cadeira do Dragão, empalamentos, pimentinha, o pentatol sódico, os estupros e todo o conjunto de práticas dos porões, que está na base da formação da família Bolsonaro.

Mesmo assim, não passarão. Passada a grande noite do pesadelo, em um ponto qualquer do futuro haverá um reencontro no Natal brasileiro. Há de cair a ficha do país. Em consideração aos laços familiares, os imbecis, imorais, ignorantes não serão cobrados por esses tempos de insânia e bestialidade.

Todos lembrarão os antepassados, os momentos felizes em que o lado civilizado do país aproveitava o Natal para reencontros, reconciliações, celebrações.

E cantaremos as canções natalinas, que ajudaram a construir a alma de um país que eu quero de volta.


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