A igreja se tornou ‘uma instituição social que por acaso é religiosa’, afirma reverenda norte-americana
Kelly Brown Douglas fala do papel da religião em tempos de Trump e Bolsonaro e comenta movimento de fiéis que deixam igrejas: ‘Jesus estaria com eles’.
Foto: Cecília Olliveira/The Intercept Brasil
UM NÚMERO SIGNIFICATIVO de americanos se dizem “espiritualizados, mas não religiosos”, segundo um estudo recente do Pew Research Center, um dos mais importantes centros de pesquisa dos EUA. Quatro em cada dez pessoas com idade entre 30 e 49 anos se definem assim. Apesar de não termos uma pesquisa equivalente no Brasil, por aqui também é possível observar um crescimento no número de ‘desigrejados’, pessoas que deixam de frequentar esse tipo de instituição – em grande parte, pela diferença entre o que é pregado e a realidade concreta de suas vidas.
Para entender essa situação – e o papel das lideranças religiosas no Brasil, onde 40% dos evangélicos votaram em um católico que se batizou no Rio Jordão e usa kipá–, conversei em Nova York com a decana da principal universidade de Teologia dos EUA. No entendimento da reverenda Kelly Brown Douglas, embora cada um tenha seus motivos para ir à igreja – ou sair dela –, o fato de muitos religiosos se aliarem a pessoas que defendem ideias claramente opostas às suas crenças e interpretações da Bíblia faz a igreja se tornar uma “instituição social que por acaso é religiosa”.
“‘Ser igreja’ não é tentar proteger uma instituição religiosa, é um movimento no mundo em direção ao que gosto de chamar de ‘uma terra de justiça’”, afirma Brown Douglas. A reverenda lembra a luta de Martin Luther King pelos direitos civis dos negros nos anos 1950 e diz que o risco das congregações optarem por permanecerem caladas frente aos absurdos perpetrados por governantes como Trump e Bolsonaro, em especial contra os mais pobres, é serem relegadas à irrelevância. Se a igreja não lutar, “não encontrando consolo até que haja justiça para todos”, diz ela, “eu me juntarei às pessoas que estão indo embora. Elas são críticas, e precisamos estar onde elas estão.”
Confira os principais trechos da entrevista.
Intercept – Nos EUA – e também no Brasil–, tem crescido o número de pessoas que estão abandonando ou mudando de igreja. O que leva a esse movimento?
Kelly Brown Douglas – O que vejo nesse crescente grupo de pessoas que se dizem “espiritualizadas, mas não religiosas” é que não é que elas não tenham uma conexão com algo maior, que muitos de nós chamamos de Deus, ou que não tenham um senso de fé, como se queira definir. A questão é que elas perderam a confiança ou a fé na religião institucionalizada, nas igrejas e em outras instituições religiosas, que elas não consideram sensíveis às suas necessidades, questões e dificuldades, à vida terrena como ela é.
Jesus foi crucificado por afrontar poder político e religioso.
Assim, esse afastamento da religião não é um afastamento da espiritualidade ou das religiões, é um afastamento das instituições religiosas, das igrejas. E isso é um chamado para que as igrejas, como costumo dizer, “sejam igreja”. “Ser igreja” não é tentar proteger uma instituição religiosa, é um movimento no mundo em direção ao que gosto de chamar de “uma terra de justiça”, ou na direção de onde Deus nos chama a uma forma mais justa de viver. Na medida em que as igrejas se preocupam em proteger um prédio ou uma instituição, elas perdem o que as caracteriza e se transformam em uma instituição social que por acaso é religiosa.
Algumas vezes você vê outras pessoas que foram alienadas pela igreja. Isso precisa compelir a igreja a fazer uma autocrítica. Não é culpa delas [das pessoas] que não estejam na igreja, é nossa culpa que a igreja não esteja onde elas estão. A pergunta, portanto, não é o que há de errado com elas, é o que há de errado conosco. É uma resposta bem longa à sua pergunta, mas penso que o movimento de pessoas abandonando a igreja é um reflexo de onde não temos chegado como igreja. E acho que a pergunta deveria ser “onde Jesus estaria?”. Jesus estaria com elas, porque essas pessoas estão lutando por um futuro mais justo.
Esse tipo de êxodo é uma novidade? Qual é o papel da igreja diante de problemas e questões sociais?
Nunca houve um tempo em que não existisse testemunho do que significa ser igreja, setores da comunidade de fé que testemunhassem isso. Então, por exemplo, durante o período da escravidão aqui nos EUA, havia a igreja negra. E a igreja negra, no que ela tem de melhor, sempre esteve engajada em atividades de justiça social e na luta pela justiça social. Não necessariamente em todas as situações, mas fez isso em seus melhores momentos. E mostrou o que tem de melhor sob a liderança, mais contemporaneamente, de Martin Luther King Jr.
Ainda assim, havia um outro lado da comunidade de fé, inclusive da comunidade negra, que dizia a King: “Olha, você não deveria se envolver em questões controversas de justiça social, você só deveria estar preocupado com a salvação das almas”. Então, sempre existiu essa tensão sobre o que significa ser igreja, viver a própria fé.
Como é a relação entre política e igreja?
Quando estamos falando de cristãos e da tradição cristã, estamos tratando de uma religião cujo símbolo central é a cruz e um Jesus crucificado. E nós sabemos o que isso significa: Jesus não terminou na cruz porque rezava demais. Foi porque ele rezava que ele pôde ir para a cruz, isto é, ao ir para a cruz ele se identificou de forma clara com as “classes crucificadas”: os pobres, o andar de baixo do andar de baixo, em sua luta pela liberdade, pela vida, pela humanidade – a humanidade deles. Ele representava um movimento contra qualquer coisa que negasse a humanidade sagrada de alguém, e que pudesse estar no caminho do futuro justo que Deus prometeu a todos. Obviamente, então, ele terminou na cruz por ser uma afronta a ambos, não apenas ao poder político, mas também ao poder eclesiástico, religioso. Assim, na medida em que a igreja é igreja ao se reunir em solidariedade às classes crucificadas que se encontram onde Jesus estava, carregando as cruzes, como dizia Martin Luther King, ela traiu seu chamado a ser igreja. E então outras vozes precisam criticar isso: vozes teológicas, outras vozes da fé, seja quem for.
Como você enxerga esse movimento, que claramente é uma questão de raça? E essas pessoas que agora estão colocando o limite de que as vidas negras importam, mas não veem seus pastores se insurgindo contra a violência policial?
Bem, acho que outros líderes da fé precisam tomar a frente e mudar essa narrativa. E acho que isso está começando a acontecer, porque estamos em um momento urgente nos EUA, com Trump, seu agir político, suas políticas, sua visão… Ele representa um lado obscuro desse país. E é uma verdade trágica que, de fato, está no nosso DNA. Os EUA foram fundados como uma nação para proteger o excepcionalismo anglo-saxão. Essa nação foi fundada para ser a “cidade no alto da colina”, refletir o melhor dos valores anglo-saxões, e a cultura do supremacismo branco veio à tona para proteger isso. É disso que se trata o “Make America Great Again” [Torne a América Grande Novamente, slogan de campanha de Trump]. Tornar a América Branca Novamente, proteger sua herança anglo-saxã, mesmo que seja apenas uma herança mitológica. Por outro lado, os EUA também foram movidos pelo discurso democrata sobre uma terra onde há liberdade e justiça para todos. Então agora esse país tem, citando W.E.B. Du Bois, “duas almas” em guerra. Quem seremos? Essa nação que é a favor e reflete a noção de superioridade e excepcionalismo anglo-saxão, uma nação branca, ou não? Ou viveremos nessa visão democrática de nação?
O que isso significa?
Esse país vem sendo chacoalhado entre esses dois lados sem tomar uma decisão. E é por isso que você vê reemergir esse sentimento Trump. Mas aí vem o que, para mim, é ainda mais perigoso no Trump. As políticas e ideologias de supremacismo branco, o tratamento dado aos imigrantes, nada disso é novo nesta nação, tudo já aconteceu antes. E a nação resistiu e disse “não é isso que queremos ser”. Mas a nação já foi isso e precisa acertar as contas com esse passado. Trump também reflete uma política fascista, e isso é muito perigoso. Ele não está apenas se insurgindo contra a realidade multicultural deste país – ele está se insurgindo contra a democracia. E é isso que provavelmente vai acabar movendo as pessoas brancas, a América branca. Parece que ele pergunta o tempo todo: “Qual vai ser a gota d’água?”. Esse homem, essa história de “Make America Great Again” da campanha… a maior parte dos negros desse país respondeu a isso instintivamente e sabia do que ele estava falando. Ele deixou claro durante a campanha o que estava dizendo. Ele desumanizou imigrantes, chamou mexicanos de estupradores e criminosos e disse que as comunidades negras eram “conclaves de criminalidade”.
Sempre se pode usar a Bíblia para legitimar o que se quiser.
E qual o significado disso para a igreja? Como fiéis negros veem seus líderes apoiando esse discurso que os fere?
Acho que o que está acontecendo agora é que vemos essa América branca dizendo que o que Trump chama de “senso de protecionismo” não diz respeito apenas às pessoas não brancas e a seus corpos negros e pardos. Não é apenas um ataque sobre esses corpos – é também, mas é um ataque fascista, e por isso é um ataque à nossa democracia, por isso é um ataque a todas as nossas liberdades. E agora a igreja, de forma mais ampla – e com isso eu incluo a igreja “branca” –, a comunidade de fé agora está ainda mais suscetível a esse momento. E tenho esperança de que veremos vozes maiores na comunidade de fé tomarem a frente disso, tomarem a liderança e resistirem. E é claro: nós, negros, como vamos permanecer nas igrejas que apoiam isso? Como chegamos lá, para começar, eu não sei, mas como vamos permanecer quando se torna tão claro – se já não estava antes – o que está acontecendo agora? Eles foram longe demais e, para mim, já tinha ido há muito tempo, mas isso ofende a moralidade de qualquer pessoa. Por isso acho que você vai ver, já está vendo, mais pessoas resistindo a isso.
Talvez ele já tenha passado do limite.
Ele passou do limite, e eu acho que, para os cristãos, a gota d’água foi quando o Procurador-Geral citou a Bíblia para defender a política de Trump de separar famílias de imigrantes.
Eu vi isso e não conseguia acreditar, mas ele tem apoiadores no Brasil. Apoiadores brancos. E os mesmos pastores estão usando a mesma passagem.
Sim, porque aquela passagem sempre foi usada, é a mesma passagem que foi usada para justificar a escravidão. E, veja, sempre se pode usar a Bíblia para legitimar o que se quiser legitimar – a Bíblia muitas vezes foi usada para legitimar a opressão do povo. Mas isso vai contra a noção de um Deus que é amor e justiça. Qualquer uso do testemunho bíblico para desumanizar e oprimir outras pessoas é um mau uso. Usar a Bíblia para aterrorizar é um mau uso. Mas as pessoas sempre fizeram isso e vão continuar a fazer. E, ao mesmo tempo, sempre houve outras pessoas que conseguiram resistir e dizer não.
Qual o lugar da igreja nestes tempos?
Esta é a oportunidade de, como já falamos, a igreja ser igreja. James H. Cone, que faleceu recentemente, dizia que haveria um momento em que seria preciso decidir: se a igreja não for tomar a frente, se a cristandade não permitir nem apoiar a luta dos negros pela liberdade, então, vejam só: ele não poderia ser cristão. Ele faria uma escolha entre ser negro e ser cristão. Não é um problema para mim que as pessoas deixem a igreja quando ela não estiver sendo igreja. E se a igreja não entrar na batalha e assumir a responsabilidade de liderança para levar este país a outro ponto, criticando o que está acontecendo e se movendo, lutando por justiça, não encontrando consolo até que haja justiça para todos. Se a igreja não fizer isso, continuar quieta, permanecer ao largo, então eu me juntarei às pessoas que estão indo embora. Elas são críticas, e precisamos estar onde elas estão.
E por que alguns pastores continuam a ignorar as questões sociais e mesmo assim essas igrejas continuam a crescer? Temos esse tipo de movimento no Brasil. Você começa com uma igreja pequena e então alguma coisa acontece e ela fica enorme, com milhares de pessoas.
Um dos movimentos que mais crescem é esse tipo de movimento evangélico carismático pentecostal. E acho que uma das explicações é a necessidade que as pessoas sentem de ter um senso de segurança, um senso de estabilidade, e isso se relaciona às suas dificuldades existenciais pessoais e a todo esse tipo de coisa. Isso dá às pessoas um senso de esperança e, de alguma forma, oferece respostas fáceis às questões complexas da vida. E é o que esse movimento faz, não é? Não é surpreendente. E aí você se pergunta: em sua maioria, quem são as pessoas que gravitam em direção a esse tipo de igreja? Em geral, são as pessoas desfavorecidas. São as classes mais oprimidas.
Sim. Temos várias igrejas pequenas em favelas e regiões pobres, e elas são muito parecidas. É o único vínculo que você consegue ter, o único apoio que tem.
É isso.
Sim. Temos várias igrejas pequenas em favelas e regiões pobres, e elas são muito parecidas. É o único vínculo que você consegue ter, o único apoio que tem.
É isso.
Agora temos um prefeito evangélico no Rio, porque ele está usando sua base, suas igrejas, para conseguir votos. Estamos vendo isso em várias cidades e estados. E estamos discutindo isso agora, porque eles têm um plano de poder de chegar à presidência – o que, de certa forma, fizeram. Vocês têm esse tipo de uso da religião para obter poder político?
Bem, você sabe, existe uma “separação entre igreja e estado” aqui, mas…
Nós de certa forma temos.
Sim, claro. Quero dizer… Sim. De formas mais sutis, sim. E é isso que você vê, quer dizer, Trump tem apelo para um certo segmento da comunidade evangélica, que é a base de poder dele. Ele segue falando para ela, e é por isso que diz coisas como “Coloque o Natal de volta em Feliz Natal” [nos EUA, as pessoas usam “Boas Festas”, de forma genérica]. Ele está apelando para sua base de poder evangélica. Então sim, ele sabe exatamente o que está fazendo, e é isso que ele está fazendo. Ou quando fala de algumas pessoas: “se você não é patriota, você não é cristão”, ou “se você não é cristão, você não é patriota”. É a isso que ele está apelando. Está apelando a uma base de poder evangélica, o que também é uma afronta, um insulto a quem somos como país, e ao que significa ser cristão, também. Então sim, sim, as pessoas sempre fizeram isso, e é exatamente o que ele está fazendo.
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