Novo livro tenta explicar como sistema que diz defender a liberdade gerou figuras como Trump e Bolsonaro. Explicação pode estar na auto-corrosão e niilismo a que estão sujeitas as sociedades quando creem no valor supremo do dinheiro
Publicado 02/12/2019 às 21:09 - Atualizado 02/12/2019 às 21:20
Por Eleutério F. S. Prado
O neoliberalismo é, sim, criador. Do que mesmo, na prática!? De má distribuição da renda, da destruição da proteção social dos mais pobres, da precarização da condição de vida dos trabalhadores – tudo isso é bem conhecido. Ainda que procure se justificar em nome da liberdade, o que ele procura mesmo é elevar a taxa de lucro do capital industrial e manter intocado e em processo de valorização o volumoso capital fictício acumulado nas últimas décadas. Mas a sua mais terrível – tem gente que gosta desse último termo e o emprega positivamente – criação não é bem conhecida. E ela precisa, sim, ser mostrada e bem mostrada.
Antes disso, note-se que esse agenciamento político é de certo modo sincero quando exalta a liberdade. Mas veja-se também que defende, em última análise, a liberdade do agente econômico, do homem como personificação do seu capital. E, nessa perspectiva, é preciso perceber que o neoliberalismo move-se também no terreno da moralidade e tem uma pretensão tanto idealista quanto “idealista”.
O livro mais recente da cientista política norte-americana Wendy Brown tem uma importância fundamental porque aponta para o pior que o neoliberalismo está criando em vários países da “civilização ocidental”. No recém-publicado In the ruins of neoliberalism – The rise of antidemocratic politics in the West (Columbia University Press, 2019), ela mostra que diversos movimentos políticos de extrema direita, com diversos tons de cinza, crescem atualmente no mundo. E que eles são filhos legítimos do neoliberalismo, sem que – segundo ela – fossem desejados por ele.
Ainda que essa afirmação, tal como Brown mostra, seja verdadeira quando se refere a um pensador como Friedrich Hayek, é certo, também, que essa forma de governamentalidade assomou ao poder pela primeira vez na história durante um governo de direita, por meio da ditadura do general Pinochet, no Chile. E foi aí, como bem se sabe, que pontificaram os rebentos ideológicos de Milton Friedman, outro conhecido apóstolo do neoliberalismo. O sonho de fazer o sistema funcionar alimentou um pesadelo.
Brown, professora de ciência política da Universidade da California, em Berkeley, modifica a sua tese anterior sobre a natureza do neoliberalismo, que fora apresentada em outra obra, Undoing the Demos: Neoliberalism’s stealth revolution (Zone Books, 2015). Aí, sustentara que o projeto dessa corrente consistia basicamente em ampliar o âmbito das relações mercantis, inclusive para as esferas do mundo da vida pessoal e social; mas agora percebeu que o neoliberalismo mantinha e mantém um projeto muito mais ambicioso. Eis que tem uma pretensão moral e política de “proteger as hierarquias tradicionais negando a própria ideia de sociedade e restringindo radicalmente o poder político nos estados-nações”. Margareth Thatcher, repercutindo Hayek, não afirmou que a sociedade não existe, isto é, que só existem os indivíduos?!
Brown julga que apenas se pode entender essa forma de governamentalidade quando se lê rigorosamente os textos de Hayek. Eis que esse autor considera o mercado como uma ordem moral que, estimulando a máxima liberdade na descoberta de inovações mercantis, promove o contínuo desenvolvimento da civilização. Essa ordem, segundo ele, evolui espontaneamente por seleção de normas que são transmitidas pela tradição. Ou seja – e é preciso indicar enfaticamente – esse autor crê que tais normas não são postas por deliberação intencional, pelo poder político e, em especial, pela construção política, mas por meio de inúmeras iniciativas privadas que ocorrem contínua e descentralizadamente na sociedade. E compreende esta última apenas como uma ordem formada por indivíduos que interagem com outros indivíduos, formando um sistema complexo.
Ocorre que não é bem isto o que está acontecendo nos países que ainda se veem como pluralistas, liberais e democráticos – uma imagem que é motivo de orgulho e material de propaganda. Seja ele denominado de autoritarismo, fascismo, populismo, iliberalismo ou plutocracia, o fato é que está crescendo aí um tipo de movimento social e político que parece relembrar, ainda que com diferenças, os piores momentos do século passado, em especial na Itália e na Alemanha, nas décadas de 1920 e 1930.
Esses movimentos – menciona Brown – combinam de modo peculiar libertarismo, moralismo, autoritarismo, nacionalismo e governo forte, além de racismo, homofobia e misoginia. De modo aparentemente contraditório, juntam antielitismo com favorecimento dos mais ricos; defesa de rigor moral e civilidade com uma conduta amoral e brutal; religiosidade fervorosa com comportamentos impiedosos com as vítimas de seu ódio. Mantêm um certo desprezo pela ciência e pela intelectualidade, mas não deixam de ser seduzidos pelos avanços tecnológicos e por filosofias políticas extravagantes. Enfim: “desdenham a política e os políticos, mas, ao mesmo tempo, mostram um feroz desejo de poder, assim como ambição política desmesurada”.
Como explicar esse ornitorrinco que não é só australiano e muito menos brasileiro? Brown lembra, então, que não faltaram esforços para classificar esse novo animal, arredio ao conhecimento mas sem dúvida bestial em sua forma de ser.
Tomando por referência a realidade dos países capitalistas desenvolvidos, alguns elementos foram propostos para caracterizar o nascimento e o crescimento desse enjeitado, em pleno século XXI. As políticas neoliberais iniciadas já no final da década dos anos 1970 reduziram não só as taxas, mas também a qualidade do crescimento econômico. Os sindicatos foram desincentivados e os empregos intensivos em trabalho, deslocados para o exterior. Assim, os salários reais estagnaram, os bons empregos rarearam, as escolas públicas receberam poucos recursos (algumas foram privatizadas), as infraestruturas das cidades deixaram de ser bem cuidadas, os sistemas de aposentadoria encolheram. Os países mais prósperos, ademais, receberam uma enorme imigração de força de trabalho barata. Uma insatisfação social de fundo assediou os trabalhadores fabris, brancos e cristãos, nesses países.
O processo produziu uma polarização na esfera do trabalho, da cultura e das crenças religiosas. As ocupações de baixos salários, pouco exigentes, e as de altas remunerações, que requerem mais escolaridade e mais treinamento, cresceram, mas não muito; as intermediárias com bons salários, no entanto, tornaram-se escassas. Os imigrantes que vieram de outros países tinham outros costumes e outras crenças; ora, isto produziu um estranhamento crescente entre os habitantes antigos e os recentemente chegados nas zonas mais pobres. Um mal-estar latente, mas pontuado por conflitos abertos, alastrou-se entre os antigos moradores dessas zonas e os que para ali vieram na condição de estrangeiros ou mesmo de párias.
A insatisfação cresceu entre aqueles que foram educados na ideologia do progresso e na lógica consumista do bem-estar crescente. Esta foi contrariada por uma estagnação persistente, por uma deterioração das condições de vida e por uma insuficiência de serviços públicos em especial nas zonas mais carentes. Como foi bem documentado, a desigualdade de renda cresceu fortemente. Racismo e a xenofobia desenvolveram-se, então, espontaneamente, sob as políticas e os discursos do neoliberalismo que se justificavam falando em “equidade e inclusão”. Um ódio à globalização engendrou-se na mesma medida em que passou a ocorrer a transferência de empregos para o exterior e a implantação de tecnologias que produziam desemprego tecnológico – tudo isso em nome da difusão dos padrões ocidentais para o resto do mundo.
Nessa linha de argumentação, chegou-se à tese de que populistas espertos, bem assessorados no marketing e na propaganda, foram capazes de capturar eleitoralmente todas as frustrações acumuladas no período em que prevaleceu o assim chamado “neoliberalismo progressista”. Desse modo, tornaram-se capazes de ascender ao poder, dando continuidade quase às mesmas políticas do período anterior – apenas agora com uma aparência populista e antissistema. Para alcançar os seus objetivos, os plutocratas apresentaram-se na cena política como críticos da financeirização, do roubo de empregos pelas firmas do exterior, da invasão de estrangeiros no mercado nacional etc. Para dourar uma pílula amarga que piora ainda mais as condições de vida dos assalariados e dos precários, passaram a se apresentar como tradicionalistas religiosos, nacionalistas e militaristas que tinham por tarefa salvar a pátria da ruína trazida pelos políticos tradicionais.
Brown considera que essa narrativa contém uma certa verdade, ainda que não diga tudo o que precisa ser dito; mais do que isso, pensa que omite o principal. Eis que não apreende por que forças políticas profundamente antidemocráticas cresceram nesse ambiente de tal modo a fazer reaparecer, ainda que mal disfarçados de democratas, os velhos demônios do autoritarismo e, no limite, do fascismo.
Ademais, essa compreensão – diz Brown – não é capaz de pensar o neoliberalismo como uma forma de governamentalidade que promove a moralidade tradicional e, ao mesmo tempo, a lógica da concorrência em todas as esferas da sociedade. É preciso ver aqui que a sua ascensão não ocorreu por mérito próprio. A oportunidade veio apenas quando a taxa de lucro despencou, no correr da década dos anos 1970 e se descobriu que a social-democracia estava entravando o evolver da acumulação de capital. Em consequência, teve de enfrentar condições difíceis. Pois, tinha que transformar o padrão de atuação do Estado enfrentando a contradição entre a necessidade de aumentar a lucratividade, manter a demanda efetiva, conservar a boa saúde do próprio capitalismo (o que requer gastos públicos crescentes). Os resultados acima apontados de modo breve decorreram de sua atuação que pode ser considerada desastrosa.
De qualquer modo, o neoliberalismo tem de sustentar continuamente uma esperança de retomada e de prosperidade que não pode fazer acontecer. Mantém-se, assim, num estado de hipocrisia, o qual, quando descoberto, transforma-se em cinismo: promete sempre mais, mais uma vez, para o futuro mais próximo, aquilo que não pôde realizar no passado recente. Ora, este não é ainda o principal. Pois, nesse momento da exposição, essa autora apresenta um achado central: como promove a racionalidade econômica de modo intenso, a ficção do capital humano, do ser que se pensa como uma empresa de si mesmo, o neoliberalismo reforça o niilismo. Eis o que diz:
Ora, aquela narrativa não abrange a intensificação do niilismo que agora contesta a verdade dos fatos e transforma a moralidade tradicional em arma na luta política. Não identifica os assaltos à democracia constitucional, à igualdade sexual, de gênero e racial; a sabotagem praticada contra a educação pública e a esfera civil pública e não violenta, ao mesmo tempo em que fala de liberdade e moralidade. Não apreende, enfim, como a racionalidade neoliberal desorienta radicalmente a esquerda ao chamar de “politicamente correto” o discurso que clama pela justiça social.
O novo livro de Brown defende a tese de que o neoliberalismo, durante trinta anos (1979-2008), preparou o terreno onde medraram as correntes antidemocráticas na segunda década do século XXI. Ela não afirma que seja a causa direta do direitismo extremado, nem que este último tenha sido desejado por ele. Diferentemente, afirma que, ao expandir a racionalidade da competição econômica para outras esferas da sociedade, minou a democracia em vigor nesses países e, ao mesmo tempo, desacreditou a confiança em certos valores comunitários em que esta supostamente se baseia. O neoliberalismo, em última análise, “intensificou o niilismo e este se manifestou como quebra da fé na verdade, nos fatos e nos valores que fundam a sociedade”. Ou seja, remontando a Nietzsche, ela afirma que a desvolaração dos valores, a quebra da confiança nas condições necessárias para o funcionamento do próprio sistema econômico, foi o solo em que renasceram as tendências fascistas.
Brown lembra que, do ponto de vista intelectual, o neoliberalismo nasceu, em 1947, com a criação da Sociedade Mont-Pelerin. Formada por conhecidos pensadores liberais como Hayek, Friedman, Aron etc., passou a se reunir anualmente nessa cidade da Suíça. Seu propósito explícito era reprogramar o liberalismo, com o fim de combater os totalitarismos que haviam medrado com o socialismo burocrático no Oriente e com os regimes nazifascistas na Europa Ocidental. O projeto de sociedade então criado colocava a lógica de funcionamento dos mercados como um antidoto, supostamente eficaz, contra a centralização do sistema econômico por meio do Estado, vista como a causa principal dos regimes totalitários. Ou seja,
Ansiosos para separar o mercado da política, os neoliberais originais queriam tornar odientos tanto o capitalismo de compadrio quanto o poder oligárquico internacional. (…) Ao afastar a política dos mercados, assim como os interesses econômicos da política econômica, queriam evitar a manipulação dos interesses públicos mais gerais, feita pelos grandes industriais capitalistas . Desejavam, sobretudo, debelar as mobilizações demagógicas dos cidadãos e, para tanto, pensaram os mercados como uma disciplina moral que poderia limitar a democracia e conter o populismo.
Talvez haja aí uma concessão excessiva, já que Hayek visitou o Chile de Pinochet e aprovou a sua ditadura. Não importa. Nesse sentido, Brown vai argumentar que a catástrofe política do presente, em que se vê as tendências neofascistas se organizarem e tomarem o poder ou parte dele em diversos países, não foi uma consequência intencional da política neoliberal, mas apenas a sua criatura Frankenstein.
O “erro” cometido por aqueles intelectuais decorreu certamente da grande confiança que tinham na economia baseada em mercados e movida descentralizadamente pelo autointeresse dos participantes, organizações, empresas e pessoas. Trata-se, para eles, do sistema que cria prosperidade, promove a liberdade e estabelece as condições para uma vida pacífica. Faltou-lhes, portanto, um conhecimento melhor do capitalismo enquanto tal, um sistema em que o dinheiro é a forma privilegiada do capital, e este é um princípio de desenvolvimento infinito que transforma os indivíduos sociais em personificações.
Em consequência, eles não foram capazes de pensar com a categoria do niilismo que Nietzsche consagrou como uma característica fundamental da sociedade moderna. Ora, não parece difícil aceitar que a lógica do dinheiro que gera mais dinheiro – mesmo se esse filósofo não tenha dito isso expressamente – é a grande responsável pela desvaloração de todos os valores nessa sociedade que não aqueles associados à lógica de crescimento infinito do capital. Há, pois, um vínculo obscuro – não propositado – entre o liberalismo e o fascismo, ainda que os lanços não sejam reconhecidos como tais.
Em consequência, vale perguntar se os neoliberais originais, alguns dos quais receberam o Prêmio Nobel de Economia, foram apenas ingênuos, cegos devido à aparência mercantil do sistema do capital ou ignorantes por má vontade, já que não quiseram ler ou compreender O capital de Marx?
Para tentar responder essa pergunta, faz-se uma citação de Roger Scruton no livro O que é conservadorismo (É realização editora, 2001):
Marx tomou de empréstimo da filosofia hegeliana o conceito de alienação para descrever a condição do homem sob o capitalismo. (…) Reconhecendo que pode haver verdade na descrição de nossa “condição alienada”, e reconhecendo também a sua conexão profunda entre essa condição e o ‘fetichismo da mercadoria’ (…) os conservadores vão desejar apresentar sua própria versão da alienação e refutar a acusação de que a propriedade privada é sua causa.
Bem, é preciso convir, para terminar, que nem toda propriedade privada é condição da alienação, mas somente aquela que embasa a forma mercadoria dos produtos do trabalho. Ademais, é preciso dizer que em O capital não há, de fato, uma condenação moral da exploração!
Como Roger Scruton, o autor citado resolve o seu problema? Seu truque consiste em tratar o trabalho não como um meio, mas como um fim, algo que depende da vontade expressa do trabalhador. É assim, por meio de uma reinterpretação, que o trabalho alienado se transforma em não alienado, “um fim em si mesmo”. Scruton, então, revela para os seus leitores que ele tem muita satisfação em trabalhar na escrita de livros que promovem a causa do conservadorismo. E que, por isso, não é alienado. Vale, então, repetir a pergunta antes feita, mas dirigida agora a esses opositores do liberalismo: são eles apenas ingênuos, cegos devido à aparência mercantil do sistema do capital ou ignorantes por má vontade, já que também não quiseram compreender a fundo O capital de Marx?
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