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quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

O especial de Natal do Porta dos Fundos é mesmo uma blasfêmia? Que tipo de gente o afirma? Reflexões de Dora Incontri





Os que não suportam o debate livre e a arte independente são justamente os fundamentalistas religiosos, os dogmáticos, os que querem impor seus valores pessoais à sociedade inteira e não aderem à proposta da democracia e da diversidade de pensamento.

O especial de Natal do Porta dos Fundos é uma blasfêmia?

por Dora Incontri, no GGN

A polêmica sobre o especial de Natal do Porta dos Fundos, a Primeira Tentação de Cristo, veiculado pela Netflix, segue firme. Eu mesma recebi de várias pessoas o convite para cancelar a assinatura do canal por conta da “blasfêmia”, cometida pelo grupo.
Quero colocar como parênteses inicial que particularmente, na maior parte das vezes, eu não gosto do humor do Porta dos Fundos. Adoro por exemplo Gregório Duviver no Gregnews, uma mistura bem feita de humor, informação e formação de consciência política. Mas estilo Monty Python do Porta dos Fundos, meio non sense, e com muita baixaria, definitivamente não faz meu gênero. Acho sem graça.
Também me incomoda o fato de mexer com o sagrado alheio, isso quer dizer, ferir ou satirizar o que é divino para o outro. Não será desrespeitoso? Uma falta de cuidado com o sentimento legítimo dos que acreditam com sinceridade e engajamento no bem?
Lembro-me quando da barbárie praticada contra o jornal francês Charlie Hebdo, com o massacre de seus jornalistas. O jornal justamente havia satirizado Maomé – o que tinha sido considerado um insulto pelos muçulmanos. Cheguei a questionar essa crítica desrespeitosa a Maomé. Entretanto, o ato de matar ultrapassou de muito a ofensa religiosa… Quer dizer, para os fundamentalistas, é mais grave escrever ou desenhar algo ofensivo do que matar um ser humano… Vale mais o seu dogma particular do que a vida.
Apesar desses questionamentos, que o artista pode fazer a si mesmo, considero que a arte tem que ser livre sempre. Não podemos colocar limites, porque ela usa as armas que dispuser, que puder, para justamente desconstruir sacralidades, relativizar coisas absolutistas, usar reflexões provocativas, que nos levem a um estranhamento da realidade.
Assisti ao Especial de Natal e apesar de me considerar cristã e amar profundamente Jesus, não me senti em nada ofendida.
Primeiro, porque mesmo no campo teológico, histórico, houve e há inúmeras discussões sobre a figura de Jesus. Teria sido ele mais humano ou mais divino ou apenas humano? Teria conhecido as “tentações” da carne? Estaria ele seguro de sua missão?
Outra coisa interessante que até muitos cristãos primitivos chegaram a considerar: o Deus do Velho Testamento era o mesmo Deus ensinado por Jesus? Um Deus guerreiro, punitivo, vingativo – que manda Abrahão matar seu filho, como prova de fidelidade – coisa aliás citada por Gregório no especial… Havia, por exemplo, os marcionitas, uma corrente de “heréticos”, – ou que foram assim considerados por divergirem do credo católico – que achavam que o Novo Testamento não deveria ser incorporado, ligado ou submetido ao Velho. Hoje vemos o acerto dessa proposição, quando evangélicos radicais citam mandamentos absurdos do Velho Testamento, que aliás, se opõem frontalmente à visão amorosa de Jesus.
Então, no reino da liberdade, que deve ser o horizonte que todos queremos para o mundo, não há nada que não possa ser discutido, questionado ou refutado.
Os que não suportam o debate livre e a arte independente são justamente os fundamentalistas religiosos, os dogmáticos, os que querem impor seus valores pessoais à sociedade inteira e não aderem à proposta da democracia e da diversidade de pensamento.
É preciso dizer, a favor da verdade, que também o comunismo teve seus fundamentalistas e na União Soviética não havia liberdade de expressão artística.
Ora, justamente o humor, como o da Porta dos Fundos, escolhe essa desconstrução ácida da Bíblia, como ferramenta de combate ao fanatismo, como meio de resistência à imposição de um pensamento único – a que estamos assistindo ser implantado no Brasil.
Pessoalmente, sinto-me muito mais angustiada e ofendida como espírita e cristã, quando vejo espíritas e cristãos, usando o nome de Jesus para pregar e praticar ódio, violência, discriminação e injustiça. Ofende-se muito mais a Deus (se Deus pudesse ser ofendido, pois ele é o Ser supremo do Universo e está muito além de nossas infantilidades…) quando usamos seu nome para promover inquisições, guerras santas, opressão à mulher, perseguição a quem pensa diferente… O que, aliás, as religiões fizeram e fazem o tempo todo.
Como anarquista, defendo a liberdade sempre. Se não gosto de algo, não vejo, desligo o canal e pronto.
Assim, não achei graça no Especial de Natal do Porta dos Fundos, mas lembrando Voltaire, defenderei até a morte, o direito de expressão da arte.

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