Estamos em mais uma sessão semanal de psicoterapia. Só que ao invés de humanos, encontramos animais atormentados por obsessões, compulsões, culpa, agressividade e ansiedade. E o terapeuta é o Dr. Clement, um cão que conseguiu sublimar muitos impulsos instintivos como, por exemplo, cheirar o traseiro de outros cachorros. Até que chega um novo paciente: um macaco agressivo e antissocial que irá inverter todos os papéis daquela sessão. Esse é o curta de animação, indicado ao Oscar desse ano, “Animal Behaviour” (2018) – uma narrativa em tom adulto de uma fórmula que o selo Disney/Pixar explora costumeiramente em suas animações: a antropomorfização dos animais. Porém aqui os animais funcionam como o nosso reflexo invertido: enquanto humanizamos os animais, animalizamos os distúrbios psíquicos na sociedade.
Do site Cinegnose:
Além da recorrente exploração da chamada “Jornada do Herói” em suas narrativas, as animações Disney/Pixar também possuem uma incrível habilidade de tornar diversão e entretenimento temas trágicos, pesados, adultos.
Desde Bambi (onde o protagonista perde a mãe de forma cruel) até Wall-E (ficção científica cínica e dark) as animações do estúdio norte-americano exercita essa capacidade de fazer crianças e adultos rirem do cruel e do trágico.
Ou então a trilogia Toy Story: brinquedos desesperados em não perder o amor e a atenção do seu dono Andy (o mítico plot freudiano da relação da criança com a mãe na primeira infância) e crianças sádicas que destroçam cruelmente brinquedos - outro plot freudiano, a crueldade infantil do drama edipiano ainda não resolvido.
A principal explicação desse appeal das animações Disney/Pixar está em arrancar o cômico e o espirituoso na antropomorfização de animais – como na animação Era do Gelo, toda graça está em antropomorfizar animal pré-históricos que migram para o Sul quando a Era do Gelo se inicia, isto é, criar situações cômicas a partir das características biológicas de cada animal como símbolos do comportamento e emoções humanas.
A animação indicada ao Oscar Animal Behaviour (2018), da dupla Alison Snowden e David Fine, também explora esse tipo de humor, porém num tom mais adulto e cínico. Como não deixar de rir ao nos vermos representados em um grupo de animais reunidos em uma sessão de terapia? Animal Behavior utilizam características físicas e comportamentais de cada animal para falar dos distúrbios psíquicos humanos: ansiedade, compulsão, agressividade etc.
O Curta
O grupo na sessão de terapia inclui Lorraine (Leah Juel), uma sanguessuga que sofre da ansiedade da separação; Cheryl (Andrea Libman), uma louva-a-deus que parece não sustentar muito tempo uma relação com machos (ela tem o incontrolável hábito natural de devorar suas cabeça durante o sexo...); Todd (Toby Berner), um porco com distúrbio alimentar; Jeffrey (James Kirk), um pássaro com sentimentos de culpa; e Linda, uma gata obsessiva-compulsiva, com a mania de se lamber e vomitar bolas de pelo.
Todos terapeutizados pelo Dr. Clement (Ryan Beil), um cão que conseguiu sublimar seus impulsivos instintivos como, por exemplo, cheirar o traseiro dos outros cães.
Mas aquela sessão semanal recebe um novo desafio: surge um novo membro relutante chamado Victor – um macaco com sérios problemas de controle da raiva e agressividade. Sua resistência em admitir seu distúrbio e a forma como desafia a todos os outros participantes perturba a dinâmica do grupo até chegar ao caos.
O problema é que é no caos que afloram a predisposições instintivas que aqueles pobres tentam sublimar na terapia.
Não é à toa que Animal Behaviour foi indicado ao Oscar de curta de animação em 2019 – o curta faz uma espécie de metalinguagem crítica dessa veia cômica baseada no mecanismo da antropomorfização de animais. Mas ao mesmo tempo o transformou em um azarão na corrida ao Oscar. Quem venceu foi ironicamente Bao, do selo Disney Pixar que, dessa vez, não antropomorfizou animais, mas um bolinho oriental. Nessa animação o tema demasiado humano foi a chamada síndrome humana do ninho vazio.
Uma crítica à antropomorfização
Mas por que uma metalinguagem crítica? O curta começa fazendo a delícia para o espectador. Assim como no gato Garfield conseguimos enxergar todos os nossos defeitos (preguiça, gula, mau humor etc.), também naquele grupo de terapia enxergamos nossas imperfeições. E achamos graça porque essas imperfeições estão ligadas supostamente aos impulsos instintivos da Natureza.
A louva-a-deus que não consegue manter um relacionamento vem do seu impulso natural em devorar o macho. Ou a pobre sanguessuga que se acha culpada por ser uma parasita nas relações nada mais é do que a própria condição de um animal que precisa parasitar para sobreviver.
Até aí tudo bem. O problema é a não aceitação dos seus próprios impulsos naturais. E escondem essa culpa no excesso de autoindulgência e narcisismo – a chave de compreensão do curta é a caneca com o ícone do “Eu Me Amo”.
O mecanismo retórico da antropomorfização (ou “prosopopéia”) funciona como uma espécie de espelho – e como todo espelho, é um reflexo invertido. Se nos animais do curta vemos uma tragicômica luta entre Civilização versus Natureza, Instinto versus Cultura, para o espectador parece uma naturalização dos próprios distúrbios psíquicos humanos na sociedade.
Em outras palavras: se no curta humanizamos os animais, na vida real animalizamos o humano. Compulsão, obsessão, culpa, agressividade, sociopatia etc. são questões psíquicas originadas de contradições sócio-culturais - repressão e culpa promovidos por instituições midiáticas, políticas, familiares, organizacionais. E não das memórias atávicas das nossas origens instintivas.
Enquanto projetamos nos animais essa humanidade sociocultural que retiramos da sociedade para investir nos bichos.
Todo efeito cômico da humanização dos animais está nessa inversão ou, em termos filosóficos, “coisificação”. Por exemplo, o canino Dr. Clement tenta manter a postura fleumática enquanto reprime silenciosamente seus impulsos animais – achamos engraçada essa condição de um terapeuta por um conflito interno. E acreditamos que também todo comportamento disfuncional humano possa ser explicado apenas por conflitos instintivos.
Como no outro exemplo, a gula culpada do porco Todd. Para o espectador é natural achar que humanos também vivem esse conflito supostamente instintivo – e não a gula como um comportamento culturalmente criado pela sociedade de consumo como forma de controle social: gula e culpa simultaneamente estimulados como isca do consumismo.
Claro que o personagem disruptivo é o macaco Victor: ele fica indignado pela maneira como cada animal não aceita seus impulsos e tenta esconde-los na autoindulgência. Mas também não aceita sua própria sociopatia agressiva.
Animal Behaviour é engraçado porque ajuda a espiar nossos problemas criando um álibi: o problema não é a sociedade, mas nossa herança instintiva animalesca que supostamente ainda carregaríamos.
Em síntese: Animal Behaviour nos faz esquecer que a loucura é socialmente criada. O nosso lado que acreditamos ser supostamente selvagem na verdade é demasiado humano.
Ficha Técnica
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Título: Animal Behavior (curta de animação)
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Diretor: David Fine, Alison Snowden
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Roteiro: David Fine, Alison Snowden
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Elenco: Ryan Beil, Taz Van Rassel, Leah Juel, Toby Berner, James Kirk
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Produção: National Film Board of Canada (NFB)
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Distribuição: National Film Board of Canada (NFB)
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Ano: 2018
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País: Canadá
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