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terça-feira, 22 de outubro de 2019

O marketing da mediunidade e da caridade, ou a aparência e o religiosismo valendo mais que a essência, o real conhecimento da doutrina espírita e a ação efetiva para a melhoria social, por Dora Incontri



Então, ser médium e ter um trabalho assistencial não habilita ninguém a falar em nome do espiritismo e colocar suas posições como representativas do movimento todo.



O marketing da mediunidade e da caridade, por Dora Incontri - No Jornal GGN

Pode parecer estranho tratarmos de alguns assuntos internos do movimento espírita nesse jornal, de caráter plural. Mas é necessário pontuar para espíritas e não espíritas algumas questões que atravessam a sociedade brasileira, na qual esse mesmo movimento se faz fortemente presente e é objeto de filmes, reportagens, entrevistas e notícias.
O espiritismo proposto por Kardec é uma filosofia livre, que cada um pode seguir individualmente, mas partidários dela também podem se organizar em centros, sociedades, associações, igualmente livres e independentes entre si. Como Kardec não pretendeu fundar uma religião, constituída de hierarquias, sacerdócios, rituais e sacramentos – embora a filosofia espírita carregue consigo uma proposta de espiritualidade livre – não haveria necessidade de nada disso para a constituição do espiritismo.
Entretanto, no Brasil, o nosso forte componente de cultura religiosa acabou transformando o espiritismo numa religião – apesar de haver pessoas e setores que resistam a essa definição (o que não significa negar aspectos espiritualistas do pensamento kardecista, como a existência de Deus e a possibilidade de orar individualmente ou em conjunto, sem nenhuma fórmula ritualística).
O problema é que a grande maioria de espiritas e não espíritas procura eleger lideranças desse movimento e identificar quem poderia em tese falar em nome do espiritismo. Ninguém pode e todos podem. A verdade é essa.
Mas o que se faz é dar a voz máxima à Federação Espírita Brasileira, que se arrogou como representante oficial do espiritismo brasileiro, apesar de não ser reconhecida como tal por muitos espíritas. E se dá a voz também a médiuns, que se tornam líderes carismáticos e que muitas vezes são protegidos pela FEB.
Ora, como no espiritismo não há cursos oficiais de teologia (como existem entre católicos e protestantes), essas lideranças autodeclaradas ou reconhecidas espontaneamente pelo movimento, carecem muitas vezes não só de uma formação espírita, como de uma formação cultural mais ampla. Aí está o problema! Junta-se a ideia de uma liderança com amplos poderes de influência, com falta de preparo cultural, psicológico e mesmo espírita para isso. O primeiro caso que tivemos nesse sentido foi o médium Chico Xavier. De fato, um médium excepcional, um ser humano decente, mas um ser humano! Como qualquer outro e com grandes limitações culturais, dentro do contexto em que cresceu e viveu.
A partir dele, outros médiuns, como é o exemplo de Divaldo Pereira Franco, se arvoraram (ou foram entronizados) como líderes incensados e que passaram a pontificar sobre vários assuntos: educação, psicologia, sociedade, costumes, sexualidade, política… temas sobre os quais não têm conhecimento ou apenas conhecimentos superficiais.
O que os tornaria confiáveis para pontificarem sobre qualquer assunto? Para muitos espíritas (e não espíritas também, diga-se de passagem) dois critérios servem para eleger essas lideranças: o fato de serem médiuns e as obras assistenciais que realizam.
O primeiro critério contraria frontalmente toda a proposta de Kardec. Para o fundador francês do espiritismo, o médium é um ser humano como outro qualquer, deve submeter suas comunicações à crítica de seus pares (coisa que não se faz com nenhuma produção mediúnica no Brasil) e deve ser discreto no exercício da mediunidade, porque esta não lhe confere nenhum status sobrenatural ou mesmo social.
O segundo critério também é bastante questionável. Segundo a ética de Jesus, adotada por Kardec no Evangelho segundo o Espiritismo, “a mão esquerda não deve saber o que faz a direita” – ou seja, a caridade não pode ser anunciada como marketing pessoal, coisa que muita gente faz entre nós.
Além do que, se Kardec colocou como premissa ética máxima do espiritismo que “Fora da Caridade não há Salvação”, não se pode entender essa caridade apenas como assistencialismo social. O espiritismo é uma proposta de transformação da sociedade, de mudança estrutural, pois segundo o Livro dos Espíritos “numa sociedade organizada segundo as leis do Cristo, ninguém deve morrer de fome”. Assim, não temos de nos regozijar por haver pobres no mundo para assistirmos e nos sentirmos muito bons por isso. Mas, ao invés, devemos nos constranger por termos uma sociedade onde haja tanta injustiça e desigualdade, trabalhar para mudá-la e quando for absolutamente imprescindível fazer assistencialismo, que isso seja motivo de vergonha e não de vaidade e de incensamento e santificação de pessoas que se dedicam a isso.
Então, ser médium e ter um trabalho assistencial não habilita ninguém a falar em nome do espiritismo e colocar suas posições como representativas do movimento todo.
Muito menos quando essas posições são contrárias à essência do espiritismo. De fato, apoiar um governo que defende a tortura, que trabalha para arrancar os direitos fundamentais do cidadão, que manifesta posições racistas, machistas, homofóbicas, que não protege nosso patrimônio científico, cultural, natural e mineral – e que sobretudo ataca a educação – eixo central do espiritismo, fundado pelo educador Allan Kardec – é uma negação dos princípios fundamentais do espiritismo. Mas a contradição é inerente aos apoiadores do atual (des)governo. O que é preciso é colocá-los no lugar que é deles, que estão apenas manifestando uma opinião pessoal, e não como lideranças de quem não os aceita como líderes.



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