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quinta-feira, 17 de outubro de 2019

A manipulação religiosa das massas em “O Grande Inquisidor” de Dostoiévski, por Carlos Russo Jr.


  Tal qual na essência da profecia de Dostoiévski, os homens inclinam-se voluntariamente aos seus guardiões espirituais tantas vezes distante dos mestres que dizem representar, em uma passividade e renúncia do pensamento, exceto por um pequeno número de rebeldes.

  A religiosidade utilitária (longe da espiritualidade libertária) aponta tanto para as recusas de liberdade real nas sociedades modernas e pós-modernas, quanto para formas tão somente exteriores das denominadas “democracias representativas”.


do Espaço Literário Marcel Proust 

A manipulação religiosa das massas em “O Grande Inquisidor”

por Carlos Russo Jr.


“O Grande Inquisidor”, uma lenda contada por Ivan Karamazov a seu irmão Aliocha, é prometeica: ao fincar os pés num passado distante, permite antever o futuro manipulável da sociedade de massas.
A religiosidade utilitária aponta tanto para as recusas de liberdade real nas sociedades modernas e pós-modernas, quanto para formas tão somente exteriores das denominadas “democracias representativas”.
Esse capítulo essencial de “Irmãos Karamazovi” prenunciou os regimes totalitários do século XX e que ensaiam sua retomada no século XXI com o controle do pensamento. Faz soar um sinal de alerta para as recusas de liberdade, para a invasão das privacidades, para as parvoíces hipócritas, para as mentiras, que “viralizadas” milhares e milhões de vezes, passam a ser são tidas como verdades por quantidade cada vez maior do vulgo, massas das quais se desprendeu o hábito de pensar.
Sinaliza claramente a vulgaridade espantosa da cultura de massas, o consumismo desmedido, os homens que buscam líderes mágicos ou tiranos, para pastores religiosos que retiram da mente dos rebanhos as reações de revolta contra as injustiças sociais e a anulem a busca por liberdade.
Na lenda, a aparição do Santo Inquisidor e o retorno de um Cristo Redivivo ocorrem na cidade de Sevilha, no auge da repressão do Estado atrelado à Igreja Católica no século XVI.
Velho empedernido, o cruel acusador, que ao mesmo tempo cumpre a função de julgador e condenador nos autos de fé que antecediam aos assassinatos pela fogueira dos hereges, o Grande Inquisidor, acusa Cristo de ter superestimado a estatura do homem, sua habilidade em suportar o livre-arbítrio, argumentando que “os homens preferem a calma bruta da escravidão”.
Para aquele Inquisidor os homens conhecerão a felicidade somente quando um reino perfeitamente regulado for estabelecido sobre a terra, sob os auspícios dos Mitos, dos Milagres, da autoridade da Igreja, da violência da “mano militari” e do pão que sobrar da mesa dos poderosos.
No Inquisidor incorpora a ideia do Anticristo, a daquele antípoda do verdadeiro Messias, que também viveu no deserto, alimentou-se de gafanhoto e mel e ofereceu a Cristo a tríplice tentação: os milagres, o pão e a autoridade, dos quais seriam decorrentes as Igrejas e o Estado. Mas Cristo rejeitou, em nome da liberdade do homem, todas as tentações.
E mais. Se o corpo de Cristo tivesse descido da cruz em que foi torturado e assassinado pela ortodoxia judaica e pelo império romano; se Zózima, o starietz ( o padre asceta) do romance, não exalasse os odores da putrefação de seu cadáver, o homem deixaria de ser livre, seria forçado pela evidência a crer em milagres e forças sobrenaturais, da mesma forma como os escravos que obedecem ao poder da força e não por livre escolha.
Logo, coloca-nos Dostoievski, as Igrejas são as principais responsáveis por privarem os homens de sua liberdade essencial, interpondo entre Deus e a agonia da alma individual a segurança da absolvição e dos mistérios dos rituais.
O Inquisidor dostoievskiano era, em seu modo despótico, cruel e autoritário, um tipo “progressista”: tinha uma crença radical no progresso humano através de meios materiais, uma crença na razão pragmática que rejeita a experiência metafísica e atitude questionadora. Na verdade, o pregador deixa-se absorver pelo mundo, a ponto de quase excluir Deus de seu Universo, mesmo que em nome dele fale todo o tempo e conduza os homens como a um rebanho.
Dostoiévski, ao lado do Inquisidor, também traçou o retrato de “seu Cristo”. Um antípoda do Homem da Igreja, o Cristo dostoiévskiano não é nenhum um santo, mas humano, profundamente humano, parafraseando Nietzsche.
A beleza e graça inefável são sutilmente evocadas em um Cristo redivivo que perante o Grande Inquisidor nada responde nada fala. Esse silêncio, no dizer de D.H. Lawrence, é um sinal de aquiescência, da humildade do artista em contraposição à derrota da linguagem de seus seres polifônicos, como o Inquisidor.
E o fulcro da lenda é a liberdade do homem. Homem que é completa e terrivelmente livre para perceber o bem e o mal, optar por um deles e encenar sua escolha.
Toda a ação ocorre em Sevilha na Idade Média, onde sob o comando do Grande Inquisidor, acendiam-se fogueiras em glória a Deus e os hereges ardiam em “atos de fé”.
Cristo teria surgido dentre a multidão reunida na praça em frente à Catedral, docemente, quase sem se fazer notar. No entanto, todos O reconheceram de imediato. Ele caminha com um sorriso de compaixão infinita. Sobe os degraus da igreja no momento em que trazem o caixão de uma menina de sete anos. A mãe lança-se a seus pés e diz: ”Se és Tu, ressuscita-a”. Ele a contempla e apenas diz “talita kumi”, levanta-te e anda, incontinente a criança levanta-se e sorri. No meio da turba há agitação e choro.
Naquele instante passa ao largo um ancião quase nonagenário, de elevada estatura, rosto ressecado, olhos cavados, o Grande Inquisidor. Ao entender a atitude de Cristo, um brilho sinistro clareia seu olhar; ele aponta-O à guarda e ordena que O prendam. Tão grande é seu poder, tal o medo de uma multidão acostumada à submissão, que os esbirros prendem- nO sem nenhum trabalho. Como um só ser, toda a multidão, esquecendo a quem louvava, inclina-se agora para o Cardeal que a abençoa.
O Prisioneiro é levado para a masmorra do Santo Ofício. À noite, o Inquisidor vem só e com um facho de luz ilumina a Santa Face. “És Tu, não és? Cala-te, aliás, o que poderias dizer? Não tens o direito a acrescentar uma palavra ao que disseste outrora. Por que nos vieste estorvar? Amanhã Te condenarei e serás queimado como o pior dos hereges e esse mesmo povo que hoje te beijava os pés, trará a lenha em que arderás. Tens por acaso o direito de revelar um só dos segredos do mundo de onde vens? Todas as revelações novas feririam a liberdade da fé, pois pareceriam miraculosas; ora, tu punhas há quinze séculos essa liberdade acima de tudo! Pois bem, viste os ‘homens livres’”, diz com sarcasmo.
“Isso nos custou muito caro, mas levamos a cabo aquela obra em Teu nome… Tu me olhas com doçura, sem mesmo fazer-me a honra de Te indignares! Mas saiba que jamais os homens se sentiram tão livres como agora, pois sua liberdade eles a depositaram humildemente a nossos pés. Só agora (com a Santa Inquisição) que se pode pensar na felicidade dos homens. Eles são naturalmente revoltados e, revoltados podem ser felizes?”
“Tu estavas advertido, conselhos não Te faltavam, mas não os levaste em conta, rejeitaste o único meio de proporcionar felicidade aos homens. Felizmente, ao partires, nos transmitiste Tua obra, concedendo-nos o direito de ligar e desligar e, decerto, não podes imaginar em retirá-lo agora. Por que vieste nos estorvar?”
“O Espírito terrível e profundo da destruição e do nada falou-Te no deserto e as Escrituras relatam que Te “tentou”. É verdade? … quem tinha razão: Tu ou aquele que Te interrogava? Lembra-Te do sentido da primeira pergunta? Queres ir para o mundo de mãos vazias, pregando aos homens uma liberdade que lhes causa medo… Vês as pedras do deserto árido? Muda-as em pães e atrás de Ti, correrá a humanidade como um rebanho dócil e reconhecido. Mas Tu… Replicaste que nem só de pão vive o homem, mas sabes que em nome desse pão terrestre o Espírito da terra se insurgirá contra Ti, lutará e Te vencerá. Séculos passarão e a humanidade proclamará pela boca de seus sábios e de seus intelectuais que não há crime e, por conseguinte, não há pecados, só famintos.”
Os famintos, desiludidos, os desesperados “nos procurarão e depositarão sua liberdade a nossos pés dizendo: ‘reduzi-nos à escravidão, mas alimentai-nos’. Compreenderão que a liberdade e o pão da terra à vontade para cada um são irreconciliáveis, pois jamais saberão reparti-lo entre si. A impotência para a liberdade ocorre por serem fracos, depravados, nulos e revoltados. As multidões sendo fracas e, embora depravadas e revoltosas, tornar-se-ão dóceis.”
“Acreditarão que, nós, seus pastores, somos deuses pondo-se sob nosso comando e reinaremos sobre eles, os quais terão medo de serem livres. Mas lhes diremos que somos Teus discípulos e reinamos em Teu nome. E esta, a mentira, será a origem de nosso sofrimento.” “Não há para o homem que fica livre, preocupação mais constante e mais ardente que procurar um ser diante do qual se inclinar”.
“Para dispor da liberdade dos homens é preciso dar-lhes paz de consciência… nisto Tu tinhas razão porque o segredo da existência humana consiste não somente em viver, mas ainda em encontrar um motivo pelo qual viver. Sem uma ideia nítida de sua finalidade, prefere o homem a ela renunciar e se destruirá embora cercado por montes de pão. Esqueceste-Te de que o homem prefere a paz e até mesmo a morte à liberdade de discernir o bem do mal? Não há nada de mais sedutor para o homem que o livre-arbítrio, mas também, nada de mais doloroso.”
“Há três forças que podem subjugar para sempre a consciência desse fraco revoltado: o milagre, o mistério e a autoridade. Tu rejeitaste os três… sobretudo é o milagre que o homem procura e como não saberia passar sem ele, forja novos, os seus próprios, inclinando-se perante o prodígio dos magos, dos sortilégios de uma feiticeira, ainda que sejam revoltados, hereges, ímpios confessos”.
“O homem é mais fraco, covarde e vil do que pensavas. A grande estima que tinhas por ele fez mal à tua compaixão. Que importa que no presente se insurja por toda parte contra nossa autoridade e se mostre orgulhoso de sua revolta? É a alegria infantil que lhes custará caro. Derrubarão templos e incendiarão a terra. Mas perceberão, por fim, que são crianças estúpidas, fracas, incapazes de se revoltarem por muito tempo”.
“Corrigimos Tua obra baseados no milagre, no mistério e na autoridade. E os homens se regozijaram por serem de novo levados como um rebanho e serem libertados do dom funesto que lhes causava tormentos. Não tínhamos razão? Não era amar a humanidade compreender sua fraqueza, aliviar seu fardo, tolerar mesmo o pecado de sua fraca natureza, mas com a nossa permissão?”
“Por que vir agora entravar a nossa obra? Por que guardar silêncio com Teu terno olhar? Eu não Te amo. Cada um de nós sabe com quem fala. Não estamos Contigo, mas com Ele há muito tempo. Aceitamos Roma e o gládio de César e declaramo-nos os únicos reis da Terra”.
“Amanhã, queimar-Te-ei, pois ninguém mais que Tu mereceste a fogueira. Dixi”.
O Inquisidor se cala, espera a resposta do Prisioneiro. Este se aproxima em silêncio do nonagenário e beija-lhe os lábios. É toda sua resposta. O velho estremece, seus lábios tremem, caminha até a porta e abre: “Vai-Te e não voltes nunca mais!” O Prisioneiro sai.
Tal qual na essência da profecia de Dostoiévski, os homens inclinam-se voluntariamente aos seus guardiões espirituais, exceto um pequeno número de rebeldes. “Mas podem os revoltados ser felizes?” Podem?
FONTEEspaço Literário Marcelo Proust 

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