Ao nível cotidiano, o autoritarismo se manifesta em sentimentos e discursos reacionários, na aversão à expansão dos direitos e na própria naturalização da violência.
A principal condição para a reprodução desse autoritarismo é a indistinção que opera na vida social entre autoridade e arbítrio
Do Justificando:
Imagem: obra do artista Cleon Peterson.
Por Vítor Queiroz de Medeiros
Como a extrema direita pôde vencer as eleições? Como seus discursos vingaram? Como o autoritarismo funciona no Brasil?
Ao nível cotidiano, o autoritarismo se manifesta em sentimentos e discursos reacionários, na aversão à expansão dos direitos e na própria naturalização da violência.
Noutro nível, adquire significação política e se torna um denominador programático comum na política nacional.
A principal condição para a reprodução desse autoritarismo é a indistinção que opera na vida social entre autoridade e arbítrio. Isso tem raízes históricas e efeitos políticos atuais.
Já há algum tempo se sabe, graças a pesquisas sociais [1], que certos modos de pensar e agir são bastante frequentes quando o assunto é violência. De modo geral, o “mal” e a criminalidade são percebidos como resultados de uma “crise de autoridade” que, por sua vez, seria provocada pela fragilização das principais instituições sociais, como a igreja, a família, a escola, o Estado. A elas caberia a tarefa de garantir a ordem no mundo.
De repente, parece que elas não funcionam mais e a perda de “autoridade” teria resultado em desordem, desestabilizando relações pelas quais as pessoas construíam suas identidades e significavam suas vidas. “Antes haviam destinos”.
Essa leitura reacionária identifica ordem e paz social com rigor moral, severidade punitiva e, adivinhe, com a autoridade patricarcal própria de uma sociedade de tipo tradicional. Não à toa ouvimos tantos comentários nostálgicos acerca dos bons tempos de ditadura militar em que os professores eram respeitados pelos alunos; tempos em que a autoridade tinha a palmatória como instrumento. Hoje não se pode sequer dar um cascudo num aluno.
É fato também que nas últimas décadas há uma reconfiguração dos modelos familiares com o aumento da participação pública das mulheres – e sua consequente subtração do ambiente doméstico –, o avanço das minorias sexuais LGBTI+ e a autonomização dos mais jovens na construção de seus projetos e estilos de vida.
Os abalos das hierarquias tradicionais hetero-patriarcais de geração e gênero estão presentes quando se reclama dos “jovens de hoje em dia”, do beijo gay na novela, quando se ataca a Lei Menino Bernardo como “lei da palmada”, quando se clama por redução da maioridade penal. Essa é a face conservadora do autoritarismo. Ela não fica corada quando uma mulher é estuprada ou uma travesti é assassinada.
A outra face é aquela intrinsecamente violenta. Está às vistas de quem lê as estatísticas de homicídio por arma de fogo no Brasil, de quem testemunha a violência dos pais de famílias em seus lares ou de quem topa com um linchamento pelas ruas. Justiçamentos e vinganças compõem parte do cotidiano das classes sobreviventes. Nas periferias, o que há de parecido a um sistema de justiça é o tribunal do crime.
Essa violência naturalizada também se expressa na indiferença e apoio à barbárie: Um cidadão amarrado e torturado é algo elogiável para uma jornalista de TV, como Rachel Sherazade. A frase “bandido bom é bandido morto” enche as bocas povo afora e qualquer notícia como a morte do garoto Ítalo, que comete um assalto com 11 anos de idade, ou do menino João Victor no Habib’s, coleciona mil comentários odiosos, que endossam o extermínio dos corpos vulneráveis, negros, pobres, nus. Isso sem falar em Pedrinhas, Candelárias, Carandirus.
Tanto o conservadorismo quanto a violência naturalizada partem de (e alimentam) um mesmo princípio que é o pessimismo quanto à expansão e garantia dos direitos, já que isso criaria “desordem”. Neste contexto, o direito não apenas amarga descrédito, como é entendido como obstáculo à realização da justiça e da autoridade. Os únicos direitos efetivamente reclamados e acreditados são alguns direitos sociais, como os trabalhistas e o direito do consumidor. Mas os direitos civis…
A estes são reduzidos todos os famigerados direitos humanos, classificados desde os anos 1980 como “privilégios de bandidos” [2]. Desse modo, um “cidadão de bem”, indignado com algum pequeno furto, sente-se autorizado a fazer justiça com as próprias mãos ou algo do tipo; assim como um pater famílias vocifera para defender seu direito de espancar a mulher e as crianças. Reivindicam o “direito” a violar direitos.
Essas micropráticas autoritárias, excessivas e que se dão ao largo e à revelia da cidadania constituem o que Paulo Sérgio Pinheiro chamou de “autoritarismo socialmente implantado”. Com isso quis dizer que se existem governos autoritários, ditatoriais por exemplo, existem sociedades autoritárias, que assim permanecem mesmo quando um regime formalmente autoritário se encerra.
No caso brasileiro, como já argumentamos em outra ocasião [3], este autoritarismo, dado em atitudes conservadoras, indiferentes ou apologéticas da violência privada e aversivas à noção de cidadania, se expressa e opera por meio de uma indistinção: o abuso policial é lido como autoridade policial; a violência doméstica, como pátrio poder; o assassinato vira legítima defesa e o preconceito e a discriminação tornam-se apenas “liberdade de expressão” para excomunhão dos depravados morais. O que está acontecendo?
Autoridade, justiça, violência, legitimidade, arbítrio e outras categorias se confundem. Quando alguém reclama por “justiça” não sabemos exatamente a que se refere, se às práticas de extermínio por milícias, por exemplo, ou se efetivamente à justiça criminal estatal. Antes de haver um estado de exceção, portanto, há uma sociedade de exceção, uma cultura de exceção em que o direito deixa de ser parâmetro para nossa convivência.
Essa indistinção se desdobra em fortes disjunções, sempre mobilizadas pela extrema-direita: a) direito x costume; b) público x privado; c) formas autorizadas x formas autoritárias de controle social.
Disso decorre tamanha fragilidade dos nossos direitos civis e que as formas de mediação pública de conflitos sejam desprezadas em favor da adoção da violência como “linguagem”.
O autoritarismo como o direito de violar direitos, resulta, inevitavelmente, no questionamento do monopólio estatal da violência legítima – que Max Weber estabeleceu como elemento definidor dos Estados modernos. O faz, contudo, sem que para isso seja preciso ferir a lei. É que a cultura tem o poder de anacronizar, no tempo social, as leis e desfigurá-las, flexibilizá-las, interditá-las. Não fosse essa distância entre tempos, as leis não envelheceriam, nem seriam reformadas.
E se a violência policial, doméstica, homofóbica, miliciana, interpessoal começa a se tornar um jeito de fazer política? A violência legitimada por uma visão de mundo autoritária passa a fazer parte do repertório simbólico e prático das disputas políticas. Aí elegemos uma bancada da bala, um presidenciável pró-tortura, mata-se Marielle, atentam contra Freixo, Lula e quem mais se opuser à “ordem”.
Ocorre agora que essa indistinção ganhou expressividade política inédita. A biopolítica também escapa aos processos impessoais do capitalismo e da gestão das populações e da vida, para tornar-se, em todo o mundo, pauta de programa político e visão de mundo dos indivíduos, mesclando soluções populistas aos problemas de segurança pública, obscurantismo moral-cultural e liquidificando afetos e percepções. Nesse sentido, o Brasil é plenamente contemporâneo e globalizado, uma vez que experimenta das mesmas amarguras que o centro do capitalismo vive, por exemplo, no caso europeu e estadunidense.
Mas não podemos esquecer que essa indistinção por meio da qual o autoritarismo se reproduz no Brasil tem lastro histórico na própria violência e longevidade da colonização e da cultura escravista por aqui. Essas experiências são responsáveis pela conformação de uma sociedade de tipo estamental, com mil entraves à mobilidade social e pela concentração de poder nos caucasianos conclaves patriarcais. Nesse modelo de dominação extremamente violento, patrimonialista e autocrático, a exceção autoritária de fato se impôs como cultura, como sociabilidade, com subjetividade, como regra geral.
O que restou aos subalternos? A rebelião violenta, própria dos levantes populares que marcaram todo o século XIX e parte da primeira metade do século XX, com organizações armadas, feições regionais e reivindicações de cunho igualitário.
Ou uma política do conchavo e do favor, da conciliação que sempre reparte as sobras para conservar o mundo como ele é, evitando a ruptura a qualquer custo.
Ou ainda a submissão e o silenciamento pleno das massas, reféns de sua própria fome e ameaçadas pela repressão estatal – as elites políticas sempre buscaram desabilitar quaisquer ensaios de ação coletiva popular, privando os pobres dos meios de ação necessários para o engajamento político, inclusive recorrendo à sua criminalização.
Somos uma sociedade organizada a partir da violência, do autoritarismo operado pela indistinção. Nisso somos perfeitamente singulares, dado nosso processo de formação histórica e perfeitamente iguais ao resto do mundo quanto ao panorama da biopolítica. O que vimos mais recentemente nessas eleições e seus arredores foi a enunciação pública e o uso político desse autoritarismo e violência por parte da extrema direita, muito em função dos pânicos morais mobilizados durante as eleições.
De todo modo, com isso se pode lembrar que aquilo que se tem chamado de “fascismo”, essa reivindicação do direito de violar direitos, não nasceu nas eleições, tampouco foi parido por Bolsonaro. Aliás, ele apenas conseguiu se passar como “o novo” justamente por não sê-lo, mas por reiterar o que há de mais velhamente enraizado na sociedade brasileira: o autoritarismo violento e a indistinção entre autoridade e arbítrio. Cabe a todos nós desfazer este mal entendido.
Vítor Queiroz de Medeiros é cientista social e mestrando em sociologia na Universidade de São Paulo (USP).
Leia mais:
Notas:
[1] Teresa Caldeira. Cidade de Muros. Crime, segregação e cidadania em São Paulo (2000). EDUSP e Editora 34.
[2] Teresa Caldeira. Direitos humanos: “privilégios de bandidos”? (1991) in Novos Estudos – Cebrap.
[3] Vítor Queiroz de Medeiros. Violência e cidadania no Brasil contemporâneo: Uma crônica da indistinção (2017) in Revista Praça/UFPE.
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