"Glenn Greenwald não é apenas o companheiro de David Miranda (deputado federal pelo PSOL). É um jornalista premiado que ganhou projeção com a série de matérias denunciando o mega esquema de vigilância da NSA (agência de segurança nacional dos EUA), com base em documentos do mais famoso whistleblower da história, Edward Snowden (Greenwald conta toda história no seu livro “Sem lugar para se esconder”). Tem conhecimento, compromisso e recursos para fazer jornalismo em alto nível. E já encarou o poderoso governo americano. Quem desconsiderar a força jornalística do Intercept erra feio."
Do Jornal GGN:
The Intercept está protegido e tem apenas uma arma: o jornalismo, por Mário Messagi Jr
Por Mário Messagi Júnior
O jornalista Glenn Greenwald, fundador do site The Intercept Brasil Imagem: Brendan Smialowski/ AFP
Depois das primeiras matérias de domingo, 9 de junho, do The Intercept, sobre os subterrâneos da Lava Jato, as cenas dos próximos capítulos são bem previsíveis. Vamos considerar primeiro os seguintes fatores:
1) Confundir o The Intercept com um site que disputa narrativa, que tenta construir uma versão à esquerda do mundo é um erro tremendo (que, provavelmente, a direita vai cometer). Glenn Greenwald não é apenas o companheiro de David Miranda (deputado federal pelo PSOL). É um jornalista premiado que ganhou projeção com a série de matérias denunciando o mega esquema de vigilância da NSA (agência de segurança nacional dos EUA), com base em documentos do mais famoso whistleblower da história, Edward Snowden (Greenwald conta toda história no seu livro “Sem lugar para se esconder”). Tem conhecimento, compromisso e recursos para fazer jornalismo em alto nível. E já encarou o poderoso governo americano. Quem desconsiderar a força jornalística do Intercept erra feio.
2) O site tem posição, é evidente, mas vai defender sua posição fazendo jornalismo. Jornais podem ter posição política e isso não tem nada de errado. Errado é fazer como um parte considerável da imprensa nativa e pisotear o jornalismo para fazer valer sua visão de mundo ou seus interesses. O Intercept vai ganhar esta briga usando o jornalismo como arma, apenas jornalismo.
3) Num mundo tecnológico, o Intercept já anunciou que tomou todas as cautelas para proteger a fonte do vazamento (sigilo de fonte) e as informações. Os dados devem estar em servidores criptografados diferentes, em países diferentes. Uma vez vazados, é impossível torná-los, de novo, restritos.
4) Vários atores vão entrar na disputa de narrativa: as milícias digitais de Bolsonaro, sites posicionados à direita e à esquerda (Antagonista e Brasil247, por exemplo), Ministério Público, colunistas, blogueiros e Youtubers. Os grandões da mídia mídia comercial provavelmente vão se dividir: alguns entrarão na disputa de narrativa; outros vão fazer jornalismo.
Diante deste quadro, algumas questões:
1) É possível parar o Intercept? Não. Porque a internet é incontrolável. Os dados já estão protegidos e qualquer ação que, no limite, derrube o Intercept (digital, legal ou política) vai fazer os arquivos mudarem de mãos apenas. Ainda que a mídia nativa possa querer ignorar, o ecossistema jornalístico é muito variado e, hoje, está internacionalizado. Aposto que UOL, Poder360, El Pais, BBC e muitos outros querem botar as mãos nestes arquivos.
2) Se não vai parar, como o Intercept provavelmente vai agir? As primeiras matérias ontem foram apenas o aperitivo. O site jamais sairia com o material mais quente. Vai soltar aos poucos o conteúdo, por alguns motivos: a) o material é muito vasto e exige tratamento, trabalho. Muito deve estar analisado e organizado, mas provavelmente não tudo; b) soltar aos poucos é uma estratégia comercial também, que deve projetar o Intercept como o principal veículo de jornalismo independente no Brasil (para mim, já é, mas vai ficar mais evidente agora). O site vai crescer, vai começar a arrecadar mais e terá mais leitores; c) controlar a divulgação também serve para ir desmontando as versões que os implicados vão tentar potencializar. Em suma, o Intercept vai ditar o ritmo e a agenda pública nos próximos meses.
3) Como vão se comportar os outros atores jornalísticos? Estas são minhas apostas: SBT e Record vão ser linha de defesa da Lava Jato; Globo e Estadão vão oscilar; UOL vai cair moendo, repercutindo e tentando levar parte dos louros jornalísticos também. O divisor de águas será a narrativa sobre o vazamento. Se algum dos grandes embarcar na narrativa de que o vazamento foi criminoso (e acho que alguns vão embarcar) é sinal de que não têm nenhum compromisso mais com o jornalismo. O sigilo de fonte é um dos instrumentos mais poderosos do jornalismo investigativo no mundo, está na base de Watergate, por exemplo. É tão importante que está previsto em praticamente todos os códigos de ética jornalísticos do mundo e é lei em diversos países, incluindo o Brasil, onde é princípio constitucional. Defender isso é o básico em jornalismo. Alguns vão tentar minimizar, jogar o debate para outros pontos, mas atacar o vazamento em si ou endossar tentativas de que o Intercept revele a fonte é desprezar o jornalismo por completo.
4) Como irão agir Moro, Deltan e MPF-PR? O Telegram continua funcionando. Vão tentar jogar o sistema judiciário para cima do Intercept e tentar convencer a população de que o vazamento em si é mais importante que o conteúdo vazado. Vão tratar “hacker” como sinônimo de “bandido”. Podem conseguir algum sucesso na bolha bolsonarista e entre apoiadores da Lava Jato, mas não têm como antecipar o que vem pela frente. Vão ter que reagir movimento a movimento. Quando negarem algo, o Intercept vai mostrar a prova em contrário. E vão se indispor com a comunidade hacker.
5) Como o resto do sistema judiciário vai reagir? Mesmo sendo bem monolítico, o judiciário não é um bloco só. Alguns vão se alinhar a Moro e Cia, mas outros, inclusive alguns bem poderosos, vão querer o couro do ex-juiz e da galera de Curitiba.
6) E o sistema político? Bolsonaro precisa proteger Moro, porque ele está na base da sua eleição, toda armação o fez o principal beneficiário. Mas é imprevisível, instável, nada lógico. Mesmo assim, aposto que vai até as últimas consequências para defender a Lava Jato, mesmo querendo se livrar de Moro, que se tornará um peso para o seu governo. O PSL e alguns lavajatistas vão tentar atacar o Intercept. Primeiro, vão tentar qualificar o site como esquerdopata. Não vai repercutir além da bolha. Depois, podem até retomar a discussão sobre veículos estrangeiros no Brasil (apenas brasileiros natos ou naturalizados há 10 anos podem ser donos de meios de comunicação no Brasil), seja com projeto de lei, seja com ações na justiça. As ações políticas tendem a fracassar ou a produzir efeitos tarde demais. O PSL não consegue, sozinho, articular nada no Congresso, é de uma incompetência política abissal. Já no judiciário pode conseguir liminares rapidamente, o que vai expor ainda mais o caráter partidário e censório do Judiciário. Já o resto do Congresso deve estar pensando, neste momento, em como dar o troco, pesado, na Lava Jato.
Em suma, se nesta disputa o The Intercept conseguir jogar o canhão de luz que tem nos subterrâneos da Lava Jato, ainda estamos numa democracia. Se mesmo com tantas boas cartas nas mãos, for abatido em pleno vôo, é sinal de que cruzamos o cabo da boa esperança e já vivemos, efetivamente, num regime de exceção, num regime que não é mais o império da lei, que não é mais o estado de direito.
Um país onde o jornalismo está severamente manietado.
Mário Messagi Júnior
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