"O populismo tem sido interpretado como uma forma de se exercer o poder ao largo das instituições representativas, no qual o líder carismático contorna as decisões tomadas por atores legítimos – congressistas eleitos, por exemplo – a partir das “manifestações das ruas”. O populismo é visto por acadêmicos no Brasil e no exterior como uma forma deletéria de governo, na medida em que rompe o chamado sistema de freios e contrapesos exercido pelos demais poderes e, pior, a própria lei, o que resulta na conformação de regimes erráticos e, potencialmente, autoritários." - Sérgio Guedes Reis, Mestre em Ciências Sociais pela University of California, Los Angeles
Neste Domingo, Volodimir Zelenskiy foi eleito o novo presidente da Ucrânia. O ator e comediante, que interpretou na televisão a exata função que agora passará a exercer, ganhou as eleições com mais de 70% dos votos. Nos últimos 3 meses, não deu nenhuma entrevista, e pouco se expôs publicamente em sua campanha presidencial, exceto pelas interações nas redes sociais (por vezes regadas a muito humor). Não se sabe muito sobre sua plataforma política, para além de sua vaga defesa de um país íntegro; seu personagem no popular seriado ucraniano lutava contra oligarcas e políticos corruptos, buscando afirmar o (bom) senso do cidadão comum. A história em questão soaria ingênua, talvez ridícula, não estivéssemos nós mesmos enredados em contexto razoavelmente similar no Brasil – temos o nosso próprio bufão no poder.
A questão é que esses processos políticos não são mais excepcionais nessa década de 10 do século XXI. Trump nos Estados Unidos, Beppe Grillo na Itália, Jimmy Morales na Guatemala, Jón Gnarr na Islândia e os tantos entertainers que disputam a política institucional no Brasil são sintomas de processos de desgaste que transcendem o domínio local ou nacional. É evidente que muitos artistas já ocuparam o poder ao longo do século XX. Mas parece claro que há o surgimento, crescimento ou redescoberta em escala muito maior desse tipo de figura como agente político viável nas democracias contemporâneas, inclusive nas mais desenvolvidas. Há uma parte substancial dos melhores cientistas políticos do nosso tempo que classifica esse fenômeno como uma espécie de “volta” ao populismo. Eles estão provavelmente corretos, mas será que não há mais aí?
Ao longo da década passada, testemunhamos aquilo que costumeiramente passou a se chamar de “virada à esquerda” na América Latina. Tivemos Chávez (depois, Maduro) na Venezuela, Zelaya em Honduras, Ortega na Nicarágua, Correa no Equador, Evo Morales na Bolívia, Michelle Bachelet no Chile, Fernando Lugo no Paraguai, Nestor e Christina Kirchner na Argentina, Tabaré Vásquez e Pepe Mujica no Uruguai, e Lula da Silva e Dilma no Brasil. Extemporaneamente a esse movimento – na medida em que a Direita conseguiu voltar ao poder na maioria dos países citados, por vezes a partir de putschs (extra-) constitucionais –, López Obrador ganhou no México. À exceção do Uruguai e do Chile, todos os demais governos dos demais países foram classificados como “populistas” por algum politólogo conhecido. No caso do Brasil, é necessário ressaltar que tal alcunha é atribuída a Lula essencialmente por publicistas brasileiros, e não estrangeiros – o que nos diz algo sobre a “opinião pública” em nosso país.
O populismo tem sido interpretado como uma forma de se exercer o poder ao largo das instituições representativas, no qual o líder carismático contorna as decisões tomadas por atores legítimos – congressistas eleitos, por exemplo – a partir das “manifestações das ruas”. O populismo é visto por acadêmicos no Brasil e no exterior como uma forma deletéria de governo, na medida em que rompe o chamado sistema de freios e contrapesos exercido pelos demais poderes e, pior, a própria lei, o que resulta na conformação de regimes erráticos e, potencialmente, autoritários. Afinal, quando o líder atua conforme a sua própria bússola ou de acordo com aquilo que interpreta como a vontade popular, então a moralidade pública passa a ser personificada em sua própria figura, e logo o aparelho do Estado passa a ser um apêndice do governo. Pressupõe-se, por outro lado, que o bom governo é técnico, exercido pelos mais competentes, exercido em nome de um projeto de governo referendado pelas urnas, mas controlado continuamente por agentes com poder de veto – de forma a garantir, em tese, que ninguém ultrapasse os limites da lei.
Essa é, em síntese, a crítica e a proposta de parte importante dos cientistas políticos. Ela faz sentido, e a defesa da institucionalidade, em seu escopo mais amplo, deveria ser um dos componentes mais prioritários do arsenal de defesa do Estado de Direito por qualquer democrata. Essa visão, contudo, tem muitos problemas. Em tempos em que todos pedem uns aos outros um pouco de autocrítica, talvez valha fazer esse apelo aqui. Vou me centrar em um aspecto específico dessa objeção, que é a relação entre Estado e sociedade.
Salvo alguns poucos países, os níveis de coesão social e confiança nas instituições se encontram em queda em dezenas das maiores democracias no mundo todo. Um contingente cada vez maior dos cidadãos não se vê representado por seus eleitos, seja com relação ao conteúdo das decisões que estes promovem quando estão no poder, seja pelo fato de que o eleito em nada se parece com o eleitor em seus atributos descritivos: no caso do Brasil, o primeiro é muito provavelmente homem, muito mais rico, mais branco, mais cristão, e possivelmente tem uma atuação profissional pretérita em nível muito mais elevada do que a do segundo. O sinal básico desse distanciamento, para os analistas, é a oposição dos eleitores à corrupção, grande chaga da classe política. Nessa toada, a própria arte da política, a qual se consubstancia em um jogo de articulações, negociações, cessões e trocas, passa a ser compreendida como a arte da corrupção. Não é à toa que a narrativa pisada e repisada pela força tarefa da Operação Lava Jato sobre o mundo da política teve tanta ressonância popular.
Cabem, contudo, duas perguntas: como que o pensamento liberal interpreta o poder do dinheiro na política? E o que é que a democracia, em seu modelo liberal, tem a oferecer como alternativa ou aperfeiçoamento aos mecanismos existentes? Se fizermos uma leitura bastante generosa, poderemos dizer: sim, o pensamento liberal tem propostas interessantes. Mas ele tem reconhecido essas propostas como pertencentes à sua tradição? Entendo que não. Vários dos governos latino-americanos citados mais acima foram responsáveis pela criação e desenvolvimento de um ferramental inovador e criativo no campo do debate público e da gestão das políticas públicas: audiências públicas, conselhos, conferências, ouvidorias, estruturas de orçamento participativo, mecanismos de referendo, etc. Todos esses instrumentos apresentam limitações e problemas, mas representam esforços de alargamento da democracia, de tentativa de conectar e integrar o povo à política. Não raro, contudo, intérpretes da ciência política liberal viram essas estratégias com desconfiança; vários não coraram ao chamá-los de “apelos populistas”. Mas os erros não foram só deles. Os partidos, à esquerda e à direita, se tornaram mais e mais burocráticos ao longo do tempo; pouco espaço foi dado a novos e mais diversos quadros, e líderes continuaram a ser ungidos ao poder pelas figuras mais sêniores. As dificuldades em manter políticas reformistas conforme as forças conservadoras expunham sua resistência autoritária se traduziram muitas vezes não em mais inovação institucional por parte de governos progressistas, mas sim no uso das mesmas armas nas batalhas. Todos desperdiçaram, nessa resistência, uma chance de ouro de tentar reformar por dentro um sistema representativo gasto e carcomido de cima a baixo.
Um dos núcleos do problema parece estar, contudo, na dificuldade do pensamento liberal em questionar o papel do dinheiro em desvirtuar a democracia. O horizonte da crítica de integrantes dessa escola parece ser bastante estreito: por um lado, interessam-se sobremaneira pelo fenômeno do clientelismo, tentando entender como e por que cidadãos vendem os seus votos; por outro, pelos esquemas de suborno envolvendo empresas e políticos. Os estudos (e as ações de gestão) relacionadas a tais questões são evidentemente importantes, mas não raro – como, mais uma vez, os intrépidos Power Points da Operação Lava Jato não nos deixam enganar – ficamos com a sensação de que 1) o povo, que comercializa seu direito, é moralmente vil; 2) os políticos, que praticam “caixa 2” e corrupção passiva, “sequestram” os pobres empresários, e não lhes deixam outra alternativa que não corrompê-los. Sobra muito pouco espaço para as questões estruturais, para a desigualdade, para a cultura política das elites, e para o poder do dinheiro. Nada a dizer sobre políticos honestos, mas que em nada se conectam com que os elegeu; nem sobre a força incontrolável do financiamento privado ou a respeito dos níveis cada vez maiores de desigualdade e seus impactos sobre a representação.
Einstein diria que a insanidade está em repetir os mesmos erros ao longo do tempo. Ao passo em que atiram contra bolivarianistas e, agora, contra bolsonaristas, os liberais parecem não se atentar ao fato de que as sociedades estão exaustas do modelo institucional vigente. Estão cansadas da postura fria e distante dos eleitos, das promessas não cumpridas, dos políticos preparados, mas ineficazes; e, é claro, da própria corrupção. Diante da ausência de representação real e de sentido na existência do Estado e do poder, elas querem na política um “deles” no poder: alguém espontâneo, engraçado, cativante, talvez pouco solene. Mas que soe, ao mesmo tempo, comum e autêntico. O colapso da democracia em curso representa nada menos do que a falência do modelo impessoal de se relacionar com o espaço público. A disputa que se coloca é aquela entre aqueles que acreditam que a resolução do afastamento entre as pessoas e delas com relação ao Estado passa pelo fortalecimento do espaço público, e aqueles que desejam que os cidadãos se encerrem em seus espaços privados, enquanto nos públicos viceje uma moralidade austera (baseada em valores privados, mas guiada por líderes que sejam “como o povo”). Em nenhum desses modelos cabe a democracia liberal, tal qual existente no último século.
O segundo modelo indicado acima é o neoliberal. Ele se presta a esvaziar o público, fazendo com que este se torne mero espaço ampliado de gestão pelo big business. Não há sociedade propriamente dita: as relações sociais são diádicas, representando contratos entre um “agente” e um “principal”; pressupõe-se que um quer passar a perna no outro o tempo todo, então o (auto) controle é necessário. Na medida em que não há aí possibilidade de bem comum, a moralidade possível é potencialmente religiosa: os valores comuns possíveis são metafísicos, pois não são construídos socialmente. Abre-se espaço para a ética baseada em máximas, e não no contexto ou na vida de cada um (que sequer se quer conhecer).
O rigor ao desvio comportamental é impassível: encarceramento, corrupção como terror, “bandido bom é bandido morto”. Culpa do indivíduo. Desse senso comum segregado em infinitas particularidades distantes umas das outras e traídas cotidianamente pela falência das instituições é que emerge o apelo anti-institucional, o cinismo, e até o desejo pelo “demagogo mentiroso”, que desafia o sistema podre com suas “verdades” empacotadas em fake news. O populismo, tal qual vemos hoje, é produto social do neoliberalismo. Não é difícil ver como o anti-intelectualismo é, também, seu filho bastardo. E não é inviável perceber que esta resposta à crise diagnosticada ao longo do texto configura uma estratégia de permanência no poder por parte daqueles que temem uma ruptura mais aguda da ordem, uma aposta em cavalos-de-tróia capazes de implementar as mesmas medidas austeras de antes, agora sob roupagem despojada.
O primeiro modelo ainda está para ser construído. Ele é de nossa responsabilidade. Uma forma de defini-lo seria chamá-lo de “institucionalismo orgânico”. Os liberais estão absolutamente corretos em defender que não há vida política possível sem instituições, i.e., sem a existência de formações sociais que regulem a ação humana em questões políticas para além da existência e da vontade particular de indivíduos. Mas essas instituições precisam ser responsivas, e não fins em si mesmas, ou burocracias autofágicas. Elas precisam estar integradas à vida das pessoas, levando-se em conta suas rotinas, suas necessidades de sobrevivência, seus interesses e vocações. Elas não podem ser ocupadas apenas por “profissionais”, pelos mesmos de sempre; ou por aqueles que, por variados fatores, não representam os demais. A ideia em si de representação deve ser questionada: por que relacionar democracia e eleição, e republicanismo (no sentido de respeito a valores públicos) com meritocracia? As instituições precisam ser eficazes, o que não significa que precisem se converter em distopias tecnocráticas: elas precisam ser receptáculos das opiniões das pessoas, mas também muito mais do que isso. Elas precisam significar espaços de construção, de produção de impacto social, e as pessoas precisam ver as suas contribuições reais nesses processos. Conferências não podem ser meras “festas da democracia”, meros fetiches “decisionistas”. A participação na gestão pública é essencialmente um processo pedagógico, a ensinar cada um o funcionamento e os limites do aparelho estatal. Precisa ser bem humorada, dinâmica, familiar, criativa, solidária. E, ao mesmo tempo, as pessoas precisam ser responsabilizadas por suas decisões nesses espaços. O público se torna “de todos” quando uma maioria expressiva se vê como parte dele. Se apenas uma pequena minoria o faz, esta o preda, privatizando-a, e os demais a veem como espaço de ninguém, abandonando-a. Na longa duração da história política brasileira, pelo menos, essa narrativa soa familiar. “O Brasil não tem povo, tem público”, dizia Lima Barreto. Daria para dizer, no mesmo tom: “O Brasil não tem elites, tem classes dominantes”.
Talvez, portanto, a morte da democracia (liberal) seja um caminho sem volta. Sem entendermos o seu significado e razões, então teremos uma longa agonia pela frente – e o poder tomado por palhaços, comediantes, apresentadores de TV assistencialistas, atores carismáticos, etc. Sem produzirmos formas de arranjo político-social que deem de volta às pessoas a capacidade de se nelas se reconhecerem, e então a revolta populista se aprofundará. Sem entendermos como a desigualdade afeta a distribuição de poder, a moralidade, as visões de mundo e capacidade de decisão das pessoas, e então continuaremos a atacar os sintomas, e não as causas da crise. Sem nos arriscarmos na produção e reforma de institucionalidades que são vistas como “populistas”, e então, com um estrondoso aplauso, vanecerá a liberdade.
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Sérgio Guedes Reis é Mestre em Ciências Sociais pela University of California, Los Angeles, Mestre em Políticas Públicas pela Fundação Getúlio Vargas, e Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo
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