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sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

Do Justificando: A nova doutrinação ideológica “terrivelmente cristã” de Damares Alves,



"A própria ministra critica os modelos ideológicos, que diz haverem sido adotados pelos governos do Partido dos Trabalhadores, mas assume tentar implementar um novo modelo ideológico; terrivelmente "cristão", neste caso. "



Do site Justificando:

A nova doutrinação ideológica “terrivelmente cristã”

A nova doutrinação ideológica “terrivelmente cristã”


Por Leonam Cunha, Doutorando em Estado de Derecho y Gobernanza Global pela Universidad de Salamanca-Espanha; Mestre em Estudios Interdisciplinares de Género pela Universidad de Salamanca-Espanha; Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Todos estão mais ou menos a par das declarações da ministra Damares Alves, responsável pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos do governo Jair Bolsonaro. Sempre se espera uma nova manifestação polêmica ou absurda da advogada e pastora evangélica, que já disse – por exemplo – que o Estado é laico mas ela é terrivelmente cristã. Ou seja, ela tem conhecimento sobre isso, mas ignora abertamente a importância da laicidade do Estado em função de sua própria religião. 

A ministra, logo depois de assumir a pasta (quarta-feira, 2 de janeiro), aparece em vídeo ressaltando os estereótipos de gênero, ao dizer em alto e bom som “menino veste azul e menina veste rosa”. O vídeo causou rebuliço nas redes sociais, de sorte que muitas pessoas questionaram a declaração da ministra e se posicionaram a favor das liberdades.
O que a ministra não entende é o porquê é problemático reforçar esses estereótipos, como essas ideias podem mitigar a liberdade das pessoas (de qualquer identidade de gênero ou orientação sexual) e tampouco que são esses mesmos estereótipos que ela ressalta discursivamente que generificam os corpos e impõem modelos de conduta aos indivíduos. O “menino veste azul e menina veste rosa” é uma grande metonímia para uma gama de outras ideias que se fundamentam nas estruturas de gênero que conhecemos, construídas a partir de uma oposição entre masculino e feminino.
O “menino veste azul” também significa que o menino deve ter um caráter tal, viril, violento, pouco ou nada sensível, comportar-se de forma máscula, ter gestos rígidos, etc.
O “menina veste rosa” também significa que a menina deve ser delicada, sutil, demonstrar fragilidade, requerer a proteção masculina, ser amaneirada na forma de cruzar as pernas, cuidar bem de sua cozinha de plástico para depois cuidar de sua cozinha real.
O que esse discurso reforça é um antagonismo entre masculino e feminino, a partir do qual a mulher é construída desde o modelo masculino e colocada em um nível inferior nessa hierarquia de gênero, que ganha forma nas relações de poder que estruturam nossa sociedade e são a base daquilo que chamamos sistema patriarcal. 
A própria ministra critica os modelos ideológicos, que diz haverem sido adotados pelos governos do Partido dos Trabalhadores, mas assume tentar implementar um novo modelo ideológico; terrivelmente cristão, neste caso. Em entrevista a Globo News, Damares Alves demonstrou que se posiciona contra um determinado modelo ideológico, que corresponderia a um esquema mais liberal ou progressista (que, anote-se, xs seguidores do presidente confundem com comunismo, marxismo, etc.), e não contra qualquer “doutrinação ideológica”. E com todas as letras disse que o que o governo Bolsonaro tentará implementar é um novo modelo ideológico, que de neutro não tem nada, e não simplesmente acabar com qualquer tipo de atuação politicamente tendenciosa.
Ao mesmo tempo que fala isso, posiciona-se contra a “ideologia de gênero” e a favor da “identidade biológica”. Ponhamos os pingos nos i’s. Ideologia de gênero é um termo que não tem nenhuma fundamentação filosófica e é completamente incabível, uma vez que o gênero e a assunção das identidades de gênero são uma construção individual e interna que se dá a partir da recepção e assimilação dos esquemas de gênero existentes. Esse sentimento identitário, de identificação com um gênero x, y ou z, compete à própria pessoa, que o desenvolve a partir de experiências individuais e vivências que nunca se dão fora de um contexto social.
Dessa forma, o gênero não pode ser uma ideologia que nos dão de café da manhã e que nós deglutimos sem ao menos mastigar. A assunção de uma identidade de gênero, em sua prática, não pode ser ideológica porque não corresponde a alguém de fora a competência de proclamá-la. Assim, a “ideologia de gênero” e a falácia da ditadura de gênero só têm significância nesse contexto como ferramenta política de discurso.
O que a ministra quer chamar de “ideologia de gênero” não tem nada a ver com imposição; é simplesmente o entendimento que nós estudiosxs de gênero e sexualidade temos na atualidade: de que cada ser humano é livre para assumir a identidade de gênero que sente e performatizar o gênero com o qual se identifica, sem que essas identidades sejam caixas rígidas e herméticas que mantêm estereótipos e solidificam as possibilidades de vestir-se, comportar-se, expressar-se, etc. O conceito vazio de “identidade biológica” defendido pela ministra Damares Alves é o oposto disso. Com esse argumento ela quer apregoar que a “verdade” é que o sexo biológico coincide com uma identidade de gênero determinada, que deverá ser assumida pelo resto da vida pelo bebê (que tem a sorte ou o desprazer de nascer com caracteres sexuais pelos quais será reconhecido como macho, fêmea, intersexual). 
Ao dizer isso, a preocupação que surge é sobretudo com respeito às políticas públicas para travestis e transexuais em nosso país. Segundo dados da Transgender Europe [1], o Brasil é o país responsável por quase 40% dos assassinatos de pessoas trans em todo o MUNDO. Repetirei: EM TODO O MUNDO. Repetirei de outra forma: de TODAS as pessoas trans assassinadas no MUNDO, quase 40% delas são assassinadas NO BRASIL. O discurso de “identidade biológica” defendido pela nova ministra é simplesmente uma afronta à existência das pessoas trans, que não seguem essa lógica de “correspondência” entre o sexo biológico com que nasceram e a identidade de gênero percebida. 
Apesar de a pastora Damares, ao ser questionada sobre políticas públicas LGBTI, ter asseverado que “nenhum direito adquirido será violado pelo governo Bolsonaro”, a tendência é que se deem retrocessos – além dos retrocessos econômicos e políticos – também nesse aspecto. Mas, ainda que os direitos já conquistados sejam mantidos, as outras demandas da população LGBTI existem e não podem ficar aí estancadas. As demandas, por exemplo, do movimento trans não podem deixar de ser atendidas, e as medidas direcionadas a esse coletivo não podem simplesmente ficar paradas no tempo. As pessoas trans precisam de novas políticas públicas de inserção laboral, de um novo modelo para o Processo Transexualizador no SUS, que não as patologize e sim as atenda em suas necessidades e as ajude de forma genuína e eficaz, desfazendo a rigidez dos estereótipos de gênero e facilitando o acesso ao sistema de saúde. As pessoas trans precisam de novas leis que regulem a retificação de seus documentos, de novos mecanismos que as insiram mais na sociedade porque elas continuam excluídas de diversos âmbitos sociais e estão sendo assassinadas. Estão sendo assassinadas, todos os dias. 
Toda a omissão do novo governo é claramente plasmada nas suas diretrizes dos direitos humanos, a ser tomadas em conta pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, das quais não constam as minorias sexuais. É escancarar que esse coletivo de pessoas inexiste para o atual governo. Se as questões LGBTQI não são uma pauta de direitos humanos, serão uma pauta de polícia e de controle; serão uma pauta do banimento institucional e da exclusão social. Tal articulação, é necessário anotar, faz parte do modelo político-econômico perfilhado pelo presidente Jair Bolsonaro, que se organiza de forma a deixar à margem alguns grupos de indivíduos, posto que não têm lugar dentro da lógica econômica de seu projeto senão como subclasses. 
Quando Damares Alves diz ao UOL, no dia 4 de janeiro, que o debate sobre as questões de gênero e sexualidade devem restringir-se ao âmbito universitário, demonstra claramente que não entende o papel que tem o Estado em relação às políticas públicas LGBTQI nem o papel que tem a universidade para a sociedade como um todo. De que vale o conhecimento construído nas universidades se ele não chega de nenhuma forma às salas de aula das escolas e às reuniões de amigxs e de família? De que valem os estudos de gênero se não chega aos ouvidos de uma criança na periferia que sua atração afetivo-sexual não é uma doença mental ou que o gênero por ela sentido, embora lhe gritem que não coincide com aquilo que x médicx disse no nascimento ou com o quadradinho “sexo” no seu registro civil, é normal e que ela é livre para assumir a identidade que intimamente percebe? De que vale a universidade se seus muros são intransponíveis?
As declarações da ministra continuarão a nos estarrecer e sua cegueira com respeito à realidade que a rodeia, em alguma medida, será institucionalizada a partir de sua atuação. Sob sua batuta e sua omissão, as políticas públicas pelas quais será responsável taparão os olhos para as minorias sexuais e deixarão de considerar uma parcela de indivíduos cada dia mais significativa e numerosa. O presidente Jair Bolsonaro já demonstrou de diversas formas que não governará para esses sujeitos, afinal, é de sua autoria o fatídico enunciado: “as minorias têm que se curvar às maiorias”, muito embora todos os dias alguém seja vítima desse discurso nocivo. A hora de combater as violências e a violação de direitos humanos que a população trans sofre nunca pode ser amanhã, é para agora, para este exato minuto. As vidas trans importam, as pessoas LGBTQI existem e não se calarão, e a ministra Damares Alves não nos parará.
Leonam Lucas Nogueira Cunha é Doutorando em Estado de Derecho y Gobernanza Global pela Universidad de Salamanca-Espanha; Mestre em Estudios Interdisciplinares de Género pela Universidad de Salamanca-Espanha; Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte; Advogado e poeta.
Notas:
[1] TvT research project. (2016). Trans Murder Monitoring results: TMM TDV 2016 Update, Transrespect versus Transphobia Worldwide.
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