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quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

Análise contrafactual, Moro e a taxa de homicídio, por Jorge Alexandre Neves


  "Logo após sua fala, a televisão mostrou um pesquisador afirmando que as evidências científicas têm demonstrado de forma consistente que o desarmamento tem um impacto significativo de redução das taxas de homicídio. Todavia, o Dr. Moro tentou desqualificar as pesquisas científicas sobre o assunto ao afirmar, segundo a Folha de São Paulo, que: “Essa questão de estatística, de causa de violência, sempre é um tema bastante controvertido”. Ele mostrou que não tem a menor ideia do que seja uma análise contrafactual."

Foto Agência Brasil

GGN. - Chama a atenção como no governo Bolsonaro até os quadros mais qualificados demonstram sérias limitações intelectuais. Assisti há pouco a reprise de parte de uma entrevista de Sérgio Moro na qual ele afirma que se o desarmamento tivesse tido algum efeito sobre a taxa de homicídio, o Brasil não teria uma taxa tão alta hoje. Logo após sua fala, a televisão mostrou um pesquisador afirmando que as evidências científicas têm demonstrado de forma consistente que o desarmamento tem um impacto significativo de redução das taxas de homicídio. Todavia, o Dr. Moro tentou desqualificar as pesquisas científicas sobre o assunto ao afirmar, segundo a Folha de São Paulo, que: “Essa questão de estatística, de causa de violência, sempre é um tema bastante controvertido” (1). Ele mostrou que não tem a menor ideia do que seja uma análise contrafactual (2).
Que um indivíduo como Onyx Lorenzoni fale bobagens como a de que um liquidificador é tão perigoso quanto uma arma (3), ainda vá lá. Mas, uma figura como Sérgio Moro, Professor Doutor de uma grande universidade federal, falando bobagens desse calibre é algo chocante. A análise contrafactual é algo básico, até instintivo, do método científico. Será que Sérgio Moro fez Bacharelado, Mestrado e Doutorado (além de um aperfeiçoamento em Harvard) e não conseguiu aprender nada do método científico? Como me dizia meu velho professor Heraldo Souto Maior, na UFPE: “há doutos que não são doutores e há doutores que não são doutos” (4). Definitivamente, credencialismo não é meritocracia.
Fernanda Mena, jornalista da Folha de São Paulo, parece entender mais do método científico (5). Em um artigo publicado na FSP em 09 de novembro último, ela mostra, usando um gráfico com base em dados puramente descritivo (a terceira figura do seu texto), uma análise contrafactual – simples, porém útil – que evidencia o impacto do Estatuto do Desarmamento sobre a taxa de homicídios, no Brasil. O gráfico dela é igual ao que apresento, abaixo (o leitor pode achar que o efeito visual da linha está mais suavizada no gráfico dela, mas isso se deve apenas ao fato de que o aplicativo de construção de gráfico que ela usou produz uma figura mais alargada do que o que utilizei).

O gráfico acima mostra que: a) a taxa de homicídio no Brasil despenca entre 2002 e 2004 e; b) a partir de 2005 ela retoma uma tendência de crescimento, porém a um ritmo menor do que antes. Lembrando que o Estatuto do Desarmamento é de 2003, o gráfico indica haver um efeito robusto deste sobre a taxa de homicídio. Para ter maior confiança de que o efeito é relevante, fiz uma análise econométrica básica conhecida como Teste de Chow (6). Este teste mostrou que: a) o valor esperado da queda da taxa de homicídio após o Estatuto do Desarmamento foi de 3,14 homicídios por 100 mil e; b) que a elevação esperada da taxa anual cai de 0,60 homicídio por 100 mil no período anterior ao Estatuto do Desarmamento para 0,35 homicídio por 100 mil no período posterior. O gráfico abaixo mostra de forma mais clara a diferença entre os valores esperados antes e depois do Estatuto do Desarmamento.

Observe-se que é possível identificar duas retas bem diferentes para o período de 1996 a 2003 e para os anos posteriores. Na linguagem técnica, dizemos que houve uma quebra estrutural da regressão (ou uma descontinuidade na regressão) a partir de 2004. Há tanto uma mudança no coeficiente linear (uma queda abrupta entre 2002 e 2004) quanto no coeficiente angular (a reta se torna menos inclinada a partir de 2004). O gráfico abaixo deixa ainda mais clara a mudança no coeficiente linear.

Pode-se ver que os dados posteriores a 2003 geram uma curva de regressão menos inclinada do que os dados do período anterior. Como era de se esperar, o coeficiente de determinação (R2) é menor para os dados do período mais recente.
Portanto, podemos concluir que a análise contrafactual apresentada acima deixa bastante claro que o Estatuto do Desarmamento teve, sim, um efeito bastante relevante de contenção das taxas de homicídio, no Brasil. Ou seja, as taxas de homicídio atualmente seriam bem maiores se o Estatuto do Desarmamento não tivesse existido. Sérgio Moro precisa melhorar muito sua capacidade de embromação para se tornar um político mais competente.
Jorge Alexandre Neves - Ph.D. em Sociologia pela Universidade de Wisconsin-Madison (EUA), Professor Titular do Departamento de Sociologia da UFMG, Professor Visitante da Universidade do Texas-Austin (EUA) e da Universidad del Norte (Baranquilla, Colômbia), pesquisador do CNPq. Especialista em desigualdades socioeconômicas, análise organizacional, políticas públicas e métodos quantitativos.
(1) Talvez ele estivesse pensando no uso ridículo, absolutamente equivocado, da estatística bayesiana feita pelo procurador Deltan Dallagnol na denúncia que preparou contra o ex-presidente Lula no vexatório processo do tríplex.
(2) A contrafactual é a situação ou evento que não aconteceu, mas poderia ter acontecido. Os experimentos usam grupos selecionados aleatoriamente para conseguir a contrafactual de um grupo exposto a um tratamento, que seria, portanto, um grupo idêntico não exposto ao tratamento. No caso das taxas anuais de homicídio, a análise contrafactual tenta simular taxas de homicídio que teriam sido observadas se o Estatuto do Desarmamento não tivesse existido.
(3) Aliás, um dos ministros generais (não lembro qual, são tantos) falou algo semelhante, em uma entrevista na televisão. Porém, no lugar do liquidificador, usou o carro. Embora a escolha seja menos ridícula do que a do liquidificador – até porque o carro se tornou uma recorrente “arma” usada por terroristas – ele se esquece de um ponto fundamental: o carro é algo extremamente útil para o transporte, enquanto que armas de fogo só servem para ferir ou matar.
(4) Sérgio Moro está longe de ser o único doutor a formar o alto escalão do governo de Bolsonaro a demonstrar claras limitações intelectuais. Aliás, não sei onde conseguiram encontrar tantos doutores que não são doutos. Inclusive, formados em Chicago (o que não é nenhuma novidade, Joseph Stiglitz – prêmio Nobel de Economia, professor de Columbia, tendo antes lecionado em Princeton e Stanford – relatou que, quando foi economista chefe do Banco Mundial, viu que o mercado financeiro está repleto dos piores egressos dos melhores programas de Ph.D. do mundo). Habilidade intelectual significa capacidade analítica, o que parece ser algo bem escasso neste governo.
(5) Tive a curiosidade de buscar seu CV. Além de jornalista, é Mestre em Sociologia pela LSE-Universidade de Londres e está cursando o doutorado em RI na USP. Seus estudos parecem ter lhe dado mais capacidade analítica do que a alcançada pelo esforço de formação acadêmica de Sérgio Moro.
(6) Há análises bem mais complexas do que essa, mas que me tomariam muito mais tempo e só caberiam em um trabalho para publicação em um periódico científico. Para uma aplicação mais acadêmica do Teste de Chow, ver um capítulo, do qual fui um dos autores, de um livro organizado por Ernesto Amaral, hoje professor da Universidade do Texas-A&M (http://www.ernestoamaral.com/docs/books/avaliacao11.pdf).

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