Não foi delírio, foi ensaio
O que assistimos bestificados, nessa primeira semana de janeiro, como se a virada do ano tivesse nos levado a outro país, não foi ao início de um novo governo, mas à implantação de um novo regime político, de traço teocrático-militar-fundamentalista e nitidamente ultraliberal na economia. É preciso entender sua natureza e não apostar que terá vida curta.
É ilusão também acreditar que os absurdos da semana inaugural foram apenas expressões de regozijo e júbilo, temperados pelo revanchismo, na chegada ao poder. O presidente Bolsonaro tomou posse e prosseguiu brandindo a retórica de guerra ao “inimigo interno”, especialmente PT, esquerda, jornalistas e veículos de comunicação (exceto as duas TVs amigas). Ao contrário do que alguns esperam, ele não vai descer do palanque nem abrandar o discurso, pois isso é próprio da natureza do regime e faz parte de sua estratégia.
Engolimos com naturalidade a proclamação de inverdades, como a de que ele veio libertar o país do socialismo que nunca passou por aqui, ou a de que foi esfaqueado por “inimigos da pátria”, apesar da conclusão da PF, de que foi obra solitária de um desequilibrado. E tome tuitadas contra ONGs, índios e destruidores da família e dos bons costumes, com ministros da tropa ideológica fazendo coro. Quando se aventurou a falar sobre ações de governo, Bolsonaro explicitou seu despreparo, trombando com a própria equipe: confirmou um falso aumento de imposto, falou em idades mínimas de aposentadoria que desacreditam a reforma pretendida e questionou a fusão Embraer-Boeing, que os privatistas de Paulo Guedes aplaudem.
A semana inaugural não foi um happening de chegada, foi ensaio do que virá. A cruzada contra a esquerda, a imprensa, a ideologia de gênero, o marxismo cultural, a doutrinação e erotização das crianças, entre outras assombrações, vai continuar, enquanto as alas operacionais do governo (militares, Guedes e Moro) fazem seu trabalho. É preciso fidelizar os 39,2% de eleitores que elegeram Bolsonaro (em votos válidos), e danem-se os outros 60,8% que não votaram nele, votando em branco, nulo ou não comparecendo.
As abobrinhas ideológicas entretem, deixando em segundo plano o desmonte de tudo o que significou avanços sociais e civilizatórios. E não estou falando de governos petistas, mas do pacto firmado na Constituição de 1988. Rompido para que o PT fosse tirado do governo, levou à eleição de Bolsonaro. Por tudo isso, ele não vai descer do palanque.
Despedida
Interrompo aqui minha colaboração com o Jornal do Brasil, iniciada há quase um ano, quando voltou a circular impresso para ocupar seu importante lugar na história da imprensa brasileira.
Neste momento político tão incerto e insólito, é grande a responsabilidade de jornais, jornalistas e de todas as mídias livres diante de um governo autoritário, anticultural e avesso ao contraditório. O Congresso será fatalmente amestrado e o Judiciário tende a continuar lavando as mãos, como tem feito desde que começou a ser gestado, com a Lava Jato e o impeachment, o esvaziamento da democracia e a relativização do Estado de Direito. Movimentos sociais estarão sob ataque e a oposição partidária terá força limitada. Caberá, sobretudo, à imprensa a tarefa de fiscalizar o governo, levar seus atos ao debate e iluminar, com informação e verdade, o cenário sombrio.
Assim, é com um travo de pesar que deixo a liça diária para retomar um projeto acadêmico interrompido e atender a outras urgências pessoais. Tenho com o JB o compromisso de retomar a colaboração, se não diária, pelo menos semanal. Ao Omar Peres reitero o respeito pela ousadia empreendedora e agradeço a oportunidade de ter ocupado este honrado espaço. Obrigada aos colegas que, com fibra profissional, vêm sustentando o novo JB: Gilberto Meneses Cortes, Toninho Nascimento, Octavio Costa e Alexandre Machado e toda a valorosa redação. Muito obrigada aos leitores que me honraram com a leitura, a crítica e o incentivo. Até breve.
Fonte do texto: Contexto Livre
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