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quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

O lawfare neoliberal e o sacrifício de Lula, pela jurista Carol Proner, Doutora em Direito, professora da UFRJ, diretora do Instituo Joaquín Herrera Flores – IJHF e coordenadora do livro “Comentários a uma Sentença Anunciada: Processo Lula”.


"Do ponto de vista do direito, a crítica reage incansável na tarefa de denunciar a chicana entre setores do Poder Judiciário, do Ministério Público, da Polícia Federal, respaldados pela mídia seletiva. Constrange perceber a unanimidade orquestral dos votos de compadrio de desembargadores que parecem ter saído de um happy hour no Country Clube de Curitiba, produzindo um julgamento mais abrangente na exceção do que o da sentença de piso do “colega” Sérgio Moro.
"É exasperante constatar que funcionários públicos investidos na função de administrar a justiça possam, ignorando normas e princípios legais consolidados, produzir um resultado que afeta diretamente o direito de uma sociedade escolher o seu soberano representante. Afeta até mesmo o direito de não escolher este candidato, comprometendo a sanidade do processo eleitoral." - Carol Proner

Publicado no Sul21:

O lawfare neoliberal e o sacrifício de Lula (por Carol Proner)



Após a grotesca perseguição jurídica, Lula sai maior, mais altivo, e seguirá liderando processos democráticos dentro e fora do país”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)
Carol Proner (*)
A expectativa pelo destino político do pré-candidato à Presidência da República, Luiz Inácio Lula da Silva, será o tema central da política brasileira até as eleições de outubro de 2018. Procurando transmitir confiança, mesmo sofrendo ataques que visam a execração pública, Lula sabe que será o grande protagonista do pleito eleitoral. E, no atropelo, os próceres do judiciário não perceberam que pisaram no acelerador da união das esquerdas que, também pelo gatilho de apoio nas eleições, unem-se denunciando que “eleição sem Lula é fraude”.
“Ferido, mas não morto”, bradam tanto as forças de esquerda para animar a militância, como as capas de revistas da direita raivosa, oferecendo imagens fúnebres do líder moribundo que, para desespero dos editorialistas, ousa crescer ainda mais nas pesquisas de intenção de votos. Lula diz estar pronto para ser preso, talvez o sacrifício necessário para que a politização no sistema de justiça seja desmascarada.
Do ponto de vista do direito, a crítica reage incansável na tarefa de denunciar a chicana entre setores do Poder Judiciário, do Ministério Público, da Polícia Federal, respaldados pela mídia seletiva. Constrange perceber a unanimidade orquestral dos votos de compadrio de desembargadores que parecem ter saído de um happy hour no Country Clube de Curitiba, produzindo um julgamento mais abrangente na exceção do que o da sentença de piso do “colega” Sérgio Moro.
É exasperante constatar que funcionários públicos investidos na função de administrar a justiça possam, ignorando normas e princípios legais consolidados, produzir um resultado que afeta diretamente o direito de uma sociedade escolher o seu soberano representante. Afeta até mesmo o direito de não escolher este candidato, comprometendo a sanidade do processo eleitoral.
Esse é um dilema para toda a esquerda, entender as consequências da politização de setores do judiciário e a falta de limites de um poder descontrolado. No entanto, concordo com os criminalistas que entendem ser necessário insistir na análise técnica. Mesmo conscientes da intensa seletividade, é fundamental analisar a atecnia do judiciário de exceção para constatar os abusos propositais de uma decisão inquisitorial e primitiva aos olhos do mundo. E não é necessário ir muito longe, basta o socorro das fontes mais elementares da teoria do direito, as que exigem “não mais que o mínimo” de tecnicidade, para perceber que o tribunal alimentou o monstro, confirmou a decisão fora do direito e deu azo ao potencial disciplinar e paradidático que já produz vítimas e algozes em outras jurisdições.
Faço parte de um grupo de juristas que esmiuçou o que chamamos de “sentença anunciada contra Lula”, buscando entender o fundamento de uma decisão que, já sabíamos, seria condenatória. Escrevemos mais de uma centena de artigos para alertar a percepção de uma deriva autoritária no direito, com o uso da guerra jurídica que desfigurou as operações de combate à corrupção e promoveu julgamentos políticos, afastando a “Operação Lava-jato” das garantias do devido processo legal. Muitos de nós, crédulos, estávamos esperançosos numa sentença reformada pelo Tribunal, tanto pela falta de tecnicidade – (in)competência de juízo, dosimetria da pena fixada muito além do comum, delações e ausência de nexo causal e de provas  – como pela vasta violação principiológica do justo processo, o desrespeito ao estado de inocência, o uso de provas ilícitas, a violência às prerrogativas, a condução escandalosamente parcial do juiz-acusador de primeiro grau, o desrespeito ao princípio da “paridade de armas”, regra medieval que remonta a ordem da cavalaria como sustentáculo de legitimidade de um julgamento justo até mesmo no direito da guerra.
Aliás, é tudo tão espantoso que não seria exagero preferir o ius in bello como forma de melhorar as chances do ex-Presidente. O direito penal de Curitiba, como agora também o de Porto Alegre, excedeu qualquer limite reconhecido nos marcos internacionais de proteção a um acusado, decidindo condená-lo por ser quem é e não pelo que ele fez ou deixou de fazer. Um julgamento pernóstico, agarrando-se em falsa erudição e nos estrangeirismos para embelezar a leitura dos votos em rede nacional, estigmatizando o acusado, atacando-o institucionalmente como ex-Presidente, atingindo-o na própria honra, de familiares, amigos e alcançando também o Partido dos Trabalhadores.
Dos 300 jornalistas credenciados para assistir ao julgamento, 53 eram estrangeiros. Aos olhos do mundo, a democracia do Brasil está em decadência, um espetáculo lamentável de um velho mundo político, uma sociedade de castas onde os dirigentes não obedecem às mesmas leis dos miseráveis (Le Monde). Um editorialista do The New York Times, Mark Weisbrot, resumiu os elementos técnico-políticos do julgamento, entendendo que a democracia brasileira está sendo empurrada para o abismo não apenas pela manobra do golpe contra Dilma Rousseff, mas também pelo protagonismo de um judiciário persecutório e espetacular, em aliança com setores da imprensa. O manifesto que denuncia o risco de fraude nas eleições já ultrapassou as 250 mil assinaturas de intelectuais do mundo inteiro, escandalizados com a falta de decoro dos funcionários públicos da justiça que, valendo-se de seus cargos, agem como um tribunal político com o fim de retirar um candidato e tudo o que representa da corrida eleitoral.
No campo jurídico, portanto, nos perguntam o que fazer a partir da definição da fase colegiada de lawfare, se vale insistir na técnica para escancarar ainda mais as nulidades e os vícios, se ainda há expectativa junto ao próprio TRF4, ou se devemos choramingar, junto aos ministros do silêncio da Suprema Corte, alertando para o senso de responsabilidade diante do iminente incêndio de ânimos nas legitimas vítimas desse processo anunciado de destruição democrática.
Tendo a pensar que a resposta está muito distante da articulação de uma comitiva de expertos em visita à Presidência do Supremo que, aliás, já sinalizou, após sair de reunião com representantes da Shell, Coca-Cola, Souza Cruz, Siemens, que fará ouvidos moucos. Ora, sabemos que o processo contra Lula está longe de ser somente uma batalha jurídica. Somos conscientes de que é apenas encenado no palco das legitimidades togadas de plurais majestáticos. Tomando distância, é evidente que o processo tem muito mais a ver com a des-democratização das sociedades mundiais e as ofensivas para desarmar soberanias.
Para compreender o que move a roda de golpes que atinge o Brasil, já tendo passado pela fase do golpe parlamentar e agora na etapa jurídica, é preciso emprestar as ferramentas de análise da sociologia e da ciência política, de autores como Laval e Dardot que descrevem “a nova razão do mundo”, a racionalidade neoliberal a corromper todas as esferas da existência humana, indo do individual ao estatal, passando por novas formas de gestão do capitalismo financeiro que borram a separação entre público e privado, entre direito público e direito privado, entre funcionário público e empresário-lobista, entre Estado e mercado.
Eis as pistas para entender a incomparável crise de regressão de direitos e a razão pela qual sociedades inteiras em vias de catástrofe não resistem eficazmente ao que lhes pode acontecer. Naquilo que interessa vincular à crise brasileira e ao jurídico, é impressionante perceber as modificações e a submissão do direito à racionalidade privada nas últimas décadas, do direito administrativo tecnocrático ao direito penal do inimigo, passando pela modernização flexibilizadora do direito do trabalho e pela submissão do direito constitucional aos princípios da austeridade e da eficiência econômica.
A Escola de Chicago já pregava, em meados do século XX, a necessidade de formar juízes e convencê-los, por meio de cursos e seminários, das teses da desregulação do setor privado em favor de um laissez-faireabsoluto. Controlar as cortes e os tribunais arbitrais passou a ser meta para a lex mercatoria em busca de um poder ilimitado que, juntamente com o controle da mídia e das forças armadas, garantiriam o triunfo do capitalismo contemporâneo. Registre-se, um capitalismo extremamente agressivo, que prescinde de qualquer acordo democrático e cuja faceta política é o neoconservadorismo nacionalista.
Vendo-se a partir dessa moldura ampliada, há razões de sobra para a iminente prisão de Lula ou ao menos a sua inabilitação jurídica para concorrer ao pleito de 2018, o que não ocorrerá sem grande oposição das forças democráticas que já demonstram farta disposição para o confronto. De toda a sorte, após a grotesca perseguição jurídica, Lula sai maior, mais altivo, e seguirá liderando processos democráticos dentro e fora do país, auxiliando a pensar instrumentos revogatórios das reformas austericidas e propondo projetos restauradores dos direitos usurpados.
(*) Doutora em Direito, professora da UFRJ, diretora do Instituo Joaquín Herrera Flores – IJHF.


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