"(...) O povo sabe que o poder de se impor como realidade é dele e não de uma emissora de televisão ou de um grupo de mídia. O povo ‘sabe mesmo que ele não saiba’, porque o que está em jogo em processos históricos e populares não é da ordem do racional. Por isso o medo permanente dos consórcios de poder, por isso o desespero, por isso a ameaça, por isso a chantagem (midiática, via discurso e noticiário sob medida)."- Gustavo Conde
Do 247:
Por Gustavo Conde
Ela interfere na realidade, óbvio, mas não se confunde com ela. É preciso separar as coisas. Talvez esse fenômeno seja melhor definido como Síndrome de Globo: se a Globo deu, existe, mesmo que eu não concorde com essa leitura.
Ora, essa é uma estratégia igualmente alienada e fracassada como aquela que criticamos, dos alienados que leem a Folha de S. Paulo “acreditando”. Vocês já pensaram se Lula agisse com base no noticiário padrão brasileiro? Ele já teria se matado como, aliás, alguns jornalistas já sugeriram e pediram.
Pois, vos digo: não está. Está tudo desorganizado. E, no limiar dessa desorganização, desse lento naufrágio dos artífices do golpe, uma entidade age de maneira coletiva e relativamente insondável, distante dos desejos pessoais e subjetivos: o povo brasileiro.
O povo brasileiro, neste momento, dá uma aula de democracia. Mas, como, Gustavo, se ele não está nas ruas? Para isso, eu tenho 7 respostas:
1) Ele ESTÁ nas ruas, a Globo é que não noticia.
3) As ruas se tornaram um preposto da Rede Globo. A emissora associou demais o significante à coisa (ruim): ‘ruas’ = ‘impeachers’. Até desinfetar o sentido, vai tempo.
4) Hoje, a polícia prende e mata, e prende e mata só um tipo de manifestante: aquele que cobra respeito à constituição.
5) A pergunta é ambígua porque não estar nas ruas – e confiar em um sistema acordado democraticamente – é respeitar a democracia (talvez, até demais).
6) A resposta antiga que a classe média dava quando a Globo não lhe reservara as ruas era: “as pessoas precisam trabalhar”. Por incrível que pareça, a população pobre também precisa.
7 – e mais importante) O povo brasileiro, coletivamente falando, é mais ambicioso do que isso. Ele não se contenta com o mero script histórico tão manipulado ao longo dos séculos: rua, sangue, golpe, rua, sangue, golpe. O povo brasileiro é igual a Lula. Ele quer ganhar no voto, no mais puro contexto democrático, mesmo que ele seja provisoriamente uma miragem. O povo sabe que o poder de se impor como realidade é dele e não de uma emissora de televisão ou de um grupo de mídia. O povo ‘sabe mesmo que ele não saiba’, porque o que está em jogo em processos históricos e populares não é da ordem do racional. Por isso o medo permanente dos consórcios de poder, por isso o desespero, por isso a ameaça, por isso a chantagem (midiática, via discurso e noticiário sob medida).
É dessa compreensão incompleta da relação fato-realidade-alienação-lucidez que decorre todo o pessimismo de pessoas supostamente esclarecidas. Chegam mesmo a se indignar diante de um discurso que aponte esperança e que manifeste autoestima, codificando-o como “otimismo”, tal o grau de aceitação de uma realidade que eles mesmos sabem que não existe.
Uma lição básica que a história cansa de mostrar é: os processos são cíclicos. Tudo o que começa, termina. É quase física pura. Não há porque, portanto, duvidar dos desfechos apoteóticos e catárticos, porque eles assim o são apenas pela percepção dramática dos sujeitos. Moro ser preso? Factível. Deltan ser processado? Factível. Janaina Paschoal ser processada? Já em curso. Golpistas na cadeia? Muitos.
Em suma, é preciso entender que não é toda a justiça brasileira que é política. Certamente, a maioria dos magistrados é vocacionada e correta.
E qual é a resposta tremendamente democrática e histórica que o povo brasileiro dá neste momento? Primeiro, é preciso aceitar que nem toda a resistência popular tem que ser cinematográfica e transmitida ao vivo. Essas, em verdade, são as mais frágeis e efêmeras.
Uma resistência popular real é aquela que amadurece no seio da coletividade e na instância do inconsciente. Respondendo à pergunta acima: a população opera dando a sua opinião periódica sempre que indagada pelos institutos de pesquisa. Ela diz, repete e intensifica: queremos Lula e rejeitamos o golpe.
Tem algum argumento mais persuasivo que esse? Sólido, consistente, crescente, registrado, publicado? Não, não tem. O povo, esta entidade coletiva que habita um lugar acima das racionalidades, muito calmamente vai deixando clara a sua posição e avisando: respeitem, porque não respeitarem este instrumento, a história imporá o princípio da reciprocidade.
É preciso, portanto, combater o pessimismo, o entreguismo, o ceticismo que, a rigor, trabalham para aqueles que golpearam a democracia e querem continuar golpeando. Eles já estão perdendo, já estão sendo arrastados pelos próprios processos viciados que criaram.
Tenhamos, nós que criticamos a manipulação da imprensa política, a humildade de aceitar que algo que está substancial e espiritualmente acima de nós, decida o destino e a forma serena com que o retorno da democracia irá apontar no horizonte. Se não se quiser ajudar esse povo, que não se o atrapalhe.
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