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sábado, 2 de dezembro de 2017

A entidade "povo brasileiro". Artigo de Gustavo Conde



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"(...) O povo sabe que o poder de se impor como realidade é dele e não de uma emissora de televisão ou de um grupo de mídia. O povo ‘sabe mesmo que ele não saiba’, porque o que está em jogo em processos históricos e populares não é da ordem do racional. Por isso o medo permanente dos consórcios de poder, por isso o desespero, por isso a ameaça, por isso a chantagem (midiática, via discurso e noticiário sob medida)."- Gustavo Conde


Do 247:

Por Gustavo Conde

Nós criticamos a alienação de muita gente – que acredita cegamente no que lê na imprensa – mas temos que ter alguma humildade e tomar algum cuidado.

Muitos de nós que confiamos no próprio taco no que diz respeito à interpretação de texto, cometemos um singelo equívoco: ao constatar que muitos consideram realidade factual o que imprensa noticia, passamos a considerar que essa fantasia da imprensa é poderosa a ponto de se confundir com a realidade.

Ela interfere na realidade, óbvio, mas não se confunde com ela. É preciso separar as coisas. Talvez esse fenômeno seja melhor definido como Síndrome de Globo: se a Globo deu, existe, mesmo que eu não concorde com essa leitura.

Ora, essa é uma estratégia igualmente alienada e fracassada como aquela que criticamos, dos alienados que leem a Folha de S. Paulo “acreditando”. Vocês já pensaram se Lula agisse com base no noticiário padrão brasileiro? Ele já teria se matado como, aliás, alguns jornalistas já sugeriram e pediram.

É dessa síndrome que vem o pessimismo crônico, tão cultural quanto a empolgação com o sorteio das chaves da copa do mundo. Se alguém diz que Moro será preso, imediatamente o superego cativado vai lá e diz (a despeito do desejo): “é claro que não”. E, não raro, emenda com uma expressão assaz original: “está tudo dominado”.

Pois, vos digo: não está. Está tudo desorganizado. E, no limiar dessa desorganização, desse lento naufrágio dos artífices do golpe, uma entidade age de maneira coletiva e relativamente insondável, distante dos desejos pessoais e subjetivos: o povo brasileiro.

O povo brasileiro, neste momento, dá uma aula de democracia. Mas, como, Gustavo, se ele não está nas ruas? Para isso, eu tenho 7 respostas:

1) Ele ESTÁ nas ruas, a Globo é que não noticia.

2) O povo não está ocupando as avenidas famosas porque ali a polícia política não deixa (recomendo conhecer o acampamento Povo Sem Medo em São Bernardo do Campo, em que 10 mil famílias estão em vigília permanente pela volta da democracia).

3) As ruas se tornaram um preposto da Rede Globo. A emissora associou demais o significante à coisa (ruim): ‘ruas’ = ‘impeachers’. Até desinfetar o sentido, vai tempo.

4) Hoje, a polícia prende e mata, e prende e mata só um tipo de manifestante: aquele que cobra respeito à constituição.

5) A pergunta é ambígua porque não estar nas ruas – e confiar em um sistema acordado democraticamente – é respeitar a democracia (talvez, até demais).

6) A resposta antiga que a classe média dava quando a Globo não lhe reservara as ruas era: “as pessoas precisam trabalhar”. Por incrível que pareça, a população pobre também precisa.

7 – e mais importante) O povo brasileiro, coletivamente falando, é mais ambicioso do que isso. Ele não se contenta com o mero script histórico tão manipulado ao longo dos séculos: rua, sangue, golpe, rua, sangue, golpe. O povo brasileiro é igual a Lula. Ele quer ganhar no voto, no mais puro contexto democrático, mesmo que ele seja provisoriamente uma miragem. O povo sabe que o poder de se impor como realidade é dele e não de uma emissora de televisão ou de um grupo de mídia. O povo ‘sabe mesmo que ele não saiba’, porque o que está em jogo em processos históricos e populares não é da ordem do racional. Por isso o medo permanente dos consórcios de poder, por isso o desespero, por isso a ameaça, por isso a chantagem (midiática, via discurso e noticiário sob medida).

É dessa compreensão incompleta da relação fato-realidade-alienação-lucidez que decorre todo o pessimismo de pessoas supostamente esclarecidas. Chegam mesmo a se indignar diante de um discurso que aponte esperança e que manifeste autoestima, codificando-o como “otimismo”, tal o grau de aceitação de uma realidade que eles mesmos sabem que não existe.

Uma lição básica que a história cansa de mostrar é: os processos são cíclicos. Tudo o que começa, termina. É quase física pura. Não há porque, portanto, duvidar dos desfechos apoteóticos e catárticos, porque eles assim o são apenas pela percepção dramática dos sujeitos. Moro ser preso? Factível. Deltan ser processado? Factível. Janaina Paschoal ser processada? Já em curso. Golpistas na cadeia? Muitos.

Em suma, é preciso entender que não é toda a justiça brasileira que é política. Certamente, a maioria dos magistrados é vocacionada e correta.

E qual é a resposta tremendamente democrática e histórica que o povo brasileiro dá neste momento? Primeiro, é preciso aceitar que nem toda a resistência popular tem que ser cinematográfica e transmitida ao vivo. Essas, em verdade, são as mais frágeis e efêmeras.

Uma resistência popular real é aquela que amadurece no seio da coletividade e na instância do inconsciente. Respondendo à pergunta acima: a população opera dando a sua opinião periódica sempre que indagada pelos institutos de pesquisa. Ela diz, repete e intensifica: queremos Lula e rejeitamos o golpe.

Tem algum argumento mais persuasivo que esse? Sólido, consistente, crescente, registrado, publicado? Não, não tem. O povo, esta entidade coletiva que habita um lugar acima das racionalidades, muito calmamente vai deixando clara a sua posição e avisando: respeitem, porque não respeitarem este instrumento, a história imporá o princípio da reciprocidade.

É preciso, portanto, combater o pessimismo, o entreguismo, o ceticismo que, a rigor, trabalham para aqueles que golpearam a democracia e querem continuar golpeando. Eles já estão perdendo, já estão sendo arrastados pelos próprios processos viciados que criaram.

Tenhamos, nós que criticamos a manipulação da imprensa política, a humildade de aceitar que algo que está substancial e espiritualmente acima de nós, decida o destino e a forma serena com que o retorno da democracia irá apontar no horizonte. Se não se quiser ajudar esse povo, que não se o atrapalhe.

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