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domingo, 29 de outubro de 2017

O rastro da onda ultra-reacionária: derrocada dos direitos e moralismo compensatório, por Flávia Biroli


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"Precisamos discutir se o modo de construção das resistências e das lutas nos últimos 30 anos terá potência política neste momento em que o neoliberalismo se torna antiliberal e confronta mesmo agendas mínimas de direitos humanos e sociais."
GGN. - Há dois anos, em outubro de 2015, publiquei nesta coluna um texto sobre a onda ultraconservadora e os riscos para a democracia, procurando caracterizá-la a partir do Congresso Nacional. Utilizei a metáfora da onda para registrar que se acumulavam e ganhavam vulto reações à agenda de direitos humanos e de direitos sociais. Não era possível, ainda, avaliar quais setores da sociedade dariam volume a essa onda e o que ela carregaria com ela. Hoje sabemos um pouco mais do que a mantém em movimento: é feita da dinâmica acelerada de retirada de direitos e da aposta no moralismo compensatório como forma de canalizar politicamente frustrações e de desviar a atenção do desmonte em curso.
Naquele momento, Eduardo Cunha, hoje preso no Complexo Médico-Penal de Pinhais (PR), presidia a Câmara dos Deputados e dava à tramitação de projetos para promover retrocessos nos direitos das mulheres e da população LGBT um ritmo quase vertiginoso, que anunciava o estilo do seu protagonismo na deposição de Dilma Rousseff. Digo “quase” vertiginoso porque sabemos, agora, o que viria nos dois anos que nos trouxeram a este outubro. O golpe de 2016, que permitiu a ampliação do controle de setores reacionários sobre a política nacional, se prolongaria no ambiente político que tornou possível a retirada de direitos trabalhistas, recuos na definição e fiscalização do trabalho escravo e a inclusão de uma intervenção militar como alternativa no cenário político. Colaborou para a versão nacional de um problema que não se esgota no Brasil: a conformação de um ambiente social antiliberal, que coloca em xeque o pluralismo e os direitos individuais. Os ataques à arte e ao pensamento crítico mostram que está em curso a promoção de códigos morais conservadores por diversos grupos sociais, que apostam na potencial reação de algumas camadas da população a transformações sociais profundas nos padrões conjugais, afetivos e da sexualidade.
Qual democracia estava em risco quando, há dois anos, escrevi aqui sobre a onda ultraconservadora? Uma democracia insuficiente, é certo. Mas os últimos 30 anos haviam trazido as disputas pela construção democrática para novos patamares. A Constituinte de que resultou a Constituição Federal de 1988 foi palco de embates em que grupos conservadores e protagonistas da ditadura de 1964 puderam mostrar sua força na conformação da nova institucionalidade. Apesar disso, a atuação política de movimentos sociais, atores e organizações de caráter progressista resultou na incorporação da agenda de direitos humanos e de uma perspectiva distributiva na abordagem da pobreza e das desigualdades. Não se trata de exaltar o processo democrático brasileiro, mas de explicitar o papel político dos avanços constitucionais para que, nos embates difíceis que se deram nos anos 1990, uma agenda progressista ganhasse legitimidade e fosse se transformando em novos debates, legislação infraconstitucional, políticas públicas e diretrizes para políticas de Estado.
Parece-me razoável afirmar que a chegada do Partido dos Trabalhadores ao poder com as eleições de 2003 foi engrossada pelas insatisfações com a persistência das desigualdades e com os limites da política neoliberal adotada por Fernando Henrique Cardoso, mas também pelo fortalecimento de agendas que podiam ser mobilizadas pelo PT e por Lula como capital político a partir de sua própria história. Direitos sociais, combate à pobreza e às desigualdades e, de modo mais amplo, a defesa da construção de um país mais justo foram temas que passaram a balizar os debates nacionais a partir de 1988, impondo malabarismos terminológicos àqueles identificados com a conservação do status quo e, até certo ponto, com as forças de mercado, como se pôde ver pela impopularidade da temática das privatizações nos debates eleitorais. Sim, numa perspectiva das estratégias para eleições e da construção de alianças para governar, o PT se adaptou à velha política e moderou seu projeto; de outra perspectiva, no entanto, pode-se afirmar que a sociedade é que se adaptou em alguma medida à trajetória histórica do PT. Esses dois processos existiram concomitantemente, mas ressalto aqui as transformações nas expectativas de diferentes setores da população e a “normalização” da agenda de direitos humanos e sociais, incorporada às políticas de Estado após 1988.
O ambiente internacional dos anos 1990 nada deveu em ambiguidade ao nacional. Enquanto o Consenso de Washington impunha recuos nos investimentos sociais e na regulação das relações de mercado pelos estados nacionais, fóruns internacionais de debates com forte participação de diferentes setores da sociedade civil organizada e acordos multilaterais abriam a possibilidade de constranger mais diretamente esses mesmos estados a reconhecer a diversidade entre as pessoas e promover o respeito à igual dignidade por meio de leis e de políticas para o combate à violência contra segmentos específicos da população. Penso nos encontros promovidos pela Organização das Nações Unidas no período, como a Conferência de Direitos Humanos de Viena, de 1993, a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (Conferência do Cairo), de 1994, e a Conferência Mundial sobre a Mulher (Conferência de Pequim), de 1995. Novas compreensões dos direitos em disputa e dos grupos que demandavam reconhecimento como sujeitos políticos legítimos se estabeleceram. Foi esse o ambiente em que movimentos LGBT e feministas ampliaram seus recursos materiais e simbólicos para atuar nos espaços nacionais. Embora faça sentido pensar que essa ampliação teve custos, levando a ajustes nas suas agendas, houve nesse processo ganhos de legitimidade que deslocaram o eixo dos debates em torno de direitos e políticas.
Embora seja sempre um risco resumir processos políticos em breves cronologias, vejo no início dos anos 2000 um aprofundamento das ambiguidades já presentes nos anos 1990. Com o fortalecimento da lógica de mercado e o enfraquecimento da autonomia política dos Estados nacionais, ampliaram-se os custos da resistência e da construção de alternativas sociais para o desenvolvimento nos contextos nacionais. Ao mesmo tempo, agendas referenciadas pelos direitos humanos, associadas em diferentes graus a perspectivas distributivas e de proteção social, compuseram a dimensão progressista da política em países latino-americanos nos quais, como no caso brasileiro, partidos e lideranças com trajetória de esquerda chegaram ao poder.
Minha hipótese é um tanto óbvia, mas não repercute na maior parte das análises por trilharem caminhos pelas explicações econômicas ou pela dimensão dos direitos humanos e da chamada “política de identidades”. É a seguinte: a agenda dos direitos humanos e de grupos específicos que levaram novos problemas e demandas ao debate público e ao âmbito estatal, como os movimentos LGBT, feministas, negros e indígenas, não incidiu em um universo paralelo ao da política partidária e das diretrizes econômicas. Em alguns casos isso é bastante evidente, como o da demarcação de terras indígenas e o da incorporação de uma perspectiva racial e de gênero à política de proteção social. Em outras frentes, como o casamento entre pessoas do mesmo sexo, o combate à violência contra as mulheres e o direito ao aborto, há mais mediações. Um dos pontos de contato nesses casos é a definição da “família funcional” em um contexto de reestruturação produtiva. Vale lembrar, ainda, que avanços contrasseculares, nos quais se promove essa concepção ao mesmo tempo convencional e ajustada da família, também têm relação direta com o poder de grupos religiosos que operam como empresas e mobilizam o apoio dos fieis como capital para obter vantagens políticas e financeiras.
O fato de que no Brasil dos anos 2000 a agenda dos movimentos progressistas tenha sido empurrada para as margens pelo próprio partido historicamente identificado com ela, numa dinâmica do te-reconheço-mas-por-favor-se-comporte, não significa: (1) que os movimentos e organizações seriam passivos nesse processo, reduzindo as expectativas de incidir sobre o processo político quando as brechas existissem; (2) que seria possível controlar o grau de tolerância dos setores conservadores, contendo os primeiros e oferecendo satisfações de outra ordem aos segundos. O ambiente político em que demandas, apostas estratégicas e insatisfações se estabelecem e são potencializadas ou enfraquecidas é multifacetado. Interesses econômicos, interesses de autopreservação e ampliação do poder de agentes políticos, assim como a busca de fazer valer novos interesses a partir de lutas históricas e com forte apelo simbólico, ganham pesos distintos e podem em alguns momentos predominar, mas não são neutralizados uns pelos outros.
Parte dessa história pode ser contada se prestarmos atenção às reações aos Planos Nacionais de Direitos Humanos, sobretudo ao PNDH-3, publicado em 2009. Nele, as demandas dos movimentos emergem, como disse Sérgio Adorno em artigo publicado na revista Novos Estudos em março de 2010, em linguagem distinta daquela com a qual o Partido dos Trabalhadores operava predominantemente no espaço institucional e nas campanhas políticas mais recentes. Essa linguagem ecoava sua história e a presença dos movimentos sociais que constituíram sua base. Talvez houvesse naquele momento a compreensão de que finalmente seria possível enfrentar mais abertamente e a partir do ambiente estatal limites históricos da democracia brasileira, como a violenta restrição dos grandes proprietários de terra à reforma agrária, a combinação entre concentração da propriedade de mídia e ausência de controle social sobre os meios de comunicação, a violência contra mulheres e contra a população LGBT e a recusa a conceder a esses segmentos direitos de cidadania já garantidos a outros. Um dos eixos mais polêmicos foi, como se sabe, a recomendação de que fosse instaurada uma Comissão Nacional da Verdade para apurar a responsabilidade dos agentes do Estado pelos crimes ocorridos durante a ditadura de 1964. Ficou claro, naquele momento, que setores das empresas de mídia e do establishment político conservador estavam dispostos a amplificar a posição dos militares em defesa da ditadura e da própria corporação, assim como amplificaram as posições dos ruralistas e, em menor medida, a de cristãos conservadores. Estes últimos têm seus próprios meios, veículos e públicos, e souberam desde então explorar crescentemente a ideia de que haveria um plano esquerdista “contra a família”.
Nossas narrativas sobre a crise e a onda ultraconservadora corresponderão a essa complexidade quando forem capazes de combinar diferentes sequências de acontecimentos, diferentes dimensões das disputas. O processo recente nos indicou essa necessidade também em eventos simbólicos. Entre as manifestações favoráveis à deposição de Rousseff, no Parlamento, nas redes sociais e nas ruas, emergiram concepções convencionais da família, visões pró-mercado e contrárias a políticas sociais, um moralismo de ordem religiosa e secular que se opõe a direitos individuais e recusa e pluralidade e, mais pontualmente, a defesa da militarização e do retorno a uma ditadura.
Desde então, ficou ainda mais evidente que há mais do que convergência entre as ações dos neoliberais pela desregulação dos direitos sociais e trabalhistas e as ações dos reacionários “morais”. Ícones do neoliberalismo no contexto nacional se aproximam de setores evangélicos conservadores, numa performance que pode ter muitos efeitos nos anos que virão: o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, visita lideranças evangélicas em sua tentativa de firmar-se como pré-candidato às eleições de 2018; os garotos do Movimento Brasil Livre confirmam em conversa de WhatsApp relatada pela revista Piauí (“O grupo da mão invisível”, publicado em 3 de outubro de 2017) a estratégia de aliança entre o que chamam de “setores modernos da economia”, ruralistas e grupos evangélicos para as eleições de 2018. Na mesma conversa, dão ainda uma canja sobre seu alinhamento aos setores reacionários utilizando o termo “desarmamentista”, comum no debate estadunidense, para desvalorizar um possível adversário no mesmo campo ideológico em que se movem.
Desde meados de setembro deste ano, o ultraconservadorismo ultrapassou novos limiares no Brasil. Exposições de arte foram canceladas pela ação casada de grupos neoliberais da nova direita e setores religiosos conservadores católicos e evangélicos. Houve obra-de-arte apreendida e peça de teatro suspensa entre brados em defesa da infância e da família e, claro, contra o PT. No dia 5 de outubro, um general da reserva publicou no jornal O Estado de S. Paulo um artigo em que afirma que o Exército tem o dever de impedir que “a legalidade continue sendo corrompida pela ilegitimidade”. Ainda neste outubro, o Senado Federal aprovou um projeto de lei, já sancionado pela Presidência da República, que permite que crimes cometidos por militares contra civis não sejam mais levados ao Tribunal do Júri, sendo julgados pela Justiça Militar, retrocedendo na orientação do primeiro Plano Nacional de Direitos Humanos, o PNDH-1, de 1996. Para confirmar que os dias são sombrios e que a reação se dá em várias frentes, pouco antes de finalizar este texto uma portaria do Ministério do Trabalho publicada em 16 de outubro restringia a definição de trabalho escravo para efeito de fiscalização e criava obstáculos para o acesso à “lista suja” daqueles que desrespeitam a legislação.
A ofensiva é ampla. É vertiginosa, desta vez, tanto pelo ritmo acelerado em que é colocada em prática quanto pela amplitude que alcança, desmontando rapidamente uma série de direitos e atingindo de diferentes maneiras múltiplos segmentos da sociedade, que se tornam mais vulneráveis à exploração e à violência.
Fiz aqui um percurso pelos últimos 30 anos porque me parece importante entender a que reagem, isto é, a que se dirige essa ofensiva. Mas também porque me parece que precisamos discutir se o modo de construção das resistências e das lutas nos últimos 30 anos terá potência política nesse momento em que o neoliberalismo se torna antiliberal e confronta mesmo agendas mínimas de direitos humanos e sociais.
Foi significativa a construção de lutas específicas em um contexto em que a agenda de direitos foi remodelada. Novas linguagens e novos atores coletivos ganharam identidade política, legitimidade e experiência, colhendo resultados simbólicos e efetivos. Para recorrer a apenas dois exemplos, as lutas das mulheres negras remodelaram a abordagem do combate à violência, as lutas da população LGBT modificaram o entendimento de como o direito à saúde incorpora a sexualidade e as identidades sexuais. No cenário atual, as reações se dão em várias frentes, aparecem conjugadas ou convergem na mobilização de setores da população com potencial de adesão ao reacionarismo social e moral. No ambiente político institucional, operam para desfazer o patamar em que nos situávamos desde a transição para o regime democrático, atuando para deslegitimar atores e deslocar a agenda dos direitos humanos e sociais da posição de centralidade que teve nas disputas nas décadas recentes.
Os atores reacionários repetem seus discursos contra o “esquerdismo”, o “comunismo”, os “radicalismos” feministas, LGBT, dos movimentos negros. Opõem-se a projetos de orientação socialista, igualitários e de reconhecimento das diferenças. Mas situam esses projetos bem aquém das expectativas dos próprios atores progressistas. O que combatem de fato é um patamar civilizatório e a igual dignidade em sociedades plurais e complexas. Por isso é urgente encontrar uma linguagem comum ao campo da esquerda, que oriente articulações e estratégias, que retome a afirmação dos direitos humanos e sociais como baliza das lutas, sem perder o que acumulamos nas décadas em que aprendemos o que significa construi-las com respeito às diferenças.
17 de outubro de 2017.
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Flávia Biroli é professora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, onde edita a Revista Brasileira de Ciência Política e coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades – Demodê, que mantém o Blog do Demodê, onde escreve regularmente. É autora, entre outros, de Autonomia e desigualdades de gênero: contribuições do feminismo para a crítica democrática (Eduff/Horizonte, 2013), Família: novos conceitos (Editora Perseu Abramo, 2014) e, em co-autoria com Luis Felipe Miguel, Feminismo e política: uma introdução (Boitempo, 2014).

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