Segue o texto de Mauro Lopes, publicado em seu site, o Caminho pra Casa
Vigário da Pastoral do Povo da Rua em São Paulo desde o fim do século passado, padre Júlio Lancelotti pensou que já tinha visto de tudo em sua caminhada com os moradores e moradoras das ruas da metrópole. “Mas o que a cidade está vivendo agora nunca vi”, disse ele na tarde desta quarta (27) ao Caminho Pra Casa. “O extremismo dos últimos tempos, agravado por uma atuação sectária da Prefeitura, deu sinal verde, liberou o extermínio daqueles que a direita vê como o lixo da cidade”, desabafou o sacerdote. Por isso, padre Júlio decidiu que irá pedir proteção à Anistia Internacional ao povo da rua e àqueles que, como ele, têm sofrido inúmeros ataques nos últimos meses.
O mês de julho tem sido particularmente dramático para o povo da rua em São Paulo. No dia 12 de julho, no fim da tarde, o catador de material reciclável Ricardo Silva Nascimento, de 39 anos, negro, foi executado com pelo menos dois tiros na altura do peito por um policial militar branco. O crime aconteceu num bairro tradicional de classe média e alta na zona oeste da cidade, Pinheiros. Ricardo era muito estimado pelos moradores da região que não tiveram seu coração endurecido e os ouvidos fechados ao sofrimento dos mais pobres. Uma semana depois, muitos deles acorreram à missa de sétimo dia de Ricardo, na catedral da Sé, que imediatamente trouxe à mente o culto ecumênico de 31 de outubro de 1975, em memória de Vladimir Herzog e protesto por sua morte pelos militares.
No dia seguinte à missa de sétimo dia pela morte de Ricardo, seu amigo e também morador de rua Gilvan Artur Leal, o Piauí, morreu na Santa Casa de São Paulo, alegadamente de um AVC. Ele foi a principal testemunha do assassinato de Ricardo e foi torturado pelos PMs em plena rua, por protestar contra o crime: em nota assinada por algumas dezenas de moradores do bairro, eles relataram que os policiais obrigaram Piauí a esticar as mãos sobre a calçada e pisotearam seus dedos, aos gritos de “sai daqui que vai sobrar pra você”. Na mesma nota, os moradores contaram que Piauí ficara profundamente abalado, chorava diariamente e relatava ter medo das ameaças que tinha sofrido da PM. Ao lado da carroça do Ricardo, dizia para os moradores da região: “mataram meu irmão, e eu sou o próximo”.
Na manhã da morte de Piauí, uma cena chocou milhões de pessoas: após a madrugada mais fria do ano na cidade (7°C), moradores de rua foram acordados às 6h30 no centro de São Paulo com jatos de água gelada de equipes municipais –que também removeram barracas e deixaram roupas e cobertores molhados.
Durante todo o inverno, equipes do prefeito João Doria têm confiscado ilegalmente cobertores dos moradores de rua, o que levou o padre Júlio a protestar: “Tem muita gente distribuindo cobertores, mas só um recolhe” –a Prefeitura.
“Os moradores de rua estão entregues ao que vier, e os que estão ao lado deles acabam sofrendo retaliações de todo tipo”, afirmou o sacerdote num tom de voz que denuncia cansaço extremo. O Conselho de Segurança da Prefeitura Regional da Mooca tem feito uma série de ameaças ao padre das ruas, que é também pároco da Igreja São Miguel Arcanjo, e lançou recentemente um documento exigindo a remoção de Lancelotti da paróquia. “Mas eles não entendem que só tem dois jeitos de eu sair da paróquia, por decisão do arcebispo ou num caixão”, ironizou.
Júlio Lancelotti foi ordenado em 1985 por dom Luciano Mendes de Almeida (1930-2006) e se tornou um seguidor de um dos principais líderes da Igreja brasileira comprometida com os pobres, dirigente da CNBB por mais de 15 anos e continuamente perseguido pelo regime militar e pela Cúria romana. Hoje, é um entusiasta do papado de Francisco, com quem compartilha a opção pelos últimos da cidade, os moradores de rua. Como bispo de Roma, Francisco tem tomado seguidas iniciativas de acolhimento dos moradores e moradores de rua. Abriu um refeitório e uma lavanderia para eles ao lado da Praça São Pedro, animou um encontro com moradores e moradoras de rua no Vaticano em 2016, com eles comemorou seu 80º aniversário, num emocionante café da manhã.
Há dois anos, Francisco enviou seu solidéu para os moradores de rua de São Paulo. Numa caixa de acrílico transparente, ele fica na Casa de Oração do Povo da Rua, no centro da cidade e, de vez em quando, é levado por agentes da pastoral em suas jornadas noturnas. Júlio Lancelotti: “O Papa sabe que é nesses irmãos e irmãs que está o Cristo encarnado”,
[Mauro Lopes]
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