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terça-feira, 3 de janeiro de 2017

Uma entrevista histórica de Leonardo Boff ao jornal alemão Kölner Stadt-Anzeiger


  Francisco é um de nós. Ele partiu do patrimônio comum da Igreja da Teologia da Libertação. E o tem expandido. Aqueles que falam dos pobres têm agora a falar da terra, porque também é saqueada e profanada. “Ouvi o grito dos pobres”, o que significa que para ouvir o grito dos animais, das florestas, ouvir a totalidade do sofrimento da criação. Toda a terra chora. Assim diz o Papa, referindo-se ao título de um de meus livros; há que se escutar o grito dos pobres e o da terra hoje. E ambos têm de ser libertados. Eu mesmo trabalhei com esta expansão da Teologia da Libertação. E isto é fundamentalmente novo na “Laudato si” "

Do Blog de Mauro Lopes, Caminho pra Casa, no Outras Palavras:

O teólogo brasileiro Leonardo Boff: um novo tempo na Igreja
Leonardo Boff concedeu uma entrevista histórica ao jornal alemão Kölner Stadt-Anzeigerpublicada em 25 de dezembro de 2016. Segue-se a tradução que recolhi do site católico espanhol Religion Digital, em espanhol, e traduzi livremente.
É preciso lê-la completa. Alguns pontos que destaco: o bastidor da colaboração entre ele e o Papa na redação da encíclica Laudato Sii; a reabilitação da Teologia da Libertação; uma concepção renovada (e ao mesmo tempo ortodoxa) da encarnação de Cristo; a história do encontro frustrado com Francisco; o isolamento dos cardeais rebelados contra o Papa; a possibilidade concreta do diaconato das mulheres e do retorno dos padres casados ​​ao ministério -no caso dos padres, Boff antevê uma experiência exatamente no Brasil, a partir de um pedido dos bispos. Por fim, uma revelação bonita: com autorização e apoio dos bispos, Boff continua a presidir a missa quando está em comunidades sem padres, mesmo casado. Depois de anos e anos de perseguição da Cúria romana e dos conservadores no Brasil, Leonardo Boff continua fiel à Igreja.
Como é a fé em um “Deus da paz” de que nos fala o Natal, em meio à discórdia que experimentamos em toda parte?
A maior parte da fé é promessa. Ernst Bloch diz: “O verdadeiro Gênesis não acontece no início, mas no final, e seu começo é quando a sociedade e a existência são radicais.” A alegria do Natal é esta promessa: a terra e as pessoas não estão condenadas eternamente a viver como nós vemos agora – todas as guerras, a violência, o fundamentalismo. A fé nos promete que, ao final, tudo vai ficar bem: que, apesar de todos os erros e contratempos teremos um bom final. O verdadeiro significado do Natal não é que “Deus se fez homem”, mas que Ele veio para nos dizer. “Você, seres humanos, pertencem a mim e quando vier a morte vocês voltarão para casa” [a mim, editor deste Caminho pra Casa, este é um trecho que causou funda emoção, pois é este mesmo o espírito que levou ao nome deste blog]
O Natal significa então que Deus vem nos buscar?
Sim. A encarnação significa que algo em nós é divino e imortal. O Divino está dentro de nós. Em Jesus, isso demonstrou-se mais claramente. Mas está em todos os homens. Em uma perspectiva evolutiva Jesus não veio do exterior ao mundo, mas cresce a partir dele. Jesus é a manifestação do divino em evolução – mas ele não é o único. O Divino também aparece em Buda, Mahatma Gandhi e outras grandes figuras religiosas.
Isso não soa muito católico.
Não diga isso. Toda a teologia franciscana da Idade Média compreendia Cristo como parte da criação, não apenas como o redentor da culpa e do pecado, que vem de fora do mundo. Encarnação é redenção, sim. Mas, acima de tudo, é uma celebração, uma divinização da criação. E outra coisa é importante no Natal: Deus aparece sob a forma de uma criança. Não como um velho de cabelos brancos e barba branca longa …
Então, como você? …
Nada disso, eu me pareço mais com Karl Marx. No que me concerne: quando nós terminamos nossas vidas e devemos responder ao juiz divino, então estamos diante de uma criança. Uma criança não condena ninguém. Uma criança que quer brincar e estar com os outros. Precisamos voltar a sublinhar este aspecto da fé.
A Teologia da Libertação na América Latina, da qual você é um dos representantes proeminentes, teve uma revalorização com Francisco. Há perspectiva de uma reabilitação pessoal a você, depois de décadas de luta com o Papa João Paulo II e seu guardião supremo da fé, Joseph Ratzinger, futuro Papa Bento XVI?
Francisco é um de nós. Ele partiu do patrimônio comum da Igreja da Teologia da Libertação. E o tem expandido. Aqueles que falam dos pobres têm agora a falar da terra, porque também é saqueada e profanada. “Ouvi o grito dos pobres”, o que significa que para ouvir o grito dos animais, das florestas, ouvir a totalidade do sofrimento da criação. Toda a terra chora. Assim diz o Papa, referindo-se ao título de um de meus livros; há que se escutar o grito dos pobres e o da terra hoje. E ambos têm de ser libertados. Eu mesmo trabalhei com esta expansão da Teologia da Libertação. E isto é fundamentalmente novo na “Laudato si” …
… A “eco-Encíclica” do Papa de 2015. Quanto há de Leonardo Boff em Jorge Mario Bergoglio?
A encíclica pertence ao Papa. Mas muitos especialistas foram consultados.
Ele já leu seus livros?
Mais que isso. Ele me pediu material para “Laudato si”. Eu dei o meu conselho e enviei-lhe um pouco do que escrevi. E foi utilizado. Algumas pessoas me disseram que ao ler, pensaram:  “isto é Boff!”. A propósito, Francisco disse: “Boff, por favor, não envie documentos diretamente para mim.”
E porque não?
Ele disse: “Porque senão os secretários da Cúria pegam eu eu não recebo… Envia tudo ao sim o embaixador argentino com quem tenho um bom relacionamento, e chegará tudo com segurança às minhas mãos.” Você tem que entender que o atual embaixador argentino para o Vaticano é um velho amigo do tempo Papa em Buenos Aires. Muitas vezes beberam mate juntos. Um dia antes da publicação da encíclica, o Papa fez me chamar para expressar sua gratidão por minha ajuda.
Um encontro pessoal com o Papa ainda está pendente?
Ele procurou a reconciliação com os principais representantes da Teologia da Libertação, Gustavo Gutiérrez, Jon Sobrino … até a mim. Eu disse a respeito de Bento, Joseph Ratzinger, “mas ele ainda está vivo!”. O Papa não retrucou. “Não”, ele disse, “sono io il Papa” – “sou eu o Papa.” Ficamos em silêncio. Assim você pode ver sua coragem e determinação.
Francisco brinca com filhos de presidiários, em Roma (2014)
Por que então ele não houve a sua visita?
Recebi o convite e cheguei a desembarcar em Roma. Mas neste dia, pouco antes do Sínodo da Família, 2015, 13 cardeais – incluindo o cardeal alemão Gerhard Müller, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé tentaram uma rebelião contra o Papa. Mandaram uma carta privada  a ele, e então – maravilha das maravilhas! – ela apareceu nos jornais. O Papa ficou furioso e disse: “Boff, eu não tenho tempo agora. Tenho que acalmar as coisas antes do Sínodo Irei vê-lo em outra ocasião…”
Mas ele não conseguiu acalmar as coisas, não é?
O Papa sentiu o sopro dos ventos contrários dentro de suas próprias fileiras, especialmente dos Estados Unidos. Este cardeal Burke, Leo Burke, que agora – juntamente com o Meisner, cardeal emérito de Colônia – escreveu uma carta, é o Donald Trump da Igreja Católica (risos). Mas, ao contrário de Trump, Burke está congelado na Curia. Graças a Deus. Essas pessoas realmente acreditam que deveriam corrigir o Papa. Como se fossem acima do Papa. Isso é incomum, senão inédito na história da Igreja. Pode-se criticar o Papa, discutir com ele. Eu o fiz com bastante freqüência. Mas esses cardeais acusam publicamente o Papa de propagação de erros teológicos ou heresias – em minha opinião – o que é demasiado. É uma afronta que o próprio Papa não pode tolerar. O Papa não pode ser condenado, isso é doutrina da Igreja
Apesar de seu entusiasmo com o Papa o que acontece com as reformas da igreja, que muitos católicos esperavam de Francisco, mas que não estão realmente acontecendo?
Pelo que entendi, o centro de seu interesse não é mais a Igreja, não é a atuação da Igreja, mas a sobrevivência da humanidade, o futuro da Terra. Ambos estão em perigo, e você tem que se perguntar se o cristianismo pode ajudar a superar esta grave crise da humanidade, que está sob ameaça de perecer.
Francisco se preocupa com o meio ambiente, e, entretanto, ele continua sua igreja antes de uma parede?
Eu acho que, para ele, existe uma hierarquia de problemas. Quando se destrói a Terra, há uma carga enorme de novos problemas. Mas, quanto aos assuntos internos da Igreja, temos que esperar! Ainda no outro dia, o cardeal Walter Kasper, um homem de confiança do Papa, disse que em breve haverá grandes surpresas.
O que você espera?
Quem sabe? Talvez o diaconato das mulheres. Ou a possibilidade de padres casados ​​poderem ser reintegrados ao ministério. Este é um pedido formal ao Papa feito pelos bispos brasileiros, especialmente seu amigo, o cardeal emérito brasileiro Claudio Hummes. Ouvi dizer que o Papa quer responder a este pedido com uma primeira fase experimental no Brasil. Este país tem 140 milhões de católicos e deveria ter pelo menos 100 mil sacerdotes. Mas há apenas 18 mil. Do ponto de vista institucional, é um desastre. Não é de se admirar que os fiéis migrem em massa para os evangélicos e pentecostais, que preenchem este vazio pessoal. Agora, se milhares de padres casados ​​voltarem ao exercício de suas funções novamente, seria um primeiro passo para melhorar a situação – enquanto um impulso para a Igreja Católica para resolvem o cativeiro do celibato obrigatório.
Se o Papa decidir a este respeito, você também assumiria funções sacerdotais novamente, como um ex-padre franciscano?
Pessoalmente, eu não preciso de uma decisão deste tipo. Não mudaria o que estou fazendo hoje, o que sempre fiz: batismo, funeral e, quando eu chego a uma comunidade sem um padre, também celebro a missa junto com as pessoas.
Carinho com o professor, dom Paulo Evaristo Arns
Uma questão alemã: isso é admissível?
Até agora, nenhum bispo que eu conheço nunca se opôs ou mesmo proibiu. Os bispos também se alegram e dizer: “As pessoas têm o direito à Eucaristia.Siga fazendo isso com tranquilidade!” Meu professor de teologia, que infelizmente morreu há poucos dias, o cardeal Paulo Evaristo Arns, por exemplo, teve um elevado grau de abertura. Ele foi muito longe: quando via padres casados nos bancos da Igreja em uma celebração, convidava-os ao altar para celebrar a Eucaristia com eles. Eu o vi dizer muitas vezes: “Você é sacerdote e continua a ser.”

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