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segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Por Dilma: Sobre vencedores e vencidos, uma Reflexão Oportuna e Inoportuna. Texto de Ivone Gebara com introdução de Leonardo Boff




Ivone Gebara, é uma religiosa, cônega de Santo Agostinho, conhecida filósofa e teóloga da libertação que vive nos meios pobres e a partir daí elabora suas reflexões, especialmente sobre questões ligadas à mulher, à família e  desafios  sociais que afetam a vida dos marginalizados. Publicamos aqui uma reflexão singular sobre o impeachment imposto à  presidenta Dilma. E o faz com leveza e humor sem perder a profundide necessária, conferindo a este triste fato contra a  nossa jovem república um ar de espiritualidade que permite suportar os revezes da vida e convida a dar a volta por cima. O artigo foi publicado no dia 6 de setembro no IHU dos jesuitas de Novo Hamburgo. L. Boff.
Assim começa o  artigo:
“Não chore ainda não
Que eu tenho um violão
E nós vamos cantar
Felicidade aqui
Pode passar e ou vir
E se ela for de samba
Há de querer ficar”
Não chore presidenta Dilma porque tem muita gente no bom samba da dignidade que se recusa a calar sua voz, se recusa a parar de gingar, se recusa a parar de pensar, de escrever, de analisar o momento presente e de cantar, e cantar… Liberdade, liberdade, liberdade. A vida brasileira está confusa e atirar pedras ou lamentar o leite derramado não resolve a situação! Convencer os outros de que há uma única culpada de nossos atuais problemas é no mínimo assustador e incompreensível. O ser humano habituou-se a encontrar ‘bodes expiatórios’ que levam a culpa sem coletivizá-la e sem tornar a responsabilidade social e política uma responsabilidade comum assumida.
Não chore ainda não presidenta, não vale chorar porque os que se julgam vencedores e creem em sua vitória estão alegremente atribulados e acuados. Mas qual é mesmo essa vitória tão grande? Uma lei expressa em palavra inglesa, ‘impeachment’ pareceu mudar os rumos da vida de muitos e a sua? É ela que os tornou vitoriosos? É ela que nos tornou vencidos com você?
Depois de nosso orgulho de ter você como primeira presidenta, de saber de suas lutas e fraquezas como as de todas nós, com você estamos ouvindo novos impropérios sobre a incapacidade das mulheres de fazer política original e eficaz. Não nos deram muito tempo e nem muitos espaços…
Não chore presidenta… Tem muita gente sentindo a mesma raiva que você deve estar sentindo, mas reunindo forças de vida por que “tanto menino novo nasceu” nessa semana, tanto “jovem se apaixonou pela vida”, “tanto velho dançou nas praças”, “tantas andorinhas estão cantando”, tanta “flor nasceu no campo”,… Embora, o som do violão esteja fraco…
Não chore ainda não
Que eu tenho a impressão
Que o samba vem aí
E um samba tão imenso
Que eu às vezes penso
Que o próprio tempo
Vai parar pra ouvir
Olé, Olé, Olá…
Depois de uma noite de quase insônia na qual pedaços da fala da presidenta Dilmaexplicando e se defendendo em meio à fala acusatória de alguns senadores povoavam involuntariamente meus pensamentos, decidi levantar-me para não aumentar mais minha angústia. A música do Chico Buarque “Olé, Olé, Olá” estranhamente fazia um fundo musical insistente na minha tristeza. Passei do quarto para meu pequeno escritório e, não sei bem porque olhando minha estante de livros tomei em minhas mãos um velho livro sobre ‘a oração de Jesus’ escrito em 1973, pleno período de governo militar, pelo saudoso amigo Padre José Comblin. Folheei o livro e algumas palavras que faziam as vezes de pequenos subtítulos começaram a desfilar sob meus olhos…
Solidão, abandono, derrota, vencedores, vencidos, reconhecimento… Li um e outro parágrafo como se quisesse buscar neles a calma necessária para começar o dia. Sentia-me atravessada pelo dia e noite de julgamento de nossa presidenta e depois pelo dia doveredito final. Mal conseguia imaginar as noites que ela passou depois das perguntas ardilosas e armadilhas que os juízes senadores lhe estendiam. Parecia-me aviltante que ela tivesse que repetir várias vezes a mesma informação porque as excelências presentes só tinham em vista a pergunta que queriam lhe fazer em público. Mal ouviam o que ela dizia atentos aos seus celulares, às câmaras de televisão e a buscar um ou outro olhar de cumplicidade entre os seus pares. Sob o pretexto de julgar seus atos políticos se mostravam ao público como justos e justiceiros defendendo o pobre povo brasileiro contra a primeira mulher presidenta de nossa história!
Minha tribulação aumentou com essas lembranças e por isso resolvi escrever convencida que cantar, escrever, cozinhar ‘parecem com não morrer’ sobretudo diante da confusão do momento político e das trevas que sem querer invadem a alma.
Espontaneamente pensei que apenas fazer de novo críticas aos opositores de Dilma, à sua superficialidade democrática e humanista não aliviariam meu coração. Da mesma forma, cantar as glórias da presidenta não me parecia o melhor caminho. Provavelmente muitas amigas e amigos estariam fazendo as mesmas constatações e não tinha mais vontade de beber de novo da mesma massacrante situação vivida que parecia não me levar a nenhuma saída. Também fazer análises políticas a partir da conjuntura nacional e internacional não era o meu forte…
Lembrei-me então do que havia lido no livro de José Comblin e me voltou a ideia de que nem sempre os vitoriosos, os que têm o êxito imediato são de fato os construtores da história da dignidade humana. O êxito talvez gere a boa consciência do dever cumprido, da vitória aparente da legalidade, do bom resultado obtido pelo desempenho social, da vitória sobre os adversários… Entretanto, o êxito ou a vitória não levam à reflexão, a interiorização e análise de nossos comportamentos e sentimentos. Que insensatos /as somos! Inebriamo-nos facilmente com nossa própria imagem acreditando ser o centro do mundo. Esquecemos que a vitória de Pilatos, do Império Romano, dos doutores da lei e até do povo acusador na realidade foi o golpe mortal à liberdade. E por isso foi um golpe também contra os acusadores.
Condenar Jesus à crucifixão e à morte foi uma vitória daqueles a quem a integridade das ações de Jesus molestava no imediato. A História tem nos ensinado embora não tenhamos aprendido que não há uma relação lógica de coerência entre os atos humanos realizados e os resultados obtidos e, sobretudo os considerados vitoriosos ou exitosos. Provavelmente Hitler e seus aliados mais próximos sentiram-se vitoriosos quando as câmaras de gás e os fornos crematórios conseguiram eliminar milhares de seres humanos…
Estupenda vitória! Limpeza étnica realizada! Missão cumprida! Também os ditadores sanguinários da América Latina vibraram de alegria quando torturaram e mataram milhares dos chamados ‘inimigos da pátria’… Afinal conseguiram o que esperavam, ou seja, eliminar os ‘vermes’ que buscavam a liberdade do povo. E quantas guerras vitoriosas foram glorificadas apenas porque as armas que mataram vidas significaram o sucesso das empresas produtoras de artefatos bélicos? A história humana é de fato eivada de uma mistura imensa de sentimentos, palavras, ações salvíficas e cruéis que levam à vida e à morte num movimento sem fim.
Quase sempre pensamos que a vitória é o resultado do sucesso provisório de nossa ideologia, de nossa empresa, de nossa competência ou de nosso sonho por mais extravagante que seja ele. Mas a história também acaba por desmentir a vitoria dos vencedores… Só que não a história imediata cheia de conflitos passionais, tecida de mentiras vestidas de verdade, de encobrimentos e acusações mútuas, de golpes de luva de pelica sob a qual se escondem alfinetes envenenados. Também não a história oficial dos Impérios que se sucedem e escrevem suas vitórias ensinadas e aprendidas nas escolas. Mas a história que desmente as grandes vitórias das guerras de uns contra os outros é a pequena história dos pequenos amores e das pequenas ações de justiça e solidariedade que sustentam a dignidade da vida. Essas pequenas histórias irrompem cada dia de diferentes maneiras…
Num campo de concentração um decide dar a vida no lugar de outro, a outra dá a sua porção de alimento à colega grávida, a lavadeira entrega seu salário para comprar o remédio para a filha da vizinha, um homem ajuda um marginal que matou seu filho, mulheres denunciam a violência infantil…
Estas e outras tantas pequenas histórias são as narrativas muitas vezes desconhecidas das pequenas vitórias da vida. Histórias ocultas, de personagens desconhecidos e insignificantes mantêm a chama da dignidade humana!
Para além das polarizações da história imediata na qual cada indivíduo espera convencer o outro ou atirá-lo num covil de leões famintos, para além do reducionismo da realidade limitada e perspectivista que apenas meus olhos são capazes de ver, há um tênue fio de contradição que se instaura em todas as posições. É ele que nos fará pensar e buscar a de novo a liberdade… É ele que convidará as novas gerações a analisar os fatos passados e perceber que é esse fio obscuro e incômodo, talvez enredado a muitos outros o portador da novidade que nos fará reviver com dignidade.
É a contradição e o paradoxo de nossos atos que nos convida ao pensamento e a novas ações. É ele que revela a fragilidade de nossos pensamentos e de nossos atos e nos remete à limitada condição humana. É a suspeita em relação as nossas próprias verdades e interpretações, aos poderes que utilizamos aos abusos que deles fazemos que conduzem a História para frente. São esses incômodos no pensamento e nas emoções, na consciência e no coração que emergem sem querer e que persistem apesar dos pesares… São eles que desmentem a vitória dos vencedores imediatos e a tragédia vivida pelos vencidos que não são apenas os “outros” partidos, mas o povo vivendo em condições sub-humanas. São eles que restauram de novo a história da dignidade humana e nos fazem esperar de novo apesar dos medos que nos acompanham sempre.
No presente, os vencidos parecem cabisbaixos mesmo quando gritam sua dor e decepção nas praças públicas. Sentem-se feridos e abandonados até por quem antes parecia estar de seu lado…
Os vencidos são deixados aos seus próprios problemas e os que eram próximos deles até negam conhecê-los, os que antes os aconselhavam para serem ‘ganhadores’ desviam-se de seus caminhos, orgulhosos de serem também indiretamente vitoriosos, pois afirmam que seus sábios conselhos não foram seguidos. Facilmente, em meio à derrota, desenvolvem outras vitórias, alinham-se aos moralmente corretos, fazem teoria ‘clara e distinta’, explicam as razões dos vencidos, querem ser bons e justos sem perder a aura de sua moralidade. Escondem-se usando mil e um pretextos e não aderem mais à causa que os movia e os fazia brilhar no provisório palco da história. Hipócritas! Sepulcros caiados!
Os vencidos parecem desamparados… Nem suas velhas esperanças os sustentam visto que os vencedores parecem ter se apropriado delas… Apropriaram-se de seus feitos, de sua linguagem, de suas vestes, de seus amigos e de suas leis. Desnudaram os vencidos de suas crenças, roubaram a ‘bandeira nacional’ de todos e fizeram dela a veste de alguns privilegiados sedentos de glória e poder.
Porém, os vencidos por incrível que pareça não são apenas os que perderam uma partida de futebol, ou perderam as eleições, ou um trabalho, ou um lugar ao sol… Somos todos nós como humanidade buscando o sentido de sua vida embora só saibamos considerar a nossa individualidade.
Em tudo isso, ainda resta a contradição, o paradoxo, aquela experiência que nos mostra que no fundo todos nós somos menores que nossas vitórias e bem maiores que nossas derrotas. Todos nós somos de alguma maneira, vencidos e vencedores. Todos nós temos que recomeçar nossa busca comum de dignidade para além dos fracassos experimentados. Nosso futuro se chama hoje…
Por isso, querida presidenta Dilma, “não chore ainda não”, não choremos porque temos razões para não chorar… Olé, Olé, Olá…

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