"Se há um veículo de comunicação na imprensa brasileira que costuma levar a manipulação da informação ao seu estágio mais sofisticado, este é o principal telejornal de Rede Globo de Televisão. Há muito tempo que o JN reduziu a prioridade pela notícia para enfatizar programas e eventos envolvendo interesses comerciais da empresa , bem como o proselitismo aberto em favor das causas político-financeiras apoiadas pelas Organizações Globo."
IMPRENSA EM QUESTÃO > JORNAL NACIONAL
A manipulação de contextos na montagem de notícias
Por Carlos Castilho em 15/03/2016 na edição 894 do Observatório da Imprensa
Se há um veículo de comunicação na imprensa brasileira que costuma levar a manipulação da informação ao seu estágio mais sofisticado, este é o principal telejornal de Rede Globo de Televisão. Há muito tempo que o JN reduziu a prioridade pela notícia para enfatizar programas e eventos envolvendo interesses comerciais da empresa , bem como o proselitismo aberto em favor das causas político-financeiras apoiadas pelas Organizações Globo.
No terreno comercial a emissora dedica cada vez mais espaço em seus noticiários para promover novelas, shows musicais, eventos esportivos e iniciativas de seu interesse direto. O espaço para informações sobre problemas comunitários e formas de resolvê-los está sendo substituído por preocupações comerciais da empresa, travestidas de notícia jornalística.
A emissora é suficientemente hábil e inteligente para perceber que é necessário dar atenção aos problemas sociais das comunidades para não perder mais audiência. A questão é que ela trata temas como saúde, moradia, corrupção, segurança e desemprego sob o viés político em vez de buscar o engajamento de seus repórteres e editores com a prática co chamado jornalismo de soluções, onde os profissionais participam da busca de alternativas em vez de se limitarem à pratica das reportagens declaratórias, estilo “ele disse, ela disse”.
Mas é no terreno político que o contexto torna-se mais importante na análise do noticiário “Global”. Um jurista interessado em abrir um processo judicial contra a Globo terá muita dificuldade para enquadrar a emissora nas leis vigentes porque a maior rede de televisão do país tem a necessária expertise para contornar os dispositivos legais.
O que a Globo sabe fazer magistralmente é manipular contextos, como por exemplo, a alocação de tempos para acusação e defesa. Uma denúncia feita por algum delator no processo Lava Jato recebe um detalhamento que toma vários minutos enquanto a defesa merece rápidas e burocráticas menções do tipo “todas as doações foram registradas de acordo com a lei eleitoral”, “não comentamos inquéritos em andamento”, ou “ainda não tivemos acesso aos autos do processo”, sem falar no lacônico “não conseguimos contato com,,,,”.
Discutir a legalidade de tal processo é chover no molhado porque a emissora sempre vai alegar que seguiu o preceito jornalístico da consulta à parte atacada ou agredida. A questão é a diferença de tempo e detalhamento. Na maioria dos casos de divulgação de denúncias por delação premiada não houve da parte dos telejornais da TV Globo a preocupação em apresentar de forma detalhada os argumentos da outra parte. Assim, o telespectador acabou sempre ficando sob o efeito do impacto da denúncia, mesmo aqueles que não acreditaram nela.
Na atual batalha da informação a propósito da continuidade ou não de Dilma Rousseff na Presidência da República, os fatos e dados perderam importância em favor da forma como cada parte os inseriu num contexto que lhe é favorável. A cultura tradicional do jornalismo enfatiza a veracidade e exatidão de fatos e dados, mas ainda não desenvolveu o mesmo grau de especificidade e detalhamento em relação aos procedimentos editoriais sobre como contextualizar corretamente uma noticia. Um dado não existe fora de um contexto. Ele pode ser exato mas manipulado conforme a imagem do copo meio cheio ou meio vazio.
Um editor ou jornalista pode criar um contexto sem alterar dados, fatos ou eventos. O copo é o mesmo, o volume de água idem, mas o profissional pode descrever o fato de maneiras diferentes o que vai induzir o leitor, telespectador ou internauta a desenvolver percepções e opiniões condicionadas pela descrição jornalística.
Outro exemplo da manipulação de contextos foi dado pela TV Globo no caso da hostilização de funcionários da empresa por desafetos políticos na atual conjuntura política no país. A emissora enquadrou os eventos como agressões à liberdade de imprensa quando na realidade eles são uma consequência da polarização político-ideológica na qual a Globo é parte. Atirar ovos e tomates, ou xingar funcionários tem tudo a ver com irritação e divergências políticas, e nada a ver com violações do direito de expressar opiniões.
Os manuais de redação descrevem com exatidão os procedimentos para coleta, edição e preparação de fatos, dados e eventos de interesse jornalístico mas não abordam com o mesmo detalhamento à contextualização, um processo que normalmente acontece na fase da edição onde ocorre a montagem das várias peças componentes de uma noticia.
As redações não são um ambiente democrático onde se discutem posições e atitudes. Prevalece no dia a dia o ritmo industrial de produção. Assim, a cultura política acaba sendo fortemente influenciada por quem comanda a operação jornalística. Os editores organizam a pauta que é passada aos repórteres que vão a campo já com um roteiro preestabelecido e com tempo marcado para regressar. Ao chegar no local da matéria, o repórter não tem tempo de buscar visões diversificadas. Ele se limita a ouvir o protagonista e a parte contrária, sem poder levar em conta que a esmagadora maioria dos fatos, dados e eventos não se resumem a apenas dois lados. Além disso o profissional não tem tempo e, muitas vezes nem preparo teórico, para avaliar se um dado, fato ou evento está corretamente contextualizado.
Como a TV pode distorcer uma notícia
A plataforma televisão é especialmente suscetível a induzir no telespectador percepções descontextualizadas porque o tempo de transmissão de uma notícia é muito curto e porque as imagens geralmente são apresentadas por um único ângulo (copo meio cheio ou meio vazio) simplificando a visão da realidade. A manipulação da imagem como notícia num telejornal provoca no telespectador reações mais emocionais do que as geradas pela leitura de um jornal ou revista, onde a postura é mais analítica, pela própria natureza do veículo ou plataforma de comunicação.
Num mundo marcado pela avalanche diária de informações, onde a complexidade dos fatos, dados e eventos se torna cada vez mais evidente, é muito difícil tomar decisões num curto espaço de tempo, entre sair da redação e voltar com o material recolhido. Tudo isto induz a que o produto final, a informação publicada, seja enviesada por conta da cultura política predominante na redação ou então repassada de forma bruta para o leitor, como é o caso dos indicadores econômicos. O repórter não teve tempo ou não quis questionar o entrevistado e repassa direto para o público uma informação que já veio condicionada pelos interesses e objetivos da fonte.
Esta breve descrição do processo de distorção informativa provocado pela manipulação de contextos permite perceber como é importante tentar identificar o DNA de uma notícia. De mesma forma que você só compra um produto no supermercado depois de checar o prazo de validade e a informação nutricional, uma notícia não pode ser consumida sem uma checagem mínima da sua exatidão, veracidade e contexto. Esta é uma tarefa que o leitor, telespectador, ouvinte ou internauta terá que fazer sozinho porque a maioria dos veículos não disponibiliza este tipo de dado.
É muito improvável uma mudança na política editorial do Jornal Nacional porque são rotinas e valores entranhados há décadas no telejornal que serve de guia para todos os demais noticiários da TV Globo. Por paradoxal que pareça, é mais possível o surgimento de uma nova atitude entre os telespectadores na medida em que eles descobrirem como funciona o enviesamento da informação transmitida por meio da manipulação dos contextos onde está inserida a notícia.
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Carlos Castilho é jornalista e editor do Observatório da Imprensa
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