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domingo, 21 de fevereiro de 2016

Francisco: um passo a mais na luta pela Justiça Social, enfrentando o Capitalismo e a própria Curia romana...


Em sua viagem de maior carga emocional, Papa homenageia humilhados pelo capital e fustiga os que se aproveitam da desigualdade crescente. Como era de esperar, jornais calaram-se…
Por Mauro Lopes
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Francisco: um passo a mais — em silêncio


Publicado originalmente no Outras Palavras

Foi a visita com maior carga afetiva-emocional e aquela na qual ele mais explicitou, com palavras e gestos, o desejo de retorno da Igreja à originalidade dos primeiros tempos — uma Igreja pobre com os pobres.
O ato final da visita talvez não tenha sido compreendido em sua verdadeira dimensão: o Papa escolheu Ciudad Juarez, na fronteira entre o México e o Império e, num gesto profético de denúncia e desafio, abençoou as cruzes que simbolizam os milhares de mexicanos e mexicanas mortos durante o que parecia ser uma travessia para uma vida melhor.
O Papa, como o Cordeiro do livro do Apocalipse, o último da Bíblia, confronta-se com a Babilônia, a Roma dos tempos que escorrem. Não é à toa que fez, no México, a mais dura condenação aos ricos em seu tempo como Papa, ao dizer que eles prestarão contas sobre as fortunas construídas sobre o sangue e o suor e as lágrimas das pessoas; e, no avião de volta ao Vaticano, deixou claro que, para ele, Donald Trump não pode ser qualificado de cristão, por ser alguém que só tem projetos para construir muros a separar (como o muro entre os EUA e o México en Ciudad Juarez), muros de concreto e de ódio.

Francisco volta a provocar hierarquia católica


Sob olhar desconfiado: não se sabe ainda que resultado terão polêmicas abertas por Francisco, mas sua disposição renovadora é evidente
Sob olhar desconfiado: não se sabe ainda que resultado terão polêmicas abertas por Francisco, mas sua disposição renovadora tornou-se evidente no país dos milionários “Legionários de Cristo”






























Em discurso surpreendente aos bispos mexicanos, Papa amplia polêmica contra Cúria romana e fustiga conservadorismo, fascínio pela riqueza e espírito burocrático encravados na igreja
Por Mauro Lopes, editor do site Caminho pra Casa
O discurso do Papa para os bispos mexicanos neste sábado foi surpreendente — mas Francisco não se cansa de surpreender. A chave de leitura para compreender o que ele disse ao episcopado mexicano é o seu duríssimo discurso à Cúria romana no fim de dezembro de 2014 quando denunciou as 15 doenças curiais (mexericos, carreirismo, oportunismo, acúmulo de riquezas, indiferença em relação às pessoas, perda do “primeiro amor” pelo seguimento do Cristo, Alzheimer espiritual e outras). Se quiser lembrar ou conhecer um discurso histórico e inédito de um Papa à burocracia vaticana, clique no link clicando aqui.
Um leitura combinada das duas manifestações do Papa indica claramente seu antagonismo com a hierarquia da Igreja, que, a partir da cúria romana, insurgiu-se contra o espírito do Vaticano II desde o primeiro momento, ainda nos anos 1960. Tal espirito foi contido por Paulo VI – João Paulo I acompanhava o passo de João XXIII e Paulo VI, mas sua morte, 33 dias depois de eleito (em agosto de 1978) interrompeu o caminho do espírito conciliar.
O conservadorismo prevalecente na cúpula da Igreja no Vaticano e, de uma maneira geral, ao redor do planeta, com exceções que confirmam a regra (como a Alemanha e, agora, a Espanha) não foi obra do acaso ou apenas do “espírito da época”.  Durante mais de 30 anos, as nomeações de bispos e cardeais obedeceram a três lógicas: 1) rigorismo (seguimento às regras e normas e não ao espírito do Evangelho); 2) conservadorismo político e social (afastamento dos pobres); e 3) visão institucional da Igreja (olhar para dentro e submissão à burocracia eclesial). A atual cúpula da Igreja é obra de construção metódica e obstinada, feita por corações e mentes alinhados com uma visão particular do cristianismo.
Isto faz com que Francisco tenha ao seu redor uma grande massa de bispos e cardeais que respiram o espírito de contrarreforma e comportam-se como os burocratas nos governos: ficam quietos, às vezes encenam concordância com o “chefe” — e esperam pelo próximo Papa.  O Papa governa com um pequeno mas aguerrido núcleo de bispos e cardeais sintonizados com a retomada dos valores originais da Igreja e o espírito do Concílio Vaticano II. Os padres têm um papel de baixa relevância nesse processo, pois com o espírito conservador dos últimos anos, tiveram seu protagonismo praticamente liquidado. De fato, o processo dominante dos últimos anos formou milhares de padres preocupados com suas roupas, em encontrar uma paróquia “rica”, em oposição à ideia do serviço cristão.
Neste cenário adverso, Francisco navega com coragem e descortino que animam os cristãos e as pessoas de bem de todo o mundo. Como disse o bispo mexicano Raul Vera há um “efeito Francisco”  nas pessoas, “mas ainda não na Igreja. Somos nós, os bispos e sacerdotes os que temos que nos converter à integridade do Evangelho”. Vera é um desses lideres da Igreja sintonizados por Francisco e que sofreu enormes perseguições por parte de seus pares mexicanos. Leia a entrevista dele aqui.
Qual a possibilidade de uma reforma na cúpula da Igreja? O Papa instituiu o Grupo dos 9, cardeais fiéis ao espírito do Vaticano II e que estão finalizando o novo desenho da organização do Vaticano. O coordenador do grupo é o valente e inspirado cardeal de Tegucigalpa, Óscar Tegucigalpa. É um caminho. Mas os cristãos que vivem no espírito original do Evangelho e das primeiras comunidades devem rezar por um papado de mais uns bons anos à frente, para que Francisco consiga modificar o panorama da hierarquia católica. Pessoas de todos os credos e mesmo ateus parecem rezar ou torcer por isso.
Francisco tirou a Igreja da irrelevância a que tinha se encolhido nos últimos anos e recolocou-a no centro do mundo -mas a partir das margens, dos pobres. Este é o espírito de seu papado e assim deve ser lido seu discurso aos bispos mexicanos.
A Igreja mexicana é hoje dominada por uma cúpula conservadora que persegue leigos, padres e bispos vinculados aos pobres do país. O México é o berço do grupo clerical de direita, os milionários Legionários de Cristo, que se envolveu num grande escândalo — seu fundador, e idolatrado no grupo, Marcial Maciel, era pedófilo, teve filhos com várias mulheres, era dependente químico e, claro, perseguia todas as pessoas que não seguissem o “código moral” conservador…
No discurso aos bispos mexicanos, Francisco colocou o dedo na ferida logo de cara: “Vigiai para que os vossos olhares não se cubram com as penumbras da névoa do mundanismo; não vos deixeis corromper pelo vulgar materialismo nem pelas ilusões sedutoras dos acordos feitos por baixo da mesa; não ponhais a vossa confiança nos “carros e cavalos” dos faraós de hoje, porque a nossa força é a “coluna de fogo” que irrompe separando em duas as águas do mar, sem fazer grande rumor (Ex 14, 24-25).”
O tema das intrigas e do carreirismo, que ele abordara no discurso contra a cúpula do Vaticano, voltou no México: “Assim, não percais tempo e energias nas coisas secundárias, nas críticas e intrigas, em projetos vãos de carreira, em planos vazios de hegemonia, nos clubes estéreis de interesses ou compadrios. Não vos deixeis paralisar pelas murmurações e maledicências.”
O esquecimento do “primeiro amor” ao seguimento de Cristo, que fora uma crítica central aos cardeais curiais em 2014 também foi destacado hoje: “Se o nosso olhar não dá testemunho de ter visto Jesus, então as palavras que recordamos d’Ele não passam de figuras retóricas vazias. Talvez expressem a nostalgia daqueles que não podem esquecer o Senhor, mas, em todo o caso, são apenas o balbuciar de órfãos junto do sepulcro. No fim de contas, são palavras incapazes de impedir que o mundo fique abandonado e reduzido ao próprio poder desesperado.”
O clericalismo e a indiferença, também objeto do discurso em Roma, esteve presente no México:  “Por isso nós, pastores, precisamos vencer a tentação da distância e do clericalismo, da frieza e da indiferença, do triunfalismo e da auto-referencialidade. Guadalupe ensina-nos que Deus é familiar no seu rosto, que a proximidade e a condescendência podem fazer mais do que a força.”
Uma crítica que esteve ausente em Roma foi relativa à pastoral — que não inexiste na burocracia vaticana. No México, Papa acusou o olhar superior dos que se julgam acima dos pobres: “Por isso, sede bispos capazes de imitar esta liberdade de Deus, escolhendo o que é humilde para manifestar a majestade do seu rosto e copiar esta paciência divina ao tecer, com o fio sútil da humanidade que encontrais, aquele homem novo que o vosso país espera. Não vos deixeis levar pela vã pretensão de mudar o povo, como se o amor de Deus não tivesse força suficiente para o mudar.”
O conservadorismo foi alvo de uma crítica direta do Papa: “Peço-vos para não cairdes na estagnação de dar velhas respostas às novas questões. O vosso passado é um poço de riquezas por escavar, que pode inspirar o presente e iluminar o futuro. Ai de vós se vos deixais adormentar sobre os louros! É preciso não desperdiçar a herança recebida, guardando-a com um trabalho constante. Estais sentados aos ombros de gigantes: bispos, sacerdotes, religiosos, religiosas e leigos fiéis «até ao fim», que deram a vida para a Igreja poder cumprir a sua missão. Do alto de tal pódio, sois chamados a alongar o olhar sobre o campo do Senhor para programar a sementeira e esperar a colheita.”
Impressionante a coragem de Francisco ao apontar o fascínio pela riqueza e grandiosidade que larva na cúpula da Igreja mexicana (como em outras ao redor do planeta) como “perda da sacralidade do sentido da vida humana e do respeito pelo planeta e, portanto, uma insurreição ainda que silenciosa aos termos da encíclica Laudato Si. O trecho é impressionante: “A Igreja, mesmo quando se reúne numa majestosa catedral, não poderá deixar de considerar-se como uma «casita» onde os seus filhos se sintam à vontade. Diante de Deus, pode-se permanecer apenas se se é pequeno, se se é órfão, se se é mendicante. (…) O fato de nos termos esquecido de «tirar as sandálias» para entrar não estará porventura na raiz da perda do sentido da sacralidade da vida humana, da pessoa, dos valores essenciais, da sabedoria acumulada ao longo dos séculos, do respeito pela natureza? Sem recuperar, na consciência dos homens e da sociedade, estas raízes profundas, incluindo o generoso empenho em prol dos legítimos direitos humanos, faltará a seiva vital que só pode vir dum manancial que a humanidade não poderá jamais dar-se por si mesma.”
No estertor do discurso, o Papa atacou diretamente o espírito de “realeza” que toma conta da Igreja e que nada tem a ver com o Reino de Deus. Falou claramente dos “príncipes” que povoam a hierarquia católica e fez um apelo por sua reconversão. O Papa advertiu a cúpula mexicana a não encalhar a barca da Igreja local. O texto chega a ser estonteante: “Não há necessidade de «príncipes», mas de uma comunidade de testemunhas do Senhor. Cristo é a sua única luz; é a fonte da água viva; da sua respiração, sai o Espírito que estende as velas da barca eclesial. Em Cristo glorificado, que os membros deste povo gostam de honrar como Rei, acendei juntos a luz, enchei-vos da sua presença que não Se extingue; respirai a plenos pulmões o ar bom do seu Espírito. Compete-vos semear Cristo no território, manter acesa a sua luz humilde que ilumina sem ofuscar, garantir que nas suas águas se sacie a sede do vosso povo; levantar as velas de modo que o sopro do Espírito as impulsione e não encalhe a barca da Igreja no México.”
Qual será a repercussão de mais um discurso sem precedentes e que chacoalha não só a cúpula mexicana mas carrega uma mensagem a atravessar a hierarquia católica em quase todo o planeta? Difícil dizer, mas que o Papa está cada dia mais decidido a enfrentar abertamente aqueles que traíram a Igreja das origens e os compromissos do Vaticano II não resta dúvida.
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A íntegra do discurso do Papa

Estou feliz por poder encontrar vocês no dia seguinte ao da minha chegada a este amado país, que também eu, seguindo os passos dos meus Predecessores, vim visitar.
Não podia deixar de vir! Poderia o Sucessor de Pedro, chamado do profundo sul latino-americano, privar-se da possibilidade de pousar o olhar na «Virgem Morenita»?
Agradeço-vos por me terdes recebido nesta Catedral – a «casita», um pouco alongada mas sempre «sagrada», que pediu a Virgem de Guadalupe – e pelas amáveis palavras de boas-vindas que me dirigistes.
Sabendo que aqui se encontra o coração secreto de cada mexicano, entro com passo delicado, como se deve entrar na casa e na alma deste povo, sentindo-me profundamente grato por me abrir a porta. Sei que, fixando os olhos da Virgem, alcanço o olhar do seu povo, que aprendeu a mostrar-se n’Ela. Sei que nenhuma outra voz pode falar tão profundamente do coração mexicano, como me pode falar a Virgem; Ela guarda os seus mais nobres desejos e as esperanças mais recônditas; recolhe as suas alegrias e lágrimas; Ela compreende os seus numerosos idiomas e responde-lhes com ternura de Mãe, porque são os seus filhos.
Estou feliz por estar convosco aqui, nas proximidades da «Colina de Tepeyac», como nos alvores da evangelização deste continente e, por favor, permiti-me que, tudo quanto vos disser, possa fazê-lo partindo da Guadalupana. Como quereria que fosse Ela mesma a levar, até às profundezas das vossas almas de pastores e – por vosso intermédio – a cada uma das vossas Igrejas particulares presentes neste vasto México, tudo o que intensamente brota do coração do Papa!
Como sucedeu com São Juan Diego e as sucessivas gerações dos filhos da Guadalupana, também o Papa, há tempos, cultivava o desejo de olhar para Ela. Mais ainda, queria eu mesmo ser envolvido pelo seu olhar materno. Refleti muito sobre o mistério deste olhar e peço-vos que acolhais tudo o que brota do meu coração de Pastor neste momento.
Um olhar de ternura

Antes de mais nada, a «Virgem Morenita» ensina-nos que a única força capaz de conquistar o coração dos homens é a ternura de Deus. Aquilo que encanta e atrai, aquilo que abranda e vence, aquilo que abre e liberta das cadeias não é a força dos meios nem a dureza da lei, mas a fragilidade omnipotente do amor divino, que é a força irresistível da sua doçura e a promessa irreversível da sua misericórdia.
Um inquieto e ilustre escritor desta terra, Octávio Paz, disse que, em Guadalupe, não se pede a abundância das colheitas nem a fertilidade da terra, mas procura-se um regaço no qual os homens, sempre órfãos e deserdados, buscam um abrigo, um lar.
Passados séculos do evento fundador deste país e da evangelização do continente, porventura se diluiu ou está esquecida a necessidade dum regaço por que anseia o coração do povo que vos está confiado?
Conheço a longa e dolorosa história que atravessastes, não sem o derramamento de muito sangue, não sem convulsões impiedosas e dilacerantes, não sem violência e incompreensões. Com razão, o meu venerado e santo Predecessor, que se sentia no México como em sua casa, quis lembrar que a vossa história «é percorrida, como rios às vezes ocultos e sempre caudalosos, por três realidades que ora se encontram, ora revelam as suas diferenças complementares, sem jamais se confundirem totalmente: a antiga e rica sensibilidade dos povos indígenas que amaram Juan de Zumárraga e Vasco de Quiroga, aos quais muitos desses povos continuam a chamar pais; o cristianismo arraigado na alma dos mexicanos; e a moderna racionalidade, de perfil europeu, que tanto quis enaltecer a independência e a liberdade» (João Paulo II, Discurso na cerimônia de chegada ao México, 22 de Janeiro de 1999).
E nesta história, nunca se mostrou infecundo o regaço materno que tem gerado continuamente o México, embora às vezes se parecesse com aquela rede quase a romper-se que continha cento e cinquenta e três peixes (Jo 21, 11), mas as fracturas ameaçadoras sempre se recompuseram.
Por isso, convido-vos a começar de novo desta necessidade de um regaço que emana da alma do vosso povo. O regaço da fé cristã é capaz de reconciliar o passado marcado muitas vezes por solidão, isolamento e marginalização, com o futuro continuamente relegado para um amanhã que escapa. Apenas naquele regaço é possível, sem renunciar à própria identidade, «descobrir a verdade profunda da nova humanidade, em que todos são chamados a ser filhos de Deus» (João Paulo II, Homilia na canonização de São Juan Diego, 31 de Julho de 2002).
Inclinai-vos, com delicadeza e respeito, sobre a alma profunda do vosso povo, debruçai-vos com atenção e decifrai o seu rosto misterioso. Porventura o presente, muitas vezes dissolvido em dispersões e festas, não é prenúncio de Deus que é o único e pleno presente? Porventura a familiaridade com a dor e a morte não são formas de coragem e caminhos rumo à esperança? Porventura a percepção de que o mundo esteja necessitado sempre e somente de redenção não será um antídoto à auto-suficiência arrogante de quantos julgam possível poder prescindir de Deus?
Naturalmente, para tudo isto é necessário um olhar capaz de refletir a ternura de Deus. Por isso, sede bispos de olhar límpido, alma transparente, rosto luminoso; não tenhais medo da transparência; a Igreja não precisa da obscuridade para trabalhar. Vigiai para que os vossos olhares não se cubram com as penumbras da névoa do mundanismo; não vos deixeis corromper pelo vulgar materialismo nem pelas ilusões sedutoras dos acordos feitos por baixo da mesa; não ponhais a vossa confiança nos «carros e cavalos» dos faraós de hoje, porque a nossa força é a «coluna de fogo» que irrompe separando em duas as águas do mar, sem fazer grande rumor (Ex 14, 24-25).
O mundo, onde o Senhor nos chama a exercer a nossa missão, tornou-se muito complexo. À prepotente ideia do «cogito», que pelo menos não negava que houvesse uma rocha acima da areia do ser, sobrepôs-se hoje uma concepção da vida – no dizer de muitos – mais vacilante, vaga e caótica do que nunca, porque carece de um substrato sólido. As fronteiras, tão intensamente exigidas e sustentadas, tornaram-se permeáveis à novidade dum mundo em que a força de alguns já não pode sobreviver sem a vulnerabilidade dos outros. A hibridação irreversível da tecnologia aproxima o que está afastado, mas, infelizmente, torna distante o que deveria estar perto.
E, precisamente neste mundo, Deus pede-vos para ter um olhar capaz de interceptar a pergunta que grita no coração do vosso povo, o único que, no próprio calendário, possui uma «festa do grito». Àquele grito, é preciso responder que Deus existe e, graças a Jesus, está perto; responder que só Deus é a realidade sobre a qual se pode construir, porque «Deus é a realidade fundante, não um Deus apenas pensado ou hipotético, mas o Deus com um rosto humano» (Bento XVI, Discurso inaugural da V Conferência Geral do CELAM, 13 de Maio de 2007).
Nos vossos olhares, o povo mexicano tem o direito de encontrar os indícios de quem «viu o Senhor» (cf. Jo 20, 25), de quem esteve com Deus. Isto é o essencial. Assim, não percais tempo e energias nas coisas secundárias, nas críticas e intrigas, em projetos vãos de carreira, em planos vazios de hegemonia, nos clubes estéreis de interesses ou compadrios. Não vos deixeis paralisar pelas murmurações e maledicências. Introduzi os vossos sacerdotes nesta compreensão do ministério sagrado. A nós, ministros de Deus, basta a graça de «beber o cálice do Senhor», o dom de guardar a parte da sua herança que nos foi confiada, apesar de sermos administradores inexperientes. Deixemos o Pai atribuir-nos o lugar que preparou para nós (Mt 20, 20-28). Poderemos nós ocupar-nos verdadeiramente doutras coisas que não sejam as do Pai? Fora das «coisas do Pai» (Lc 2, 48-49), perdemos a nossa identidade e, culpavelmente, tornamos vã a sua graça.
Se o nosso olhar não dá testemunho de ter visto Jesus, então as palavras que recordamos d’Ele não passam de figuras retóricas vazias. Talvez expressem a nostalgia daqueles que não podem esquecer o Senhor, mas, em todo o caso, são apenas o balbuciar de órfãos junto do sepulcro. No fim de contas, são palavras incapazes de impedir que o mundo fique abandonado e reduzido ao próprio poder desesperado.
Penso na necessidade de oferecer um regaço materno aos jovens. Que os vossos olhares sejam capazes de se cruzar com o deles, de os amar e individuar o que eles buscam com aquela força com que muitos como eles deixaram barcos e redes na praia do mar (Mc 1, 17-18), abandonaram bancas de extorsão para seguir o Senhor da verdadeira riqueza (Mt 9, 9).
Em particular preocupam-me tantos jovens que, seduzidos pelo poder vazio do mundo, exaltam as quimeras e revestem-se dos seus símbolos macabros para comercializar a morte em troca de moedas que, no fim, a ferrugem corrói e os ladrões arrombam os muros para as roubar (Mt 6, 19). Peço-vos que não subestimeis o desafio ético e anticívico que o narcotráfico representa para a sociedade mexicana inteira, incluindo a Igreja.
A amplitude do fenômeno, a complexidade das suas causas, a imensidade da sua extensão como metástase devoradora, a gravidade da violência que desagrega e suas conexões transtornadas não consentem que nós, pastores da Igreja, nos refugiemos em condenações genéricas, mas exigem uma coragem profética e um projeto pastoral sério e qualificado para contribuir, gradualmente, a tecer aquela delicada rede humana, sem a qual todos estaríamos, desde o início, derrotados por tal ameaça insidiosa. Só começando das famílias; aproximando-nos e abraçando a periferia humana e existencial das áreas desoladas das nossas cidades; envolvendo as comunidades paroquiais, as escolas, as instituições comunitárias, a comunidade política, as estruturas de segurança; só assim será possível libertar-se totalmente das águas onde, infelizmente, se afogam tantas vidas, seja a de quem morre como vítima, seja a de quem diante de Deus terá as mãos sempre manchadas de sangue, mesmo que tenha os bolsos cheios de dinheiro sórdido e a consciência anestesiada.
Um olhar capaz de tecer
No manto da alma mexicana, Deus teceu, com o fio dos traços mestiços do seu povo, o rosto da sua manifestação na «Morenita». Deus não precisa de cores perecíveis para desenhar o seu rosto. Os desenhos de Deus não são condicionados pelas cores e os fios, mas determinados pela irreversibilidade do seu amor que quer tenazmente imprimir-se em nós.
Por isso, sede bispos capazes de imitar esta liberdade de Deus, escolhendo o que é humilde para manifestar a majestade do seu rosto e copiar esta paciência divina ao tecer, com o fio subtil da humanidade que encontrais, aquele homem novo que o vosso país espera. Não vos deixeis levar pela vã pretensão de mudar o povo, como se o amor de Deus não tivesse força suficiente para o mudar.
Redescobri, depois, a constância sábia e humilde com que os Pais da fé desta Pátria souberam introduzir as gerações sucessivas na semântica do mistério divino. Primeiro aprendendo e, em seguida, ensinando a gramática necessária para dialogar com Deus, escondido nos séculos da sua busca e tornado próximo na pessoa do seu Filho Jesus, que hoje muitos reconhecem, na sua imagem ensanguentada e humilhada, como figura do próprio destino. Imitai a sua condescendência e capacidade de abaixar-Se; nunca compreenderemos suficientemente o facto de Deus ter tecido, com os fios mestiços do nosso povo, o rosto com que Se deu a conhecer! Nunca Lhe agradeceremos bastante…
Peço-vos um olhar de singular delicadeza para os povos indígenas e as suas fascinantes e não raro massacradas culturas. O México tem necessidade das suas raízes ameríndias, para não ficar um enigma sem solução. Os indígenas do México esperam ainda que se lhes reconheça, efectivamente, a riqueza da sua contribuição e a fecundidade da sua presença para herdar aquela identidade que vos torna uma nação única, e não apenas uma entre outras.
Muitas vezes se falou do presunto destino por cumprir desta nação, do «labirinto da solidão» em que estaria prisioneira, da geografia como destino que a enreda. Segundo alguns, tudo isto seria obstáculo para o desenho dum rosto unitário, duma identidade adulta, duma posição singular no concerto das nações e duma missão compartilhada.
Segundo outros, a própria Igreja no México estaria condenada a escolher entre sofrer a inferioridade para onde foi relegada nalguns períodos da sua história, como quando a sua voz foi silenciada e procurou-se suprimir a sua presença, ou aventurar-se nos fundamentalismos para recuperar certezas provisórias, esquecendo-se que tem inscrita no coração a sede do Absoluto e está chamada, em Cristo, a congregar todos e não apenas uma parte (cf. Lumen gentium 1, 1).
Em vez disso, não vos canseis de lembrar ao vosso povo como são fortes as raízes antigas que permitiram a viva síntese cristã de comunhão humana, cultural e espiritual que aqui se forjou. Recordai que as asas do vosso povo já planaram várias vezes por cima de não poucas vicissitudes. Guardai a memória do longo caminho percorrido até agora e sabei suscitar a esperança de novas metas, porque o amanhã será uma terra «rica de frutos» embora nos coloque desafios não indiferentes (Nm 13, 27-28).
Que os vossos olhares, fixos sempre e apenas em Cristo, sejam capazes de contribuir para a unidade do vosso povo; favorecer a reconciliação das suas diferenças e a integração das suas diversidades; promover a solução dos seus problemas endógenos; lembrar a medida alta que o México pode alcançar, se aprender a pertencer-se a si mesmo antes que aos outros; ajudar a encontrar soluções compartilhadas e sustentáveis para as suas misérias; motivar a nação inteira para não se contentar com menos de quanto se espera do modo mexicano de habitar o mundo.
Um olhar atento e solidário, não adormecido
Peço-vos para não cairdes na estagnação de dar velhas respostas às novas questões. O vosso passado é um poço de riquezas por escavar, que pode inspirar o presente e iluminar o futuro. Ai de vós se vos deixais adormentar sobre os louros! É preciso não desperdiçar a herança recebida, guardando-a com um trabalho constante. Estais sentados aos ombros de gigantes: bispos, sacerdotes, religiosos, religiosas e leigos fiéis «até ao fim», que deram a vida para a Igreja poder cumprir a sua missão. Do alto de tal pódio, sois chamados a alongar o olhar sobre o campo do Senhor para programar a sementeira e esperar a colheita.
Convido-vos a trabalhar sem medo na tarefa de evangelizar e aprofundar a fé, por meio duma catequese mistagógica que saiba valorizar a religiosidade popular da vossa gente. O nosso tempo exige atenção pastoral às pessoas e grupos que esperam poder encontrar-se com Cristo vivo. Só uma corajosa conversão pastoral das nossas comunidades pode procurar, gerar e nutrir os atuais discípulos de Jesus (cf. Documento de Aparecida, 226; 368; 370).
Por isso nós, pastores, precisamos de vencer a tentação da distância e do clericalismo, da frieza e da indiferença, do triunfalismo e da auto-referencialidade. Guadalupe ensina-nos que Deus é familiar no seu rosto, que a proximidade e a condescendência podem fazer mais do que a força.
Como ensina a bela tradição guadalupana, a «Morenita» guarda os olhares daqueles que A contemplam, reflete o rosto daqueles que A encontram. É necessário aprender que há algo de irrepetível em cada pessoa que olha para nós à procura de Deus. Compete-nos a nós tornar-nos permeáveis a tais olhares: guardar em nós cada um deles, conservá-los no coração, protegê-los.
Só uma Igreja que saiba proteger o rosto dos homens que vêm bater à sua porta, será capaz de lhes falar de Deus. Se não decifrarmos os seus sofrimentos, se não nos dermos conta das suas necessidades, nada poderemos oferecer. A riqueza de que dispomos flui somente quando encontramos a pequenez daqueles que mendigam, encontro esse que se realiza, precisamente, no nosso coração de pastores.
Peço-vos que o primeiro rosto a guardar no vosso coração seja o dos vossos sacerdotes. Não os deixeis expostos à solidão e ao abandono, como presa do mundanismo que devora o coração. Estai atentos e aprendei a ler os seus olhares, para vos alegrardes com eles quando se sentem felizes contando tudo o que «fizeram e ensinaram» (Mc 6, 30), e para não os abandonardes quando se sentem um pouco desanimados, só conseguindo chorar porque «negaram o Senhor» (Lc 22, 61-62), e também para os apoiardes, em comunhão com Cristo, quando algum, abatido, sair com Judas «na noite» (Jo 13, 30). Nestas situações, nunca falte a vossa paternidade de bispos para com os vossos sacerdotes. Encorajai a comunhão entre eles; fazei com que possam aperfeiçoar os seus dons; inseri-os nas grandes causas, porque o coração do apóstolo não foi feito para coisas pequenas.
A necessidade de familiaridade habita no coração de Deus. Assim Nossa Senhora de Guadalupe pede apenas uma «casita sagrada». Os nossos povos latino-americanos apreciam os diminutivos na linguagem e usam-nos de bom grado. Talvez necessitem de diminutivos porque, doutra forma, sentir-se-iam perdidos. Adaptaram-se a sentir-se pequeninos e acostumaram-se a viver na modéstia.
A Igreja, mesmo quando se reúne numa majestosa catedral, não poderá deixar de considerar-se como uma «casita» onde os seus filhos se sintam à vontade. Diante de Deus, pode-se permanecer apenas se se é pequeno, se se é órfão, se se é mendicante.
«Casita» familiar e, ao mesmo tempo, «sagrada», porque a proximidade se enche da grandeza omnipotente. Somos guardiões deste mistério. Às vezes perdemos este sentido da medida divina humilde e cansamo-nos de oferecer ao nosso povo a «casita», onde possa sentir-se em intimidade com Deus. Pode acontecer também que, tendo descuidado um pouco o sentido da sua grandeza, se perdeu em parte o temor reverencial para com tal amor. Onde habita Deus, o homem não pode aceder sem ter sido admitido e sem antes «tirar as sandálias dos pés» (Ex 3, 5) confessando assim a própria insuficiência.
O facto de nos termos esquecido de «tirar as sandálias» para entrar não estará porventura na raiz da perda do sentido da sacralidade da vida humana, da pessoa, dos valores essenciais, da sabedoria acumulada ao longo dos séculos, do respeito pela natureza? Sem recuperar, na consciência dos homens e da sociedade, estas raízes profundas, incluindo o generoso empenho em prol dos legítimos direitos humanos, faltará a seiva vital que só pode vir dum manancial que a humanidade não poderá jamais dar-se por si mesma.
Um olhar de conjunto e de unidade
Só olhando a «Morenita» é que o México tem uma visão completa de si mesmo. Por isso convido-vos a compreender que a missão que a Igreja vos confia exige este olhar que abrace a totalidade. E isto não se pode realizar isoladamente, mas só em comunhão.
A cintura da Guadalupana anuncia a sua fecundidade. É a Virgem que traz, no ventre, o Filho esperado pelos homens. É a Mãe que já tem em gestação a humanidade do novo mundo que nasce. É a Esposa que prefigura a maternidade fecunda da Igreja de Cristo. Vós tendes a missão de cingir a nação mexicana inteira com a fecundidade de Deus. Nenhum pedaço desta cintura pode ser desprezado.
O episcopado mexicano realizou passos notáveis nestes anos conciliares; aumentaram os seus membros; promoveu-se uma contínua e qualificada formação permanente; não faltou o ambiente fraterno; cresceu o espírito de colegialidade; as intervenções pastorais influíram sobre as vossas Igrejas e sobre a consciência nacional; as actividades pastorais compartilhadas revelaram-se frutuosas em áreas essenciais da missão eclesial como a família, as vocações, a presença social.
Ao mesmo tempo que nos alegramos com o caminho destes anos, peço-vos que não vos deixeis desanimar com as dificuldades nem poupeis qualquer esforço possível para promover, entre vós e nas vossas dioceses, o zelo missionário, especialmente a favor das partes mais necessitadas do único corpo da Igreja mexicana. Redescobrir que a Igreja é missão constitui um elemento fundamental para o seu futuro, porque só o entusiasmo, a admiração convicta dos evangelizadores tem a força de arrastar. Por isso, peço-vos que cuideis de maneira especial da formação e preparação dos leigos, superando toda a forma de clericalismo e envolvendo-os activamente na missão da Igreja, principalmente tornando presente, com o testemunho da própria vida, o Evangelho de Cristo no mundo.
Muito ajudaria a este povo mexicano um testemunho unificante da síntese cristã e uma visão compartilhada da identidade e destino dele. Neste sentido, será muito importante que a Pontifícia Universidade do México esteja cada vez mais presente no coração dos esforços eclesiais para garantir aquele olhar de universalidade sem o qual a razão, resignada com modelos parciais, renuncia à sua mais alta aspiração de buscar a verdade.
A missão é vasta, e levá-la por diante requer uma multiplicidade de caminhos. Exorto-vos, com a mais viva insistência, a conservar a comunhão e a unidade entre vós. A comunhão é a forma vital da Igreja, e a unidade dos seus pastores dá prova da sua veracidade. O México e a sua vasta e multiforme Igreja têm necessidade de bispos servidores e guardiães da unidade construída sobre a Palavra do Senhor, alimentada com o seu Corpo e guiada pelo seu Espírito que é o alento vital da Igreja.
Não há necessidade de «príncipes», mas duma comunidade de testemunhas do Senhor. Cristo é a sua única luz; é a fonte da água viva; da sua respiração, sai o Espírito que estende as velas da barca eclesial. Em Cristo glorificado, que os membros deste povo gostam de honrar como Rei, acendei juntos a luz, enchei-vos da sua presença que não Se extingue; respirai a plenos pulmões o ar bom do seu Espírito. Compete-vos semear Cristo no território, manter acesa a sua luz humilde que ilumina sem ofuscar, garantir que nas suas águas se sacie a sede do vosso povo; levantar as velas de modo que o sopro do Espírito as impulsione e não encalhe a barca da Igreja no México.
Lembrai-vos de que a Esposa sabe bem que o Pastor amado (Ct 1, 7) Se encontra apenas onde as pastagens são verdejantes e os ribeiros cristalinos. A Esposa desconfia dos companheiros do Esposo que, às vezes por descuido ou incapacidade, conduzem o rebanho para lugares áridos e cheios de pedregulhos. Ai de nós, pastores, companheiros do Supremo Pastor, se deixarmos vagar a sua Esposa, porque, na tenda por nós construída, não se encontra o Esposo.
Permiti-me uma última palavra para expressar o apreço do Papa por tudo o que tendes feito para enfrentar o desafio deste nosso tempo que são as migrações. Hoje, são milhões os filhos da Igreja que vivem na diáspora ou em trânsito peregrinando para o norte à procura de novas oportunidades. Muitos deles deixam para trás as suas raízes para se aventurar, mesmo na clandestinidade que envolve todo o tipo de riscos, em busca da «luz verde» que olham como a sua esperança. Muitas famílias se dividem; e nem sempre a integração na alegada «terra prometida» é tão fácil como se pensa.
Irmãos, que os vossos corações sejam capazes de os seguir e alcançar além das fronteiras. Reforçai a comunhão com os vossos irmãos do episcopado estadunidense, para que a presença materna da Igreja mantenha viva as raízes da sua fé, as razões da sua esperança e a força da sua caridade. Para não acontecer que, pendurando as suas cítaras, emudeçam as suas alegrias, esquecendo-se de Jerusalém e transformando-se em «exilados de si mesmos» (Salmo 136). Juntos, testemunhai que a Igreja é guardiã duma visão unitária do homem e não pode aceitar que seja reduzido a mero «recurso humano».
Não será vã a solicitude das vossas dioceses ao derramar o pouco bálsamo que possuem nos pés feridos de quantos atravessam os seus territórios e gastar em favor deles o dinheiro duramente arrecadado; no fim, o divino Samaritano enriquecerá a quem não passou indiferente por Ele quando estava caído na estrada (Lc 10, 25-37).
Queridos irmãos, o Papa tem a certeza de que o México e a sua Igreja chegarão a tempo ao encontro consigo mesmo, com a história, com Deus. Talvez alguma pedra no caminho atrase a marcha, e o cansaço da viagem exigirá alguma pausa, mas nunca será suficiente para vos fazer perder a meta. Na verdade, poderá chegar tarde quem tem uma Mãe à sua espera? Quem pode ouvir continuamente ressoar no próprio coração: «Não estou aqui Eu, que sou tua Mãe?»

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