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terça-feira, 6 de janeiro de 2015

A relação de Jesus com as mulheres e o aspecto feminino de Deus

Reflexões sobre o Jesus Histórico, parte 2

Anotações, Comentários e Resumos baseado em capítulos do livro de Gerd Theissen e Annette Merz, professores da Universidade de Heidelberg

“O Jesus Histórico”





Jesus e as mulheres

Carlos Antonio Fragoso Guimarães

I - Introdução

Dando prosseguimento ao estudo sobre o Jesus histórico tal qual as pesquisas acadêmicas o apresentam atualmente, destacaremos aqui a relação de Jesus com as mulheres em sua atividade pública, o que podemos perceber de socialmente revolucionário nesta interação e como ele entendia o lado materno de Deus.
           
            Comecemos por lembrar que a tradição posterior das comunidades cristãs de onde surgiram os evangelhos (escritos décadas após a crucificação e durante a crise das guerras judaicas contra Roma e da dupla perseguição aos cristãos por Roma e pelo Sinédrio), ao elaborarem as narrativas sobre a vida de Jesus, não deixaram de contaminar os relatos com a visão patriarcal dominante na época, o que também é encontrado, por exemplo, em Paulo de Tarso, principalmente na epístola (provavelmente não escrita por ele) aos colossenses. Convém, contudo, lembrar que a tradição que se constituiu sobre Jesus são formas de interpretação de Jesus, muitas vezes encobrindo parte de sua mensagem que, contudo, pode ser reconstituída de acordo com a análise das fontes, de onde é possível extrair “a linguagem” e as ideias de Jesus, e com o contexto histórico-social de sua época.

Assim, com este esclarecimento em mente, os professores Gerd Theissen e Annette Merz em seu livro “O Jesus Histórico”, (2002) ao introduzirem o estudo da relação de Jesus com as mulheres a partir de uma análise de seu contexto, começam por destacar que...

“(...) a tradição de Jesus tem um caráter androcêntrico e ambivalente em relação às mulheres. Por um lado, esta tradição é dominada por uma linguagem androcêntrica e por um patriarcalismo inabalável; por outro, pode-se reconhecer, tanto na tradição dos ditos como na tradição narrativa, uma surpreendente e múltipla participação de mulheres e relações com o mundo feminino” (op. Cit. p. 243).

Os elementos patriarcais que foram postos e/ou se desenvolveram com a tradição cristã posterior a Jesus – muito em especial após Constantino e sua transformação do movimento original de uma expressão popular dos oprimidos para uma religião dominada pelos opressores, através da oficialização de uma comunidade de teólogos comprometidas com a antiga visão do homem – já são conhecidos. Sabe-se o quanto foram utilizados, ou melhor, torcidos e reinterpretados para justificar uma cultura excludente e machista durante séculos. Não será este aspecto, de todo modo estranho à mensagem original de Jesus, como veremos, o objeto de estudo aqui. O que nos importa é exatamente aquele outro lado, mais luminoso e, por isso, mais “perigoso” para o status quo tradicional (político e religioso), qual seja, os elementos inclusivos da ação pública de Jesus, que resgatava a dignidade e o valor da mulher durante seu ministério público, pondo em questão a visão patriarcal convencional.

Citando ainda Theissen e Merz, no mesmo contexto social e a partir das fontes sobre a ação de Jesus frente à comunidade de pessoas que o conheceram, é bastante visível que...

“Diante dos elementos patriarcais, existem também elementos inclusivos na tradição de Jesus. Na tradição narrativa encontram-se muitas mulheres, em parte em papeis não típicos de seu gênero. Podemos mencionar como exemplo a unção do Messias em Mc 14, 3-9. A tradição dos ditos está cheia de “formação de (dizeres em) pares simétricos”, ditos duplos, nos quais há protagonistas masculinos e femininos e/ou seus âmbitos de vida e de trabalho são postos lado a lado. Podemos citar a parábola dupla (com mensagens semelhantes) do grão de mostarda e do fermento (lc. 13, 18s.20. par.), da ovelha e da moeda perdida (Lc 15,3-7; 8-10). Também podemos mencionar a parábola do amigo inoportuno e da viúva insistente (Lc 11,5-8; 18; 1-8). (...). O mundo do trabalho masculino e feminino são mencionados em Mt 24,40s (trabalho no campo e moer no moinho); Mc 2,21 (trabalho têxtil e produção de vinho), Mt 6,26.28 (fiação e trabalho no campo)” (Op. Cit., p. 243).

Portanto, fica claro que Jesus não se dirigia apenas a homens, mas sim a homens e mulheres e que estas faziam parte, senão em número igual ou superior ao dos homens, das pessoas que simpatizavam com ele e/ou o seguiam. Os autores citados acrescentam ainda que deve-se levar em consideração, nos ensinos de Jesus, as imagens metafóricas (em especial nas parábolas) em que se utilizam imagens do mundo feminino. Se ele o fez, é porque tais imagens foram consideradas pelo nazareno como mais apropriadas para dar uma ideia do trabalho e  cuidado de Deus – aliás, o colérico, ciumento e muitas vezes “infantil” deus de Moisés transforma-se, em Jesus, em Abba, “papai” amoroso e compreensivo -, ao mesmo tempo em que, assim fazendo, Jesus também promove uma crítica social contra a visão patriarcal: “a partir da mensagem do reino, cotidiano e atribuição de papeis femininos são relativizados” (Op. Cit., p. 244).

II – Mulheres no contexto de Jesus

Jesus não via as mulheres como “inferiores” aos homens. Várias passagens dos evangelhos sinóticos indicam isto, bem nos evangelhos não canônicos, como no de Tomé (por exemplo, no logion 114) e no de Maria Madalena, o primeiro redescoberto em 1945 e o segundo, em 1897. Aliás, são elas, as mulheres, segundo os textos canônicos, as primeiras a terem contato com a ressurreição. No evangelho de João, a primeira pessoa a ver e falar com o Cristo póstumo foi Maria Madalena. Deste modo, as mulheres se apresentam como destinatárias da mensagem de Jesus tanto quanto os homens. Ou melhor, são compreendidas por Jesus como pessoas responsáveis por si mesmas e em várias passagens elas apresentam uma coragem e fidelidades a Jesus superiores mesmo a dos apóstolos.  Além do mais, diante do já conhecido posicionamento crítico de Jesus frente às injustiças sociais, que promovem exclusões e opressões impostas, transformando pessoas em párias, convém refletir que

“A mensagem de Jesus dirige-se especialmente também às mulheres economicamente mais pobres e socialmente desprezadas, as prostitutas. Em Mt 21,31s ele promete a elas e aos cobradores de impostos acesso ao reino de Deus (...)” (Op. Cit., p. 244-245).

Nos relatos evangélicos (embora nem sempre bem compreendido, especialmente por evangélicos), grande parte das curas efetuadas por Jesus se dão sobre mulheres. Mas estas curas não foram efetuadas sem que não servissem em si como uma ilustração, sem que carreassem uma mensagem. A atenção dada por Jesus a elas nestas ações demonstra que a cura física seria a contrapartida e expressão da integridade e dignidade corporal das mulheres - tantas vezes vilipendiada pelas "regras de pureza" das escrituras veterotestamentárias e, portanto,  frequentemente desprezadas pelo patriarcalismo vulgar -, as inserindo na comunidade dos que foram tocados pelo reino de Deus. Em outras palavras, Jesus questiona tudo aquilo no Antigo Testamento que reduz a humanidade a "coisa" - e as mulheres são metade da humanidade -, o que já por si demonstra a relativização do conceito de "sacralidade" dada às escrituras, textos escritos por pessoas em um contexto histórico específico.

Uma das passagens mais singulares dos evangelhos - que, alias, é a única em que Jesus se deixa convencer por alguém, ou seja, a única em que, em um diálogo, ele não domina a argumentação -, é a que relata o encontro de Jesus  com uma mulher sírio-fenícia, em Mc 7,24-30. Nela, uma não judia implora a Jesus que cure sua filha enferma. Na narração Jesus parece resistir, usando uma argumentação nacionalista (que parece ter sido usada de propósito para chamar a atenção dos circunstantes à cena), mas, diante da sinceridade da estrangeira, ele cede e cura, à distância, a menina. Fica claro que a ocasião foi usada para mostrar que o direito ao reino é posto para todas as pessoas, independente de origem, sexo ou nacionalidade.

          Outra passagem célebre - e bastante incisiva na crítica ao patriarcalismo - é discutia por Theissen e Merz:

“A mulher com hemorragia (Mc 5,25-34), além de sua enfermidade, tinha de sofrer marginalização social e cúltica, que a faz carregar sempre consigo sua impureza, uma forma acentuada de separação que atingia todas as mulheres menstruadas. Ela rompe com o tabu do toque, o que é tornado público por Jesus e interpretado como expressão (positiva) de sua fé” (Op. Cit. p. 245).

Entre os seguidores de Jesus, especialmente os que o acompanham até Jerusalém e que, após a sua morte, continuaram seu ministério, contavam-se mulheres, o que é reconhecido mesmo por Paulo (Rm 16,12 e Fl 4,2s). Ademais, muitos dos ditos sapienciais e éticos de Jesus apresentam imagens que são próprias de atividades domésticas (femininas) e laborais externas (masculinas): A exortação para não preocupar-se a (Mt 6,25ss / Lc 12,22ss) compara os ouvintes a pássaros e lírios do campo, que não fiam, não semeiam, nem colhem . A audiência, portanto, era formada por seguidoras e seguidores considerados iguais.

III – O mundo das mulheres e o lado materno de Deus

Citações e imagens, nos ensinos de Jesus, que apresentam figurações próprias do mundo das mulheres se tornam significativas porque representam uma corajosa exceção em uma cultura dominada por preconceitos machistas.

“Cada referência explícita faz com que as mulheres sejam visíveis e dessa forma tematiza obrigatoriamente seu valor, contra os dogmas básicos da cultura patriarcal. A inclusão do mundo feminino na linguagem do anúncio tem como causa uma sensibilidade aguçada de Jesus e dos que o seguiam para com o clamor dos marginalizados, a quem a mensagem do reino de Deus vindouro é primeiramente dirigida, e à participação ativa das mulheres no movimento de Jesus” (Op. Cit.,  p. 247).

                Contudo, existe um outro efeito ainda mais revolucionário da apresentação do universo feminino nas parábolas de Jesus. Ela é usada tanto para destacar a humanidade das mulheres quanto para mostrar o aspecto materno de Deus:

                “A escolha de mulheres como atrizes nas parábolas e em formas parabólicas as transformam em figuras de identificação para mulheres e homens. Se na parábola do amigo que pede (Lc 11, 5-8) outra é posta ao lado, a da viúva que luta insistentemente por seu direito (Lc 18,1-8), isto significa que uma mulher representa um comportamento adequando ‘de homens’ diante de Deus. Tal uso de imagens é um protesto implícito contra a imanente equivalência entre ser humano e homem, imanente na linguagem.

                “As parábolas do fermento (Lc 13,20/Tomé 96) e da moeda perdida (Lc 15,8-10) apresentam a mulher e seu mundo como imagem para a ação de Deus. A mulher que busca a moeda necessária para a aquisição do que é indispensável, as mãos de mulher que preparam o pão essencial para a sobrevivência são imagens transparentes do cuidado de Deus com o ser humano e para o cumprimento do reino prometido. Tal uso de imagens é um protesto implícito contra a simbolização frequente (e ainda usual) de Deus em categorias masculinas” (Op. Cit., pp. 247-248).

Bibliografia consultada:


Theissen, Gerd & Merz, Annette (2002). O Jesus Histórico – um manual. Editora Loyola, São Paulo.

João Pessoa, Paraíba, 06 de janeiro de 2015

2 comentários:

  1. Apesar de concordar com o Espírito Verdade (LE), de que Deus seja uma vaga intuição humana, sempre acreditei que Deus era muito mais Mãe do que Pai. A mãe gera, carrega no ventre, dá a luz, alimenta com o próprio seio, ensina a andar e a falar e para sempre vai exercitar a compaixão absoluta. Deus é bem isto!

    Abração, Carlos!

    Merlânio Maia!

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  2. Carlos, eles utilizaram outras fontes e uma re-interpretacao da Biblia?

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