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sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Religião, ou tão só a Crença em Deus sem desenvolvimento íntimo e coerência, define um bom caráter?



Carlos Antonio Fragoso Guimarães

  Há certo tempo, uma tentativa de superação do preconceito contra os ateus  causou polêmica no Brasil e, antes deste, na Europa. Um conjunto de outdoors e cartazes traziam fotos de crentes e ateus famosos, normalmente um crente reconhecido por suas maldades (como Adolf Hitler, que  era teísta) e um ateu amado por milhões (como Charlie Chaplin). Ao lado destas fotos, haviam os dizeres: "Religião não define caráter" ou, comparando-se a tragédia sangrenta que foi a imposição dos valores e religiões da Europa aos nativos da América, África e Ásia, os dizeres-denúncia "Somos todos ateus com os deuses dos outros".  Inevitavelmente, a campanha causou uma violenta polêmica nos meios religiosos, com uma reação realmente barulhenta por parte de correntes mais fundamentalistas.

   A maior parte, contudo, das reações negativas à campanha promovida contra o preconceito aos ateus pecou pela falta de uma reflexão racional ao que foi dito e primou pela mera negativa sem levar em conta uma discussão mais aprofundada da questão. O fato é que em momento algum se falou que todos os que tem fé são maus ou que todos os ateus, bons. O que se questionou foi a idéia - muito aceita e divulgada por certas vertentes religiosas, especialmente as mais fundamentalistas, como as evangélicas neopentecostais - de que bastaria oficiar-se publicamente a crença em Deus para que a pessoa crente, por si só, independente de seus atos públicos, más intenções e obras, se tornasse superior, diferenciada positivamente ou, de algum modo, acima e além das demais. É a tal justificação pela fé.

  Este pensamento um tanto infantil de que a crença, por si, determinasse privilégios especiais ou mesmo fosse um endosso divino à certeza de salvação cai por si diante da lógica e do exemplo citado, junto com o da perversidade de outras pessoas como Torquemada, Savonarola, Jim Jones, George W. Bush, Pastor Robert Patson, Pastor Fausto  e tantos outros, que diziam ou ainda dizem ter Deus no coração e que, por isso, já estariam "inscritas no livro da vida" ou "salvas" penas por aceitar Jesus Cristo e sua morte e ressurreção - idéia extraída um tanto levianamente dos escritos de Paulo de Tarso, cristão tardio que não conviveu com Jesus - enquanto suas obras demonstravam egoísmo, maldade e hipocrisia. Tal pensamento infantil é questionado pelo próprio Jesus, se levarmos em consideração o que está escrito no evangelho de Mateus, 25: 31-45, que destroça o infantil argumento teológico de que a mera fé Nele e em sua história implica aceitação ou salvação divinas, automaticamente:

«Quando o Filho do Homem vier na sua glória, acompanhado por todos os seus anjos, há-de sentar-se no seu trono de glória. 32Perante Ele, vão reunir-se todos os povos e Ele separará as pessoas umas das outras, como o pastor separa as ovelhas dos bodes. 33À sua direita porá as ovelhas e à sua esquerda, os bodes.
34O Rei dirá, então, aos da sua direita: ‘Vinde, benditos de meu Pai! Recebei em herança o Reino que vos está preparado desde a criação do mundo. 35Porque tive fome e destes-me de comer, tive sede e destes-me de beber, era peregrino e recolhestes-me, 36estava nu e destes-me que vestir, adoeci e visitastes-me, estive na prisão e fostes ter comigo.’
37Então, os justos vão responder-lhe: ‘Senhor, quando foi que te vimos com fome e te demos de comer, ou com sede e te demos de beber?38Quando te vimos peregrino e te recolhemos, ou nu e te vestimos? 39E quando te vimos doente ou na prisão, e fomos visitar-te?’ 40E o Rei vai dizer-lhes, em resposta: ‘Em verdade vos digo: Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes.’
41Em seguida dirá aos da esquerda: ‘Afastai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, que está preparado para o mal e para os seus anjos!42Porque tive fome e não me destes de comer, tive sede e não me destes de beber, 43era peregrino e não me recolhestes, estava nu e não me vestistes, doente e na prisão e não fostes visitar-me.’ 44Por sua vez, eles perguntarão: ‘Quando foi que te vimos com fome, ou com sede, ou peregrino, ou nu, ou doente, ou na prisão, e não te socorremos?’ 45Ele responderá, então: ‘Em verdade vos digo: Sempre que deixastes de fazer isto a um destes pequeninos, foi a mim que o deixastes de fazer.’”
Ou seja,  também o argumento dos evangélico de que "Não é a Religião que define Caráter, mas Deus" também não se sustenta diante dos próprios textos bíblicos, por eles considerados verdade acabada vinda diretamente do céu, pois Jesus, no texto acima, deixa claro que são os atos e ações pessoais, de livre arbítrio, que definem o caráter, e não a crença ou a justificação pela fé. Jesus usa a lógica e destaca que vale mais a responsabilidade e ação sobre o mundo, melhorando-o, que uma atitude de mera adoração à seu nome ou à sua personalidade.
O conhecido especialista em Novo Testamento Bart D. Ehrman reflete que esta passagem de Mateus “sugere que a salvação não é apenas uma questão de crença, mas também de ação, uma idéia absolutamente ausente do raciocínio de Paulo”. Poderíamos dizer ausente não apenas de Paulo, mas de toda a tradição que se moldou a partir das igrejas “paulinas”, especialmente as atuais igrejas televangélicas, de cunho paulino-fundamentalista.  Na passagem de Mateus acima transcrita se percebe mesmo que os escolhidos (as “ovelhas”) podem sequer ter tomado conhecimento da vida de Jesus (“Senhor, quando foi que te vimos?”). Nos dizeres de Bart D. Ehrman,

As ‘ovelhas’ ficam perplexas (de terem sido escolhidas como herdeiras do Reino). Elas não se lembram sequer de ter encontrado Jesus, o Filho do Homem, quanto mais de fazer essas coisas por ele. Mas ele diz a elas: ‘Cada vez que fizeste a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes’. Em outras palavras, é cuidando dos que têm fome, sede, estão nus, doentes e encarcerados que é possível herdar o Reino de Deus.
“Como essas palavras se coadunam com Paulo? Não muito bem. Paulo acreditava que a Cida eterna era dada àqueles que acreditavam na morte e ressurreição de Jesus. No relato de Mateus sobre as ovelhas e os bodes, a salvação é dada a quem nunca havia falar de Jesus. É dada a quem trata os outros de forma humana e carinhosa no momento de maior necessidade. É uma visão  da salvação inteiramente diferente” (Bart D. Ehrman, “Quem foi Jesus? Quem Jesus não foi”, Ed. Ediouro, 2010).

Portanto, todos podem desenvolver um bom caráter independentemente de suas vinculaões religiosas. O que se deve evitar é o ranço elitista e hipócrita de certos religiosos intolerantes (e de certos agnósticos igualmente intolerantes. O ateísmo pode também se transforma em fundamentalismo religioso por oposição, muda o sentido mas permanece a mesma carga, como ocorre com Richard Dawkins).
O que outrora podia até ser um bem, ou seja, a adoção fervorosa de um paradigma ou doutrina formalizada para dar suporte e conforto a uma personalidade em formação, frequentemente se transforma em mal porque se torna um obstáculo à espiritualização e abertura do ser que deve perceber que cada pessoa tem seu próprio modo de perceber a realidade. É tolice tentar impor "verdades"  como é tolice impor o remédio que me fez bem para todos ou vestir as mesmas roupas de crianças quando adulto, porque estas lhe foram úteis um dia.
O caráter é, pois, associado ao desenvolvimento da maturidade e da responsabilidade reflexiva, bem como da percepção de que toda a verdade passível de entendimento é relativa, não a adoção cega de doutrinas ou paradigmas.


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